Domo-arigatô-gozaimashita, sensei Georges Kastridget Mehdi

Sensei Georges Mehdi em aula na famosa Mehdi Judô, em Ipanema Foto: Yasuyoshi Chiba/AFP

Francês naturalizado brasileiro e um dos mestres mais renomados no mundo, aos 89 anos o professor kodansha (9º dan) Georges Kastridget Mehdi dá adeus aos tatamis, e deixa o legado de maior referência técnica do judô verde e amarelo de todos os tempos

Memória
7 de novembro de 2018
Por PAULO PINTO I Fonte STANLEI VIRGÍLIO I Fotos DIVULGAÇÃO
Curitiba – PR

Faixa-vermelha 9° dan de judô, sensei Mehdi dedicou 75 anos da sua vida a aprender, aprimorar e ensinar a arte do Caminho Suave. Nascido na França em 21 de dezembro de 1928, veio sozinho para o Brasil com 16 anos, logo após a 2º Guerra Mundial, período em que sofreu duras provocações em virtude da prisão do seu pai, que era membro da resistência francesa. Nessa época já praticava o judô, tendo começado no esporte com o professor Kawaishi, criador do método ocidental de treinamento e promoção com faixas coloridas de acordo com os graus de conhecimento dos alunos.

No Brasil, nos anos do seu aprendizado, não media esforços na busca de novos conhecimentos. Foi quando decidiu estudar na Universidade de Tenri, no Japão, formando-se como professor de judô e trazendo na sua volta (adaptado ao nosso clima) o circuit-training utilizado pela equipe japonesa. Naquela ocasião, o sensei Okano, medalhista olímpico e um dos grandes judocas de todos os tempos, declarou: “Mehdi, se você estivesse nas Olimpíadas, tenho a certeza de que ganharia de todos os participantes”.

Infelizmente, pela pouca visão ou até má-fé dos nossos dirigentes, preocupados mais com suas vantagens pessoais do que com as do País, Mehdi, por ser naturalizado, foi preterido na convocação, apesar de ter vencido por ippon todas as suas lutas nas eliminatórias. Isso em todas as classes, categorias e também no absoluto.

Grande ditada, Mehdi fazia transmissão de conhecimento com maestria

Do Japão para o mundo

No Japão, por dez anos Mehdi dividiu os tatamis com as maiores lendas do judô mundial. Nomes como Isao Okano, Anton Geesink, Masahiko Kimura, Shinobu Sekine, Sasahara, Ninomya, Minatoya e o lendário professor Matsumoto, que comandava a seleção japonesa, agregaram conhecimento em sua longa e excepcional jornada pelo esporte.

Coerente com a sua busca de ensinamentos para aplicá-los em sua própria vida e no ensino dos seus alunos, após os vários anos no Japão trouxe uma bagagem riquíssima de conhecimentos e os adaptou ao seu estilo pessoal. Isso lhe valeu elogios como o do professor Takemori, vice-presidente da Confederação Norte-Americana de Judô: “Em meus 60 anos de judô, nunca aprendi tanto quanto em um seminário com o professor Mehdi, em Boston, no ano de 1996”.

“Treinar com o professor Mehdi é como treinar com a própria sombra.”

Já o professor Matsumora, do New York Athletic Club e da YMCA, quando esteve treinando no Rio de Janeiro, declarou: “Treinar com o professor Mehdi é como treinar com a própria sombra”. Pernilla Anderson, atleta da equipe olímpica sueca, que por duas vezes esteve treinando na academia comenta: “Não existe nenhum professor no mundo com a sensibilidade para entender o judoca como o sensei Mehdi”.

A idade avançada não parou este gigante dos tatamis Foto: gettyimages

Já o campeão mundial Mark Swain, quando em sua visita no Rio de Janeiro, onde treinou na academia do professor Mehdi, foi enfático: “Vocês não sabem a sorte que têm em ser alunos do professor Mehdi, tão grandes são a sua técnica e seu conhecimento do judô”.

Como demonstram os depoimentos de tantas personalidades, o valor de uma pessoa – entre muitas coisas estranhíssimas que acontecem em nosso País – é sempre questionado por alguns ou então “esquecido”. E assim, a “sorte” a que se referiu Mark Swain, com exceção dos alunos da academia de Ipanema, foi muito mais aproveitada pelos participantes dos seminários que sensei Mehdi ministrou em outros países, especialmente nos Estados Unidos, França e Espanha.

Portanto, com relação a este aspecto de sua biografia, é importante mencionar os numerosos trabalhos efetuados para a Organização dos Estados Americanos (OEA), quando deu aulas em vários países da América Central, e ainda na Universidade Gama Filho e na Escola de Educação Física do Exército. Estas instituições foram unânimes em reconhecer o seu valor e homenageá-lo.

Oswaldo Simões, Georges Mehdi e Rudolf Hermanny na cerimônia de abertura do seminário os pioneiros do judô

Mehdi falava fluentemente quatro idiomas: francês, inglês, japonês e português. Dono de uma didática impressionante, não é exagero dizer que quando alguém recebia uma explicação, uma aula do sensei Mehdi, obtinha o melhor, recebia um pedaço de sua vida que era totalmente voltada para o judô. Portanto, nada mais justa que a promoção ao 9º dan concedida pela Confederação Brasileira de Judô em fevereiro de 2001. Foi naquela ocasião que foi chamado com toda justiça de Doutor do Judô, numa reportagem.

Como atleta da seleção brasileira conquistou medalhas de prata e bronze no absoluto, respectivamente, nos Jogos Pan-Americanos de São Paulo 1963 e Winnipeg 1967 nos quais atuou também como técnico e trouxe para o Brasil cinco medalhas: duas de ouro, uma de prata e duas de bronze. Várias vezes campeão brasileiro absoluto, seu último título no sênior foi conquistado aos 45 anos.

Como professor, Mehdi formou ou treinou diversos atletas de renome, em seu dojô. Nomes como Rickson Gracie, Oswaldo Cupertino Simões Filho, Paulo Roberto Duarte, Luís Virgílio, Oscar Fenelon Muller, Ney de Lucca Mecking, Flávio Canto, Santo Marzullo, Ricardo Campos, Marco Aurélio Alencar, Alberto Nogueira de Carvalho, Sylvio Behring e Sebastian Pereira, entre outros.

Georges Mehdi durante uma aula de judô Foto: Yasuyoshi Chiba/AFP

Carismático e pragmático, Mehdi deixa três filhos, netos e uma legião de amigos, alunos e admiradores da sua personalidade forte, de sua didática, do comprometimento e de sua capacidade de discernimento e compreensão do universo judoísta.

Mensagens de alunos e amigos

Em sua página no Instagram, Flávio Canto, medalhista de bronze nos Jogos Atenas 2004, reverenciou e agradeceu o aprendizado com o mestre querido.

“Dia de luto no judô e no meu coração. Sensei Mehdi se foi. O mais técnico de todos que conheci, e com o qual tive o privilégio de aprender um pouco do tanto que ele carregava do Caminho Suave.

Esta foi nossa última foto. Há pouco tempo ele disse: “Flavinho, quando achar que está rápido, está lento; quando achar que está forte, está fraco; e quando achar que sabe tudo ainda não sabe nada. Só assim você cresce”. Sensei, seu legado continuará vivo por muitas gerações. À família e a todos os privilegiados que dividiram os tatamis com ele, todo meu carinho nesse momento tão difícil. Sensei, foi uma honra ter você no meu caminho.”

O irlandês Jonathan Cooke e Georges Mehdi

Pedro Daudt, um de seus discípulos mais próximos, e diretor da Associação de Judô Veteranos do Rio de Janeiro, lamentou: “Sensei Mehdi foi sem dúvida o maior nome do judô nacional e um dos melhores professores da sua época. O judô nacional e mundial perdem uma grande referência e também o conhecimento de toda uma vida de paixão dedicada ao estudo do judô, na transmissão de seus valores e conhecimento. Quem teve a sorte de ter aula com ele sabe exatamente a dimensão do que expressamos”.

Sebastian Pereira, bronze no Campeonato Mundial de Birmingham em 1999, escreveu: “Sensei Mehdi, sem palavras para descrever a importância de sua liderança e exemplo para tantas pessoas, tantos alunos e para o judô brasileiro! Que o senhor possa continuar nos guiando aí de cima como sempre fez aqui conosco! Que o senhor possa descansar em Paz”.

“Perdemos uma enciclopédia de judô, que contribuiu muito como atleta, como professor e, principalmente, como divulgador da essência filosófica do judô”, disse Ney Wilson, ex-presidente da Federação de Judô do Estado do Rio de Janeiro e gestor de alto rendimento da Confederação Brasileira de Judô.

Jucinei Costa, presidente da Federação de Judô do Estado do Rio de Janeiro; Leonardo Lara, vice-presidente; e o superintendente Jeferson Vieira, em nome de todos os colaboradores da FJERJ, se solidarizaram com a família e os amigos do professor Mehdi.

Georges Mehdi e Rudolf Hermanny, os amigos de toda a vida

São Paulo reverencia o mestre franco-fluminense

Francisco de Carvalho Filho, presidente de honra da Federação Paulista de Judô, lembrou que o professor Mehdi sempre focou grandes objetivos e jamais se acomodou.

“Cada um de nós constrói seu caminho, e o fazemos em função daquilo que buscamos e acreditamos ser o mais correto. O professor Georges Kastridget Mehdi se notabilizou por suas escolhas, por uma visão aguçada, por sua determinação e comprometimento com os princípios do judô”, disse o professor Chico.

“Nada nos acontece por acaso, e o sensei Mehdi chegou ao topo do judô mundial porque este foi o seu principal objetivo. Desnecessário discorrer aqui seus títulos e conquistas. Quero deixar registrado apenas o meu respeito e a profunda admiração por este judoca notável que elevou o judô do Brasil ao mais alto nível, internacionalmente. Sensei Mehdi faz, e fará sempre, parte intrínseca da seleta e restrita casta de professores que compõem a reserva ética e moral do judô brasileiro”, enfatizou o dirigente paulista.

“Em nome da diretoria da Federação Paulista de Judô e de toda a comunidade do judô paulista, expresso profundos sentimentos aos familiares e amigos deste judoca notável que certamente deixará muita saudade”, concluiu Francisco de Carvalho.

Georges Mehdi expandiu o judô para além da comunidade japonesa

Maior nome do judô nacional e um dos melhores professores de sua época

Ex-atleta da seleção brasileira e presidente da Associação de Judô Veteranos do Rio de Janeiro, Oswaldo Cupertino Simões Filho lamentou a perda inestimável e lembrou alguns feitos do grande mestre.

“Nossa maior referência no judô, o professor Georges Mehdi foi para os tatamis do plano superior. Sem dúvida alguma, ele é o maior nome do judô nacional e um dos melhores professores de sua época. O judô nacional e mundial perdem uma grande referência e o conhecimento acumulado numa vida de paixão dedicada ao estudo do judô, na transmissão de seus valores e conhecimento. Quem teve a sorte de ter aula com ele compreende a dimensão exata do que expressamos”, disse.

Simões lembrou que durante dez anos o sensei Mehdi estudou e lecionou judô no Japão. Aprendeu e treinou com os melhores judocas do mundo de sua época. Respeitado no Japão e no mundo, foi técnico das seleções brasileira e do Rio de Janeiro e, enquanto esteve à frente de ambas, os resultados foram surpreendentes.

“Lamentavelmente, no Brasil os grandes nomes não são valorizados. Ele poderia ter sido aproveitado, num passado recente, no ensino de seleções de Estados e do Brasil, principalmente na base”, afirmou.

Carismático, Mehdi era sempre o centro das atenções e muito querido por todos que o conheciam

A Associação de Veteranos do Rio de Janeiro realizou alguns seminários com sensei Mehdi, e todos obtiveram enorme sucesso e lotação máxima. De acordo com Simões, Sensei Mehdi ficava feliz em ensinar para este grupo. Foram seminários marcantes não só pela técnica requintada e detalhada transmitida por ele, mas principalmente pela paixão e a vitalidade que transmitia. Paixão esta de quem vive e ama o judô em sua plenitude.

“Ficam órfãos, sua família, seus amigos, seus alunos, seus admiradores, a página Memória do Judô e a Associação Veteranos de Judô do Rio de Janeiro. Domo arigatô, sensei George Mehdi”, concluiu Simões

Para Mehdi ser campeão não é importante, já que isso representa apenas uma faze da vida que algum dia termina e cai no vazio, somente a técnica pode e deve persistir

Velório e cremação

Aos que desejarem prestar as últimas homenagens, comunicamos que o velório do sensei Mehdi será realizado nesta quinta-feira (8), a partir das 9 horas, na capela 2 do Memorial do Carmo, no Rio de Janeiro. A cremação será no mesmo local às 14 horas. O Memorial do Carmo está situado na Rua Monsenhor Manuel Gomes, 287, no Caju, Rio de Janeiro (RJ).