A importância estratégica do randori no desenvolvimento dos judocas

Judocas da seleção paulista sub 18 se preparam para iniciar o randori no dojô da Shutoku High School em Tóquio

Randori é o método de treinamento mais específico para experimentar, estudar, buscar e incrementar soluções contra as reações do seu companheiro de prática 

Ponto de Vista
19 de maio de 2020
Por Prof. Me. ODAIR BORGES I Fotos ISABELA LEMOS/BUDOPRESS e ARQUIVO
Curitiba – PR

Analisando o significado dos ideogramas que formam a palavra randori, separadamente, temos o “ran”, que representa a ação de puxar as duas extremidades de um fio, ao mesmo tempo significando que essa é uma situação a ser resolvida. Ou seja, uma ação de cuidar de algo emaranhado ou enroscado, que

transmite uma ideia de desordem e confusão. Dependendo das circunstâncias, pode ser traduzido como revolta, rebelião, perturbação, complicação.

O segundo ideograma, o “dori”, é na verdade tori (tori/uke). Simbolicamente, em antiga conotação, representa orelha e mão, isto é, agarrar a orelha do inimigo e não soltar, demonstrando um total domínio. Portanto, tem o sentido de fazer uma apreensão vigorosa e também de se apropriar.

Sensei e alunos fazem a saudação inicial

Quanto à pronúncia, tem a mesma entonação do R entre duas vogais em português, como em orando, parando, jurando.

Randori, então, é entendido como “uma ação de agarrar com firmeza e impor ao parceiro uma desordem ou confusão em sua posição, movimentação e deslocamento, ao mesmo tempo que, por meio da alternância de técnicas aleatórias, busca executar os arremessos do judô”.

A conhecida tradução “treino livre”, ou “prática livre”, vem do termo mais acadêmico jiyu renshu, utilizado para o mesmo objetivo.

O professor Jigoro Kano, em discurso nos Jogos Olímpicos de Los Angeles em 1932, salientava: “O randori é o judô. É, portanto, um teste entre dois praticantes, utilizando todos os recursos técnicos de que dispõem, obedecendo a regras específicas dessa modalidade. Ambos precisam estar o tempo todo atentos em descobrir os pontos fracos do oponente e procurar colocá-lo numa posição favorável para a execução de uma técnica de ataque e projeção, ao mesmo tempo que deve estar atento à própria defesa. O estudo e a prática do randori envolvem diretamente as relações físicas e mentais que existem entre os dois lutadores.

A pintura histórica de Shunso Hishida retrata o dojô do Instituto Kodokan de 1886, em Fumicho, distrito de Tokyo – À esquerda, shihan Jigoro Kano observa o randori

“Esse comportamento na busca de meios de ataque e defesa tende a tornar o praticante sério, sincero, cauteloso e focado em seu desempenho. Se não decidir rapidamente e não tiver uma ação ou reação imediata, perderá a oportunidade de atacar ou defender. Habituado a esse tipo de atitude, o praticante desenvolve alto grau de equilíbrio mental e, desse modo, pode aprender muitas lições úteis para a vida e, naturalmente, desenvolver o aperfeiçoamento do ser humano na sociedade”.

Para criar meios de derrotar um adversário, o exercício do poder de imaginação, raciocínio, e julgamento é indispensável, e tal poder é naturalmente desenvolvido em randori.” 

Randori é o método de treinamento mais específico, com liberdade para experimentar, estudar, buscar, incrementar soluções contra as reações do seu companheiro de prática. Definitivamente, é por meio dele que o judoca pode moldar-se para um judô personalizado e realmente eficiente. Para o competidor a prática do randori é uma necessidade primordial. Um judoca não estará preparado para uma competição se não praticar e treinar com companheiros experientes, mais fortes e de todas as categorias. Em randori é preciso raciocinar, estar alerta o tempo todo. Em outras palavras, não é uma situação pré-estabelecida. É o último estágio antes da competição, portanto, é real, sincero, respeitoso, concentrado.

Judocas japonesas e brasileiras fazem a saudação antes de iniciar o randori

Isao Okano (1970) afirma: “O primordial no treinamento do judô são o uchi-komi e o randori, aos quais dou a maior importância, sem nunca desprezá-los”.

Segundo Okano, o verdadeiro randori é um período de treinamento exaustivo e não deve transformar-se num tipo de disputa para ver quem é o melhor. Deve sempre que possível ser completo, isto é, em pé e no solo. É a forma mais plena do treinamento, porém exige um espaço maior por duplas em atividade. Em minha época na universidade Waseda, quando alguns davam uma rápida e eficiente continuidade no solo, imediatamente dois outros alunos que estavam fora faziam a proteção dessa dupla.

Arremessos, quedas, imobilizações, chaves e estrangulamentos são próprios do randori e devemos colocar em prática todos os conhecimentos adquiridos no que diz respeito a técnica, tática e estratégias, analisando tipos de técnicas, variações, número de técnicas utilizadas, combinações, contra-ataques, defesas, obstruções e  ataques/contra-ataques em ne-waza. As atitudes de vencedor e perdedor devem ser esquecidas para que esse treinamento alcance seu objetivo.

Randori no dojô central do atual Instituto Kodokan, em foto da década de 1960

Geralmente os ocidentais não entendem que o randori é um estudo, e, preocupados com a vaidade, transformam a prática numa luta que traz muito pouco valor e crescimento a qualquer parceiro. Quem pratica judô com objetivo de ganho, ou pelo simples orgulho de arremessar seu companheiro, jamais terá o prazer de sentir ou apreciar a beleza do alto desempenho técnico, e nunca obterá a essência dos princípios do judô.

Na complexidade de movimentos durante o randori, uma das habilidades mais importantes é o kumi-kata; apesar de atualmente em desuso, deve ser orientado e praticado em todas as suas variações. É por meio do contato, da apreensão manual, que são interpretadas e transmitidas as intenções e direções de um ataque iminente por parte do adversário, bem são ocultadas as suas próprias. Portanto, dentro dessas características, o kumi-kata pode proporcionar informações sensoriais, proprioceptivas, de grande utilidade para os bloqueios; o kanukibiraki (a defesa com cortada) e na antecipação (o sem-no-sem), hoje um desábito ou não ensinado. São aspectos que devem ser levados em consideração para uma reação imediata, na execução de gestos técnicos de ataque e defesa e para determinar os movimentos e táticas a serem adotadas (Borges, 1989).

Isao Okano sugere que se faça randori até não poder mais se levantar

Durante o randori o judoca não fala, nem pensa em qualquer coisa senão na superação de suas deficiências e em como dominar seu oponente. Um judoca sério não se distrai nem se comporta com desleixo quando pratica com um parceiro mais fraco e, sim, coloca em prática uma ampla variedade de técnicas, sempre procurando a perfeição. Contra um oponente de forças iguais, deve atacar constantemente e em geral com suas técnicas preferidas. Diante de um oponente mais forte, ele é geralmente forçado a concentrar-se na defesa, porém, sempre que possível, deve pressionar em ataques rápidos, vigorosos, sucessivos e agressivos. Em cada caso o praticante sério se esforça em fazer de cada um de seus movimentos uma obra de arte, e, ao fazê-lo, ter em mente só um objetivo: a superação.

A efetividade do randori na preparação do judoca, tanto para a competição quanto para a prática cotidiana, foi acertadamente descrita pelo professor Jigoro Kano: “Para criar meios de derrotar um adversário, o exercício do poder de imaginação, raciocínio, e julgamento é indispensável, e tal poder é naturalmente desenvolvido em randori.  É o estudo da relação mental e física entre dois indivíduos em prática ou competição em que centenas de lições podem ser aprendidas e assimiladas. Portanto, durante o randori, suas técnicas preferidas devem ser executadas corretamente com perfeição e velocidade, com seriedade e determinação”.

Segundo Okano, o verdadeiro randori é um período de treinamento exaustivo e não deve transformar-se num tipo de disputa para ver quem é o melhor

Recomendações para uma boa prática do randori

Aquecimento prévio, sempre.

Pratique, não fale durante o randori.

Para evitar lesões, não se arrisque, evitando cair agarrando-se no companheiro de qualquer maneira. Ao mesmo tempo, não aja com indiferença, caindo sempre que seu companheiro executar qualquer técnica.

Pratique defesas e bloqueios com técnica apropriada e no momento certo. Não evite a luta mantendo posições defensivas exageradas.

Troque suas pegadas (kumi-kata) e pratique técnicas do lado oposto ao de sua preferência.

Mantenha-se em movimento constante e em equilíbrio, ao mesmo tempo em que procura o desequilíbrio de seu oponente.

Respeite o espaço, fique atento para não arremessar de encontro aos outros.

Veja quantas vezes você consegue arremessar seu companheiro.

Veja quantas vezes você consegue arremessar valendo ippon.

Quantas vezes você consegue executar sua técnica preferida (tokui-waza).

Pratique arremessar logo que agarre seu adversário.

Pratique combinações de técnicas até que se tornem automáticas.

Observar também é aprendizado.

Estude enquanto os outros praticam.

Crie seu próprio estilo, não copie.

Pratique muito e descanse pouco.

Faça randori até que não possa mais se levantar.

“No Japão empregamos com frequência a palavra sessa-takuma, que se traduz pelos esforços contínuos com objetivo de se aperfeiçoar, de se aprimorar”, concluiu Isao Okano.

Para evitar lesões, não se arrisque, evitando cair agarrando-se no companheiro de qualquer maneira

Pratique defesas e bloqueios com técnica apropriada e no momento certo. Não evite a luta mantendo posições defensivas exageradas

O professor de judô e jiu-jitsu Odair Antônio Borges é
professor kodansha 8° dan pela CBJ e 7°dan no Instituto Kodokan,
graduado em educação física, com mestrado em educação
física pela USP, é professor universitário USP/PUC Campinas
e ex-atleta da seleção brasileira de judô entre 1965 e 1975.