11 de novembro de 2024
No ano do cinquentenário da CBJ, o judô brasileiro vive a sua maior crise de identidade e falta de comando
Em breve, as pessoas que dirigem a seleção completarão 20 anos em seus cargos. O modelo de gestão da CBJ inibe a projeção dos novos talentos, frustra treinadores e engessa a modalidade
Hantei
10 de janeiro 2019
Por PAULO PINTO I Fotos BUDÔPRESS, MÁRCIO RODRIGUES/MPIX e FRANCISCO MEDEIROS
Curitiba – PR
Após o Campeonato Mundial de Baku foram acionados o sinal de alerta e a luz vermelha para o judô brasileiro, mas para todos aqueles que trabalham em torno do shiai-jô, a tempestade já se anunciava há muito tempo.
Basta observar com um pouco mais de atenção para constatar que o judô do Brasil está distanciando-se de sua própria essência, o que emperra seu desenvolvimento. A razão principal deste quadro é a falta de personalidade. O Brasil perdeu sua identidade com o judô japonês.
Esta perda de identidade levou nossos atletas a adotarem o modelo europeu como referência, mas este padrão não se encaixa na nossa cultura. Além de ser muito mais difícil, não é eficiente e tem causado grande transtorno, já que, com a ausência de identidade, muitos técnicos e professores ficam sem saber para onde ir.
De um lado vemos os professores embasados em nossa escola tradicional, que é eminentemente japonesa, e do outro a comissão técnica da Confederação Brasileira de Judô, que tenta meter o modelo europeu goela abaixo dos atletas que compõem as seleções brasileiras sub 18, sub 21 e sênior.
Não devemos competir naquilo em que os nossos adversários são mais fortes. No judô oriental há duas potências: Japão e Coréia. O Brasil priorizou participar de um grupo predominantemente europeu, que, além de ser muito maior, domina outros esportes de combate que fazem parte de sua cultura, mistura-os com o judô e acaba levando vantagem sobre aqueles que o enfrentam na especialidade dele.
Os japoneses não aderem a nada, não se deixam levar por modismos sazonais, e isto faz com que mantenham total hegemonia na modalidade. E isto deve perpetuar-se, pois na medida em que o tempo passa, a técnica dos concorrentes enfraquece e a dos japoneses se fortalece. É comum vermos hoje atletas disputando mundiais sem saber fazer o kumi-kata. Sobra categoria para o judô japonês, e falta para os demais.
Antes, nós tínhamos uma condição muito boa, pois a escola brasileira era eminentemente japonesa e seguíamos os passos do Japão. Mas por que perdemos isso com o tempo? É simples.
Até duas ou três gerações atrás, os judocas do alto rendimento não tinham a vivência internacional que os atletas de hoje possuem. Aprendiam e treinavam aqui. Se fizermos uma análise superficial dos medalhistas olímpicos brasileiros mais antigos, veremos que todos vieram da escola japonesa.
Nomes como Chiaki Ishii, Douglas Vieira, Walter Carmona, Luís Onmura, Aurélio Miguel, Rogério Sampaio, Henrique Guimarães, Carlos Honorato, Tiago Camilo, Leandro Guilheiro, Flávio Canto e Felipe Kitadai possuíam técnica refinada e excelente condição física.
Com exceção dos quatro últimos, esses atletas quase não participaram do circuito europeu e só viajavam para competir, o que lhes permitia manter a pegada e o estilo brasileiro, fundamentado predominantemente no judô japonês.
Falta de identidade e comando
Além da falta de identidade, há dois aspectos fundamentais para o desenvolvimento do judô competitivo: autoridade técnica e comando forte.
Sobre a autoridade técnica de uma seleção brasileira sênior, entendo que o peso de quem está no comando deve ser muito grande, o que só se conquista de duas formas: ou o técnico foi um grande medalhista no passado ou foi um grande formador de atletas. As pessoas que hoje comandam a seleção brasileira sênior não conquistaram nada nos tatamis e muito menos formaram atletas.
Fora isso, não existe e nem pode existir autoridade. A voz de comando é muito importante, e não se trata de algo subjetivo. Só se obtém autoridade fundamentada em fatos. O comandante tem de ser exigente, forte e exercer seu trabalho com determinação e sangue nos olhos. Quem assiste aos treinos da seleção brasileira nota claramente a falta de liderança e comando.
Ney Wilson, gestor de alto rendimento da CBJ, vai completar 20 anos no comando da equipe verde e amarela, e antes de ocupar este cargo foi presidente da Federação de Judô do Estado do Rio de Janeiro por vários mandatos. Temos, portanto, um excelente político na gestão do alto rendimento; prova disso é que se mantém no cargo por quase duas décadas.
É comum ouvirmos queixas dos professores e técnicos que trabalham nos Estados a respeito do trabalho da comissão técnica da classe sênior. Reclamam que os atletas voltam dos treinamentos de campo cheios de vícios e confusos, em função do trabalho desenvolvido pela gestão de alto rendimento da CBJ.
É preciso que se faça um reparo por inteiro do judô brasileiro; a partir disso, poderemos sonhar com uma gestão técnica forte e independente, e obviamente, isso passa pela base.
Seríamos levianos e hipócritas se afirmássemos que o judô brasileiro não evoluiu nas últimas décadas. Evoluímos muito na questão da administração, eventos, patrocínios e investimento, mas a área técnica foi politizada, engessada, e perdemos nossa identidade.
A parte administrativa evoluiu expressivamente, enquanto a técnica parou no tempo, e com isso perdemos muito. Enquanto não conseguirmos equalizar as áreas administrativa e técnica, não chegaremos onde queremos.
Vivemos um imobilismo, um conformismo, total e absoluto e, se formos pesquisar onde estão os atletas da seleção brasileira hoje, descobriremos que essa nova geração faz treinamento de campo na Áustria, enquanto os mais experientes – que quase não competiram em 2018 – estão em suas bases.
Temos um número muito grande de professores e técnicos. Somente São Paulo credencia 1.500 técnicos anualmente, mas já não há mais os grandes mestres japoneses que existiam no passado. Eram professores que formavam excelentes atletas e não saíam do País, não herdavam nenhum cacoete técnico europeu e não contaminavam nossos jovens judocas.
Já os atletas viajavam apenas para competir e voltavam em seguida. Não havia treinamentos de campo ou intercâmbios, ou seja, a influência do judô da Europa no Brasil era zero.
No passado, Arnaldo Menami (81kg) lutou com o lendário japonês Yasuhiro Yamashita no DEF, em São Paulo. Mesmo com as medalhas de ouro olímpicas e mundiais, o peso pesado japonês não fez um ponto sequer no brasileiro, e a luta terminou empatada. O paulista de São José dos Campos jogou atacando ereto e segurando o ímpeto do japonês no abdome (como tem de ser), e imprimiu o ritmo da luta, que exibiu muita técnica, determinação e categoria.
Antes, tínhamos categoria e faltava vivência internacional. Hoje, sobra vivência no exterior, mas falta-nos categoria, porque a gestão de alto rendimento apenas reúne os atletas no aeroporto. Equivocadamente, não fomenta o desenvolvimento técnico da modalidade.
São despejados milhões de reais no alto rendimento, mas nada é feito pela base. Lamentavelmente – com exceção de uma dúzia de atletas que detêm conhecimento técnico satisfatório –, atualmente, apenas nos nivelamos às mesmices técnicas que se vê na Europa e nos países mais desenvolvidos das Américas.
Quantos milhões são investidos nos trens da alegria que durante a temporada vão ao exterior levando várias pessoas que nada têm a ver com a competição? Em contrapartida, o que é feito pela base?
Voltamos de Baku, no Azerbaijão, inseridos no grupo de seleções que finalizou a disputa na 22ª colocação, com uma única medalha de bronze. Um resultado medíocre, que nos iguala tecnicamente ao Canadá, Argentina, Colômbia, Bósnia e Herzegovina e Eslovênia.
Em 2017, terminamos o mundial na quarta colocação geral, com uma medalha de ouro, uma de prata, dois bronzes e o vice-campeonato na recém-criada disputa por equipes mistas.
Em 2018, levamos uma surra, despencamos no ranking da Federação Internacional de Judô (FIJ), e para Ney Wilson a seleção brasileira obteve um resultado normal.
O pior de tudo é que, mesmo com este desempenho medíocre, nada foi dito, cobrado ou explicado. As pessoas que comandam a seleção brasileira vão completar 20 anos em seus cargos, e todos acham isso tudo normal.
Após ter conquistado sua última medalha em Baku, Érika Miranda teve altruísmo suficiente para retirar-se do shiai-jô, assim como recentemente fizeram Tiago Camilo e Luciano Correa. Não fosse a iniciativa destes grandes judocas e medalhistas, certamente todos estariam ainda em ação, pois o modelo de gestão da seleção brasileira inibe a projeção dos novos talentos e mantém a seleção engessada.
É premente investir na base
O sinal de alerta já está aceso há muito tempo. É preciso formar professores realmente capacitados e competentes, que deem continuidade ao trabalho que foi feito na base da modalidade no século passado em nosso País. Não adianta olhar apenas para a seleção sênior e exigir resultados. É preciso focar, pensar e investir de forma sistemática e objetiva na base, e em todos os Estados.
Se pararmos para analisar a situação de forma mais próxima, notaremos que gente competente não falta, no País há muitos professores capacitados para assumir o comando.
Seguindo, aliás, outra lição do Japão, é necessário tirar as pessoas que politizaram e se apossaram da área técnica da seleção brasileira para dar oportunidade à nova geração de técnicos, treinadores e ex-atletas com alto conhecimento que estão em muitos Estados do Brasil.
Desempenho do Brasil em Mundiais
Mundial de Ludwigshafen – 1971
Chiaki Ishii (93kg bronze)
Mundial de Paris – 1979
Walter Carmona (86kg/bronze)
Mundial de Essen – 1987
Aurélio Miguel (95kg bronze)
Mundial de Hamilton – 1993
Aurélio Miguel (95kg prata)
Rogério Sampaio (66kg bronze)
Mundial de Tóquio – 1995
Danielle Zangrando (56kg bronze)
Mundial de Paris – 1997
Aurélio Miguel (95kg prata)
Edinanci Silva (72kg bronze)
Fúlvio Myata (60kg bronze)
Mundial de Birmingham – 1997
Sebastian Pereira (73kg bronze)
Mundial de Osaka – 2003
Mario Sabino (100kg bronze)
Edinanci Silva (78kg bronze)
Carlos Honorato (90kg bronze)
Mundial do Cairo – 2005
João Derly (66kg ouro)
Luciano Corrêa (100kg bronze)
Mundial do Rio de Janeiro – 2007
João Derly (66kg ouro)
Tiago Camilo (81kg ouro)
Luciano Correa (100kg ouro)
João Gabriel Schilittler (100kg bronze)
Mundial de Tóquio – 2010
Mayra Aguiar (78kg prata)
Leandro Guilheiro (81kg prata)
Leandro Cunha (66kg prata)
Sarah Menezes (48kg bronze)
Mundial de Paris – 2011
Leandro Cunha (66kg prata)
Rafaela Silva (57kg prata)
Sarah Menezes (48kg bronze)
Leandro Guilheiro (81kg bronze)
Mayra Aguiar (78kg bronze)
Mundial do Rio – 2013
Rafaela Silva (57kg ouro)
Érika Miranda (52kg prata)
Maria Suelen Altheman (+78kg prata)
Rafael Silva (+100kg prata)
Sarah Menezes (48kg bronze)
Mayra Aguiar (78kg bronze)
Mundial de Cheljabinsk – 2014
Mayra Aguiar (78kg ouro)
Maria Suelen Altheman (+78kg prata)
Érika Miranda (52kg bronze)
Rafael Silva (+100kg bronze)
Mundial de Astana – 2015
Érika Miranda (52kg bronze)
Victor Penalber (81kg bronze)
Mundial de Budapeste – 2017
Mayra Aguiar (78kg ouro)
David Moura (+100kg prata)
Érika Miranda (52kg bronze)
Rafael Silva (+100kg bronze)
Equipe mista (prata)
Mundial de Baku – 2018
Érika Miranda (52kg bronze)