Judô: luta única de essência imutável

O peso leve Zhansay Smagulov do Cazaquistão encaixa o uchi-mata em Victor Sterpu da Moldávia na primeira rodada do Grand Slam de Paris de 2020

O judô como luta foi criado a partir de pura técnica, embasado no desequilíbrio e arremessos perfeitos, visando ao aperfeiçoamento do ser humano num contexto biológico, psíquico, moral, espiritual, social e técnico

Ponto de Vista
25 de abril de 2020
Por Prof. Me. ODAIR BORGES I Foto EMANUELE DI FELICIANTONIO
Artigo publicado na Revista Budô em 2010
Curitiba – PR

Pelo fato de ter aprendido, praticado e competido durante os anni mirabilis do judô mundial, tenho agora, na condição de professor, a obrigação de argumentar e tecer comentários sobre a minha preocupação com o judô nacional e internacional.

As novas regras da Federação Internacional de Judô (FIJ) pretendem justamente resgatar o judô que estava sendo descaracterizado por influência dos lutadores do Leste Europeu. Adeptos de sambo (Rússia), kurash (Uzbequistão), Bkyukl Bokh (Mongólia) e de outras lutas tradicionais e similares passaram a praticar judô, pois dessa maneira poderiam participar de campeonatos internacionais e Jogos Olímpicos. O agarramento nas pernas e levantamentos para arremessar o adversário são técnicas específicas dessas modalidades que, usadas nas lutas de judô, permitiram certo incremento vantajoso e competitivo, resultando em inúmeras vitórias, às vezes inesperadas. Tais “técnicas” começaram a ser praticadas e aceitas, ou ignoradas, por dirigentes e árbitros que não estavam preocupados com as tradições do judô. Muitos atletas no mundo, inclusive alguns brasileiros, passaram a utilizá-las, apesar de o nosso judô sempre ter sido bem próximo e semelhante ao japonês.

Hoje esses lutadores e seus seguidores, com as novas regulamentações, não sabem lutar o judô na sua essência e assim se acham prejudicados!

Desta forma, entendo que não foi nenhuma decisão radical da FIJ, e sim uma preocupação de dirigentes que praticaram o verdadeiro e tradicional judô que, em tempo, perceberam o mau caminho a que estavam sendo levados a modalidade e seus princípios. Desde a introdução do koka, yuko e as penalidades em 1974, não se buscava mais o ippon, a técnica perfeita. Qualquer queda valia alguma pontuação e os atletas e técnicos começaram a adotar táticas de luta para penalizar o adversário por falta de combatividade e saídas da área de luta. A dificuldade para segurar no judogi era evidente e agarrar nas pernas tornou-se mais fácil. Fundamentado em técnica e velocidade, o judô japonês tinha dificuldade para enfrentar adversários que evitavam segurar no judogi e apenas se utilizavam da força física. Assim mesmo, o Japão, com certa dificuldade em fazer esse tipo de luta, vencia em algumas categorias.

É preciso entender que o judô é único. Podemos citar o exemplo do sumô, 23 AC, padronizado como luta em 710 AD, que se mantém até hoje fiel às suas tradições. Atualmente lutadores da Mongólia, como Asashoryu e Hakuho (nomes japoneses), que são grandes campeões (Yokozuna) de sumô no Japão, assim como Kotoosh, da Bulgária, aprenderam e praticam o sumo japonês. Suas técnicas são as de sumô e nunca se tentou introduzir ou permitir qualquer tipo de técnica de lutas estrangeiras nessa modalidade.

Portanto, não existe atleta prejudicado pelas novas regras, o que existe é falta de conhecimento teórico/prático dos fundamentos do judô. Professor Jigoro Kano, na sua preocupação pedagógica, também ensinou técnicas de posicionamento do corpo (tai-sabaki), técnicas de bloqueio, desvios e técnicas de defesa, fundamentadas no sem-no-sem e gonosen, denominações de 1888, que hoje precisam novamente  ser citadas nos comentários das novas regras, uma vez que esses princípios deixaram de ser ensinados e praticados.

A disputa pela pegada (kumi-kata) é fruto da falta de orientação. Praticantes e atletas, temerosos de serem dominados e derrubados, dificultam o contato direto tomando posições defensivas e abaixando o quadril, não praticando mais as defesas, parte essencial do judô. Judoca nenhum precisa praticar “novas técnicas” ou “inventá-las”, estão todas classificadas pedagogicamente, desde que o professor Kano as organizou em 1900. Consequentemente, não existe nenhuma grande mudança.

O judô como luta foi criado a partir de pura técnica, embasado no desequilíbrio e arremessos perfeitos, visando ao aperfeiçoamento do ser humano num contexto biológico, psíquico e social. Jigoro Kano preconizava que no judô a busca pela perfeição técnica e espiritual envolve conduta moral, disciplina, autocontrole, respeito, seriedade e sinceridade. Ele também deixou registrado que a competição tem validade como meio de avaliação do processo de desenvolvimento pessoal adquirido em sentido amplo, isto é, espiritual, moral e técnico.

Em síntese: o judô possui a essência que as lutas ocidentais não possuem.

A cruz pode ser pesada de carregar, mas só ela equilibra o nosso andar”
Joaquim Nabuco

O professor de judô e jiu-jitsu Odair Antônio Borges é
professor kodansha 8° dan pela CBJ e 7°dan no Instituto Kodokan,
graduado em educação física, com mestrado em educação
física pela USP, é professor universitário USP / PUC Campinas
e ex-atleta da seleção brasileira de judô entre 1965 e 1975.