Da proibição de lutar à glória: conheça a empolgante história da judoca Mônica Angelucci

Mônica ficava na janela do dojô, assistindo as aulas e implorava ao professor que a deixasse praticar judô junto com seu irmão

A judoca iniciou a prática do esporte aos 10 anos, e conta que foi necessário muito esforço durante a carreira para conquistar seu lugar como atleta de alto rendimento

Judô Paulista
Por Paulo Pinto e Helena Sbrissia / Global Sports
22 de julho de 2021 / Curitiba (PR)

Aos 10 anos de idade, Mônica Angelucci teve sua primeira aula de judô com o professor Takashi, no dojô Uno. Os caminhos que a levaram até ele, contudo, foram tortuosos. Tudo se deu graças a seu irmão, que, por sofrer bullying dos meninos que moravam na mesma rua, acabou sendo colocado nas aulas de luta pela mãe dos dois. Ela ficava sempre na janela, assistindo aos ensinamentos, e implorava ao professor que a deixasse praticar judô junto com seu irmão.

O empecilho, contudo, era a mãe. Na época, 1978, a prática da imensa maioria dos esportes era proibida às meninas – futebol, basquete e judô eram alguns deles. Portanto, quando pediu para ser matriculada junto do irmão, teve o desejo negado. “Eu pedia ao professor que me deixasse participar. E insisti tanto, mas tanto, que ele acabou deixando. Aí eu derrubei um dos meninos, que era faixa amarela, e ele se convenceu: você realmente precisa praticar judô.”

Mônica, que hoje é professora de judô em escolas de ensino fundamental com o amigo e professor de Beach Tennis, Raffaello Rossi © Arquivo

Chacota e segregação

Mônica conseguia bater de frente com os meninos do dojô, já que tinha de lutar com eles por ser a única menina. Eles ficavam bravos, mas com um apelo do sensei a sua mãe, ela finalmente se viu inserida no esporte que marcaria, para sempre, sua vida. Contudo, mesmo quando já participava da seleção brasileira de judô, o estigma de ser mulher perdurou.

“Até hoje existe certo preconceito contra o feminino. Apesar de não existir a maldade que havia antes, ainda há rótulos preconceituosos. Felizmente já não vemos tanta chacota e a segregação não acontece mais”, explica Mônica, referindo-se à realidade de 30 anos atrás, quando sua carreira estava no auge e ela era preterida, tendo de treinar separada dos homens. “Hoje ocorre exatamente o contrário. São as mulheres que têm protagonismo, enquanto os homens exibem um judô menor e são meros coadjuvantes.”

Mônica Angelucci foi uma das muitas mulheres prejudicadas pelo decreto publicado por Getúlio Vargas em 1941, que as proibia de praticarem esportes. Em 1979, a participação das atletas brasileiras nas competições oficiais dentro e fora do Brasil era muito restrita, o que atrasava o desenvolvimento feminino no esporte e prejudicava as equipes nacionais na contagem geral dos pontos nos campeonatos internacionais. Como a proibição existia apenas no Brasil, as mulheres de outros países saíram na frente em preparo e rendimento.

Seleção brasileira de 1988 na Colômbia, destaque da foto em pé a esquerda é o técnico Paulo Wanderley Teixeira, atual presidente do Comitê Olímpico do Brasil com os judocas Ricardo, Afonso, Soraia Carvalho, Daniel Dell’Aquila, Frederico Flexa, Mônica Angelucci, Marco (Rato), Nélson Dell’Aquila, Márcio Pimentel, Rosicleia Campos (superintendente técnica da seleção brasileira feminina), Soraia André, Valéria e Rosana Barros

Joaquim Mamede era um gênio

Mesmo assim, em 1978, Joaquim Mamede, ex-presidente da Confederação Brasileira de Judô (CBJ), conseguiu levar uma equipe feminina a Montevidéu, no Uruguai, para participar do Campeonato Sul-Americano de Judô. A forma como o hábil dirigente resolveu esta questão foi no mínimo inusitada: ele registrou as atletas no Conselho Nacional de Desportos (CBD) com nomes masculinos. Foi assim que Ana Maria de Carvalho e Silva, Cristina Maria de Carvalho e Silva, Patrícia Maria de Carvalho e Silva, todas filhas do professor Mamede, e Kazuê Ueda, filha do professor Takeshi Ueda, conseguiram permissão para a comprar passagens e disputar o evento.

Por mais que fosse arriscada, a atitude inusitada do professor Joaquim Mamede conseguiu fazer a pressão necessária para que o decreto que impedia as mulheres de lutarem fosse derrubado em dezembro daquele mesmo ano no CND e que elas conseguissem a liberdade tão sonhada para praticar e competir. “Eu nunca imaginei que me tornaria uma atleta e que viveria do esporte, até que participei da primeira seletiva.”

Mônica Angelucci conduz a tocha olímpica na Rio 2016

A judoca paulista observa, porém, que a prática esportiva no alto rendimento sempre foi muito mais voltada para a classe masculina. Um claro exemplo disso aconteceu em 1987, quando após ser campeã dos Jogos Pan-Americanos com Soraia André, em Indianápolis, Mônica recebeu a convocação formal para as Olimpíadas de Seul 1988. À época, elas ficaram desesperadas, porque não dispunham da estrutura necessária para realizar treinamentos. Por isso, precisaram treinar com homens.

“A gente sempre treinava onde dava. São Paulo, Palmeiras e Corinthians tinham grande quantidade de praticantes. A gente também ia à Mooca, ao Tietê. E uma ou duas vezes por semana conseguíamos um espaço no Centro de Aperfeiçoamento Técnico da Federação Paulista de Judô, onde todas nós nos reuníamos para treinar com o sensei Massao Shinohara, que naquela época comandava os treinos no CAT e era técnico da seleção brasileira.”

Em 1988, quando foi às suas primeiras Olimpíadas, Mônica conta que disputou a medalha de bronze, mas acabou perdendo nos últimos 30 segundos de combate porque “faltava malícia de torneio”. Ela ganhou a luta por 20 minutos e, no final, o técnico a instruiu para que enrolasse no chão até o tempo findar. “Era o que a adversária sabia fazer”.

O preparo técnico brasileiro

Para Mônica, isso demonstra o despreparo técnico e a falta de malícia que as brasileiras enfrentavam em competições oficiais internacionais e que muitas vezes, acabava tirando medalhas delas. Havia garra e talento, mas faltava esse quê relacionado ao estudo do adversário e das melhores técnicas para explorar a fraqueza das oponentes.

Para competir no exterior, algo extremamente caro quando Mônica estava na ativa, os atletas contavam com o famoso “paitrocínio” ou com a sorte de serem escolhidos por algum patrocinador. “Eram os atletas que corriam atrás.” Era a mãe que dava um jeito de bancar tudo para a judoca até que, quando voltou dos Jogos Pan-Americanos de 1987 com sua primeira medalha de ouro, recebeu uma proposta de patrocínio da marca de chicletes Ping Pong.

Mônica avalia que, hoje em dia, o judô desfruta uma estrutura totalmente diferente e infinitamente maior – e melhor também – por conta do apoio das iniciativas pública e privada à CBJ. “Na época, nós não sabíamos nem se conseguiríamos embarcar para a competição devido à inexistência de qualquer tipo de suporte à confederação. Outro agravante é que não sabíamos quem iríamos enfrentar e como o adversário lutava, se era destro ou canhoto. Hoje, o estudo de atletas é muito mais apurado, o que garante a evolução da categoria dentro do País.”

Pioneira na modalidade, Mônica comemora hoje a qualidade técnica do judô feminino

A potência feminina no esporte

“No judô feminino há uma união muito mais afetiva, que acaba ajudando muito, já que são meses participando de competições. Hoje existe uma estrutura com psicólogos, nutricionistas e terapeutas, o que proporciona uma segurança muito maior aos atletas. O toque, o jeito de falar e acolher são importantes em competições longas”, explica Mônica. Isso favorece o judô praticado pelas mulheres, em comparação com o masculino.

“No Brasil o judô é o esporte que conquistou o maior número de medalhas olímpicas. Mas a partir de 2008 o judô feminino explodiu e recentemente as mulheres superaram os homens em termos de rendimento. Sem menosprezar o judô masculino, claro, mas no geral o judô feminino está ganhando cada vez mais espaço e mostrando enorme potencial de crescimento.”

Mônica, que é apaixonada por nage-waza, shime-waza, te-waza e osae-komi-waza, parou de competir aos 27 anos, em 1995, quando saiu da seleção que integrava há dez anos. “A idade, os filhos, responsabilidades… É outra vida, são outros objetivos.” Segundo a judoca paulistana, se ela pudesse, voltaria a competir, porque sente muita falta. “Mas hoje, com duas mãos operadas, uma prótese na cervical, joelho operado… Infelizmente atleta de alto rendimento não é parâmetro de qualidade de vida ou saúde, apesar dos benefícios na musculatura, que é mais desenvolvida do que a de alguém que nunca lutou na vida.”

Equipe brasileira no US Open de Judô em Colorado Springs em 1988 com Sérgio Lex, Marcus Silva, Adolfo, Jairo Rodrigues, Altair Bezerra Araújo, Silvio Bezerra Araújo, Megatron, Mônica Angelucci, Leonardo Thimbau, Leonardo, Rosana Moraes de Barros e Ricardo Nascimento

Aposentadoria no esporte

Atualmente na graduação roku-dan (6º dan), que obteve no dia 29 de junho deste ano, a professora kodansha explica seu descontentamento pelo Brasil, esportivamente, dar atenção principalmente ao futebol. “A gente não consegue se aposentar por defender o País como atleta do alto rendimento, porque não há respaldo governamental.”

Ela continua: “Na minha categoria, eu já defendi não apenas o Brasil, mas um continente inteiro (referindo-se às Olimpíadas de 1988, em que foi escolhida junto de Soraia André para representar a América Latina). Hoje eu poderia usufruir diversos benefícios dados pelo esporte, mas eu preciso trabalhar.”

Mônica acumula, além da medalha de ouro conquistada em 1987, uma medalha de bronze do ano anterior, no Campeonato Pan-Americano de Judô de 1986, e um bronze nos Jogos Pan-Americanos de 1991, realizados em Havana, Cuba.

Ela se incomoda ao ver pessoas com 70 anos tendo de dar aulas e procurando milhões de outras saídas para se aposentar. “Atletas que estavam no auge da carreira hoje vivem na miséria. Não há um respaldo, uma garantia, nem um piso salarial, mesmo que baixo.”

Em 2017 foi aprovada pela Comissão do Esporte uma proposta para assegurar aos atletas profissionais e semiprofissionais de alto rendimento o direito a aposentadoria especial, desde que comprovado o exercício da atividade e com 20 anos de contribuição para o Regime Geral de Previdência Social.

Sensei Naoichi Ono e a jovem judoca Monica Angelucci na década de 1980

Como consta no site da Câmara dos Deputados, a aposentadoria especial é um benefício decorrente de um trabalho realizado em condições prejudiciais à saúde ou integridade física do segurado e tem como objetivo principal compensar o trabalho de quem presta serviços em condições adversas à sua saúde.

“Pelo texto aprovado – Projeto de Lei Complementar (PLP) 16/15, do deputado Andres Sanchez (PT-SP) –, para serem considerados segurados especiais, os atletas profissionais e semiprofissionais de alto rendimento deverão disputar campeonatos nacionais na categoria esportiva à qual pertencem”, é o que diz a Agência Câmara de Notícias.

Mônica conta que, em sua época, não havia uma instrução aos atletas, que acabavam ficando sem o respaldo necessário, mas, hoje em dia, a maioria dos competidores integra as equipes da Marinha ou do Exército.

Por isso, quando perguntada sobre o a premiação recorde para os atletas medalhistas nas Olimpíadas de Tóquio 2020, garantida pelo COB, Mônica comemora. “O atleta vive por aquilo, ele deixa de fazer um trabalho para dar o sangue naquele segmento e conseguir trazer uma medalha olímpica ao Brasil. Esse incentivo do comitê olímpico é muito mais do que merecido, porque o desgaste psicológico é muito grande.”

Ainda sobre o assunto, ela relembra: “O Banco do Brasil chegou a fazer um patrocínio, o que dava um bônus, mas o valor era apenas simbólico, nada absurdo. E ainda acho que é pouca a remuneração. Basta um ano sem treinamento, e o corpo do atleta já muda absurdamente.”

Os benefícios do judô para a sociedade

“Eu acho que o judô, com sua filosofia japonesa que prega o respeito, a educação, a dignidade, traz um benefício para a saúde física e mental de qualquer praticante, desde o mais novo até o idoso. É uma filosofia diferente. Há alguns costumes japoneses que são levados ao dia a dia, como a disciplina, respeito aos horários e responsabilidades, por exemplo.”

Mônica conta que, em sua casa, com dois filhos, mesmo sem nunca ter proibido, nunca houve interesse por bebidas, por exemplo, algo comum na idade de ambos segundo ela. “Eles não dão problema, preferem a companhia da família à dos amigos. Eles conseguem conversar com adultos, têm maturidade e são centrados. O esporte traz uma mudança de vida formidável para uma família.”

Homenagem realizada pela CBJ em 2007 aos medalhistas dos Jogos Pan-Americanos com Paulo Wanderlei (presidente da CBJ), Aurélio Miguel, Carlos Eduardo Hespanha, Sumio Tsujimoto, Renato Dagnino, Carlos Alberto Cunha, Rodolfo Yamayose, Lhofei Shiozawa, Carlos Eduardo Santos Motta (Tico), Solange Pessoa, Carlos Bortole (Dedão), Carla Lívia, Nélson Onmura, Roberto Machusso, Oswaldo Simões (Boneca), Luiz Juniti Shinohara (superintendente técnico da seleção brasileira masculina), Henrique Guimarães e Mônica Angelucci entre outros.

O futuro da modalidade

Mônica explica que, hoje em dia, o judô é muito mais um jogo de forças e que, antigamente, a categoria se beneficiava mais de técnica. Ela “culpa” as regras que mudaram, além do próprio sistema. O “judô puro”, como chama, ainda existe, mas é mais praticado por pessoas mais velhas, que preferem ensinar um judô mais técnico. “Os técnicos novos, às vezes, misturam muito a técnica e a força, e a força prevalece.”

Seus votos para o futuro são que o judô feminino cresça cada vez mais e que traga muitos resultados, assim como o masculino fez, porque a tendência é que cada vez mais mulheres pratiquem o esporte e, mais, que o pratiquem com muita qualidade.

Ao final da entrevista, Mônica Angelucci citou sua frase favorita do mestre Jigoro Kano: “O judoca não se aperfeiçoa para lutar, mas luta para se aperfeiçoar”.