No ano do cinquentenário da CBJ, o judô brasileiro vive a sua maior crise de identidade e falta de comando

Vice-campeão mundial dos pesados em 2017 e 4º colocado no ranking da FIJ, o mato-grossense David Moura é um dos principais nomes da geração que despontou no último ciclo olímpico

Em breve, as pessoas que dirigem a seleção completarão 20 anos em seus cargos. O modelo de gestão da CBJ inibe a projeção dos novos talentos, frustra treinadores e engessa a modalidade

Hantei
10 de janeiro 2019
Por PAULO PINTO I Fotos BUDÔPRESS, MÁRCIO RODRIGUES/MPIX e FRANCISCO MEDEIROS

Curitiba – PR

Após o Campeonato Mundial de Baku foram acionados o sinal de alerta e a luz vermelha para o judô brasileiro, mas para todos aqueles que trabalham em torno do shiai-jô, a tempestade já se anunciava há muito tempo.

Basta observar com um pouco mais de atenção para constatar que o judô do Brasil está distanciando-se de sua própria essência, o que emperra seu desenvolvimento. A razão principal deste quadro é a falta de personalidade. O Brasil perdeu sua identidade com o judô japonês.

Esta perda de identidade levou nossos atletas a adotarem o modelo europeu como referência, mas este padrão não se encaixa na nossa cultura. Além de ser muito mais difícil, não é eficiente e tem causado grande transtorno, já que, com a ausência de identidade, muitos técnicos e professores ficam sem saber para onde ir.

Professor Ney Wilson, gestor de alto rendimento da CBJ

De um lado vemos os professores embasados em nossa escola tradicional, que é eminentemente japonesa, e do outro a comissão técnica da Confederação Brasileira de Judô, que tenta meter o modelo europeu goela abaixo dos atletas que compõem as seleções brasileiras sub 18, sub 21 e sênior.

Não devemos competir naquilo em que os nossos adversários são mais fortes. No judô oriental há duas potências: Japão e Coréia. O Brasil priorizou participar de um grupo predominantemente europeu, que, além de ser muito maior, domina outros esportes de combate que fazem parte de sua cultura, mistura-os com o judô e acaba levando vantagem sobre aqueles que o enfrentam na especialidade dele.

Os japoneses não aderem a nada, não se deixam levar por modismos sazonais, e isto faz com que mantenham total hegemonia na modalidade. E isto deve perpetuar-se, pois na medida em que o tempo passa, a técnica dos concorrentes enfraquece e a dos japoneses se fortalece. É comum vermos hoje atletas disputando mundiais sem saber fazer o kumi-kata. Sobra categoria para o judô japonês, e falta para os demais.

Campeã olímpica, mundial e a maior medalhista do judô brasileiro de todos os tempos, Rafaela Silva é a única atleta da seleção que não abre mão de participar das competições nacionais, proporcionando importante intercâmbio para as atletas do peso leve

Antes, nós tínhamos uma condição muito boa, pois a escola brasileira era eminentemente japonesa e seguíamos os passos do Japão. Mas por que perdemos isso com o tempo? É simples.

Até duas ou três gerações atrás, os judocas do alto rendimento não tinham a vivência internacional que os atletas de hoje possuem. Aprendiam e treinavam aqui. Se fizermos uma análise superficial dos medalhistas olímpicos brasileiros mais antigos, veremos que todos vieram da escola japonesa.

Nomes como Chiaki Ishii, Douglas Vieira, Walter Carmona, Luís Onmura, Aurélio Miguel, Rogério Sampaio, Henrique Guimarães, Carlos Honorato, Tiago Camilo, Leandro Guilheiro, Flávio Canto e Felipe Kitadai possuíam técnica refinada e excelente condição física.

O Japão foi campeão e o Brasil vice no inédito campeonato mundial por equipes realizado em 2017, já em 2018, nem subimos no pódio

Com exceção dos quatro últimos, esses atletas quase não participaram do circuito europeu e só viajavam para competir, o que lhes permitia manter a pegada e o estilo brasileiro, fundamentado predominantemente no judô japonês.

Falta de identidade e comando

Além da falta de identidade, há dois aspectos fundamentais para o desenvolvimento do judô competitivo: autoridade técnica e comando forte.

Sobre a autoridade técnica de uma seleção brasileira sênior, entendo que o peso de quem está no comando deve ser muito grande, o que só se conquista de duas formas: ou o técnico foi um grande medalhista no passado ou foi um grande formador de atletas. As pessoas que hoje comandam a seleção brasileira sênior não conquistaram nada nos tatamis e muito menos formaram atletas.

Fora isso, não existe e nem pode existir autoridade. A voz de comando é muito importante, e não se trata de algo subjetivo. Só se obtém autoridade fundamentada em fatos. O comandante tem de ser exigente, forte e exercer seu trabalho com determinação e sangue nos olhos. Quem assiste aos treinos da seleção brasileira nota claramente a falta de liderança e comando.

Uma das maiores esperanças de medalha para o Brasil em Tóquio 2020, a gaúcha Mayra Aguiar possui um dos retrospectos mais expressivos do judô verde e amarelo

Ney Wilson, gestor de alto rendimento da CBJ, vai completar 20 anos no comando da equipe verde e amarela, e antes de ocupar este cargo foi presidente da Federação de Judô do Estado do Rio de Janeiro por vários mandatos. Temos, portanto, um excelente político na gestão do alto rendimento; prova disso é que se mantém no cargo por quase duas décadas.

É comum ouvirmos queixas dos professores e técnicos que trabalham nos Estados a respeito do trabalho da comissão técnica da classe sênior. Reclamam que os atletas voltam dos treinamentos de campo cheios de vícios e confusos, em função do trabalho desenvolvido pela gestão de alto rendimento da CBJ.

É preciso que se faça um reparo por inteiro do judô brasileiro; a partir disso, poderemos sonhar com uma gestão técnica forte e independente, e obviamente, isso passa pela base.

Seríamos levianos e hipócritas se afirmássemos que o judô brasileiro não evoluiu nas últimas décadas. Evoluímos muito na questão da administração, eventos, patrocínios e investimento, mas a área técnica foi politizada, engessada, e perdemos nossa identidade.

Responsável pela formação de centenas de atletas para o alto rendimento e um dos técnicos mais importantes nas campanhas olímpicas do passado, o professor kodansha Geraldo Bernardes é apenas um dos inúmeros técnicos que poderiam dar enorme contribuição ao preparo das equipes brasileiras

A parte administrativa evoluiu expressivamente, enquanto a técnica parou no tempo, e com isso perdemos muito. Enquanto não conseguirmos equalizar as áreas administrativa e técnica, não chegaremos onde queremos.

Vivemos um imobilismo, um conformismo, total e absoluto e, se formos pesquisar onde estão os atletas da seleção brasileira hoje, descobriremos que essa nova geração faz treinamento de campo na Áustria, enquanto os mais experientes – que quase não competiram em 2018 – estão em suas bases.

Temos um número muito grande de professores e técnicos. Somente São Paulo credencia 1.500 técnicos anualmente, mas já não há mais os grandes mestres japoneses que existiam no passado. Eram professores que formavam excelentes atletas e não saíam do País, não herdavam nenhum cacoete técnico europeu e não contaminavam nossos jovens judocas.

No passado, o então presidente da FJERJ, Ney Wilson, eterno adversário de Paulo Wanderley Teixeira nas eleições da CBJ, foi alçado para o comando técnico e desde então recebe o maior salário da entidade

Já os atletas viajavam apenas para competir e voltavam em seguida. Não havia treinamentos de campo ou intercâmbios, ou seja, a influência do judô da Europa no Brasil era zero.

No passado, Arnaldo Menami (81kg) lutou com o lendário japonês Yasuhiro Yamashita no DEF, em São Paulo. Mesmo com as medalhas de ouro olímpicas e mundiais, o peso pesado japonês não fez um ponto sequer no brasileiro, e a luta terminou empatada. O paulista de São José dos Campos jogou atacando ereto e segurando o ímpeto do japonês no abdome (como tem de ser), e imprimiu o ritmo da luta, que exibiu muita técnica, determinação e categoria.

Antes, tínhamos categoria e faltava vivência internacional. Hoje, sobra vivência no exterior, mas falta-nos categoria, porque a gestão de alto rendimento apenas reúne os atletas no aeroporto. Equivocadamente, não fomenta o desenvolvimento técnico da modalidade.

Constantemente presente nos pódios internacionais, a paulista Maria Suelen Altheman ocupa o 6º lugar no ranking da FIJ, mas é acompanhada de perto pela também paulista Beatriz Souza, 9ª colocada no WRL

São despejados milhões de reais no alto rendimento, mas nada é feito pela base. Lamentavelmente – com exceção de uma dúzia de atletas que detêm conhecimento técnico satisfatório –, atualmente, apenas nos nivelamos às mesmices técnicas que se vê na Europa e nos países mais desenvolvidos das Américas.

Quantos milhões são investidos nos trens da alegria que durante a temporada vão ao exterior levando várias pessoas que nada têm a ver com a competição? Em contrapartida, o que é feito pela base?

Voltamos de Baku, no Azerbaijão, inseridos no grupo de seleções que finalizou a disputa na 22ª colocação, com uma única medalha de bronze. Um resultado medíocre, que nos iguala tecnicamente ao Canadá, Argentina, Colômbia, Bósnia e Herzegovina e Eslovênia.

Décima colocada no ranking da Federação Internacional de Judô, a atual campeã olímpica, Rafaela Silva promete ampliar a sua já imensa galeria de troféus

Em 2017, terminamos o mundial na quarta colocação geral, com uma medalha de ouro, uma de prata, dois bronzes e o vice-campeonato na recém-criada disputa por equipes mistas.

Em 2018, levamos uma surra, despencamos no ranking da Federação Internacional de Judô (FIJ), e para Ney Wilson a seleção brasileira obteve um resultado normal.

O pior de tudo é que, mesmo com este desempenho medíocre, nada foi dito, cobrado ou explicado. As pessoas que comandam a seleção brasileira vão completar 20 anos em seus cargos, e todos acham isso tudo normal.

Após ter conquistado sua última medalha em Baku, Érika Miranda teve altruísmo suficiente para retirar-se do shiai-jô, assim como recentemente fizeram Tiago Camilo e Luciano Correa. Não fosse a iniciativa destes grandes judocas e medalhistas, certamente todos estariam ainda em ação, pois o modelo de gestão da seleção brasileira inibe a projeção dos novos talentos e mantém a seleção engessada.

Detentor de duas medalhas olímpicas e três mundiais, o sul-mato-grossense Rafael Silva inicia a temporada em 5º lugar no WRL, e mais do que nunca, está na briga por uma vaga para a próxima edição dos Jogos Olímpicos

É premente investir na base

O sinal de alerta já está aceso há muito tempo. É preciso formar professores realmente capacitados e competentes, que deem continuidade ao trabalho que foi feito na base da modalidade no século passado em nosso País. Não adianta olhar apenas para a seleção sênior e exigir resultados. É preciso focar, pensar e investir de forma sistemática e objetiva na base, e em todos os Estados.

Se pararmos para analisar a situação de forma mais próxima, notaremos que gente competente não falta, no País há muitos professores capacitados para assumir o comando.

Seguindo, aliás, outra lição do Japão, é necessário tirar as pessoas que politizaram e se apossaram da área técnica da seleção brasileira para dar oportunidade à nova geração de técnicos, treinadores e ex-atletas com alto conhecimento que estão em muitos Estados do Brasil.

Atual 8ª colocada no ranking da FIJ, Mayra Aguiar é mais um grande exemplo da força técnica da escola gaúcha de judô

Desempenho do Brasil em Mundiais

Mundial de Ludwigshafen – 1971

Chiaki Ishii (93kg bronze)

Mundial de Paris – 1979

Walter Carmona (86kg/bronze)

Mundial de Essen – 1987

Aurélio Miguel (95kg bronze)

Mundial de Hamilton – 1993

Aurélio Miguel (95kg prata)

Rogério Sampaio (66kg bronze)

Mundial de Tóquio – 1995

Danielle Zangrando (56kg bronze)

Mundial de Paris – 1997

Aurélio Miguel (95kg prata)

Edinanci Silva (72kg bronze)

Fúlvio Myata (60kg bronze)

Mundial de Birmingham – 1997

Sebastian Pereira (73kg bronze)

Mundial de Osaka – 2003

Mario Sabino (100kg bronze)

Edinanci Silva (78kg bronze)

Carlos Honorato (90kg bronze)

Mundial do Cairo – 2005

João Derly (66kg ouro)

Luciano Corrêa (100kg bronze)

Mundial do Rio de Janeiro – 2007

João Derly (66kg ouro)

Tiago Camilo (81kg ouro)

Luciano Correa (100kg ouro)

João Gabriel Schilittler (100kg bronze)

Mundial de Tóquio – 2010

Mayra Aguiar (78kg prata)

Leandro Guilheiro (81kg prata)

Leandro Cunha (66kg prata)

Sarah Menezes (48kg bronze)

Mundial de Paris – 2011

Leandro Cunha (66kg prata)

Rafaela Silva (57kg prata)

Sarah Menezes (48kg bronze)

Leandro Guilheiro (81kg bronze)

Mayra Aguiar (78kg bronze)

Mundial do Rio – 2013

Rafaela Silva (57kg ouro)

Érika Miranda (52kg prata)

Maria Suelen Altheman (+78kg prata)

Rafael Silva (+100kg prata)

Sarah Menezes (48kg bronze)

Mayra Aguiar (78kg bronze)

Mundial de Cheljabinsk – 2014

Mayra Aguiar (78kg ouro)

Maria Suelen Altheman (+78kg prata)

Érika Miranda (52kg bronze)

Rafael Silva (+100kg bronze)

Mundial de Astana – 2015

Érika Miranda (52kg bronze)

Victor Penalber (81kg bronze)

Mundial de Budapeste – 2017

Mayra Aguiar (78kg ouro)

David Moura (+100kg prata)

Érika Miranda (52kg bronze)

Rafael Silva (+100kg bronze)

Equipe mista (prata)

Mundial de Baku – 2018

Érika Miranda (52kg bronze)

Os vice-campeões mundiais por equipes mistas de 2017. Neste mesmo ano, o Brasil obteve medalhas de ouro em todas as competições mundiais. No mundial sênior realizado na Hungria, a gaúcha Mayra Aguiar obteve o ouro no peso meio-pesado. Em Santiago, o superligeiro potiguar Aldi Oliveira obteve o ouro no campeonato mundial juvenil. Em Zagreb, o gaúcho Daniel Cargnin conquistou o ouro do peso meio-leve no mundial júnior. Em 2018, o Brasil não obteve nenhuma medalha de ouro e o País despencou no ranking geral da FIJ