O Budô e a parcimônia

A compreensão da harmonia não está disponível em prateleiras de supermercado. Depende de como o praticante se submete ao entendimento das leis físicas, psicológicas, corporais e até metafísicas

Transmissão de Conhecimento
10 de janeiro de 2021
Por FERNANDO MALHEIROS FILHO
Curitiba – PR

Estas reflexões, prezado leitor, endereçadas aos praticantes de artes marciais, guardam o mesmo valor e aplicação a todas as atividades que envolvem o corpo e, por isso mesmo, a mente, elemento indissociável da atividade física.

Ainda dentro do mesmo parêntesis, sendo as atividades físicas – nas quais ocasionalmente se enquadram as artes marciais – elemento ou caminho (daí o Budô) para o autoconhecimento e aperfeiçoamento integral do ser humano, a conduta mental do praticante ganha o efeito transcendente, aquele último da linha de consequências da prática correta, adequada e proveitosa.

A parcimônia aparece como elemento definidor da prática longeva para aqueles que efetivamente encontraram o “caminho” © Geraldo de Paula

Sempre me intrigou a relação entre a vontade e o efeito, quando passei a perceber que o velho adágio “querer é poder” não compreendia verdade profundamente perceptível, salvo em alguns dos poucos sedimentos da superficialidade.

Venho me detendo no aparente paradoxo do praticante que, insatisfeito com seus resultados físicos ou técnicos, aplica mais força, mais intensidade nos movimentos, recolhendo resultados pífios e até, por vezes, contrários àqueles almejados. Estaria a vontade, ou a “força de vontade”, conspirando contra os objetivos dela própria?

Depois de muitos anos de reflexão e experimentos, compreendi, não sem algum desgosto, que a resposta era positiva: de fato, querer (no sentido de desejar ardentemente) não é necessariamente poder, mas normalmente o contrário.

Fui entendendo que o esforço a que se referem os antigos não representa o físico – ainda que este tenha efeitos depurativos –, mas o esforço de compreensão dos fenômenos que nos cercam, sejam eles independentes e presentes na natureza externa ou aqueles que em nós mesmos e em nossos corpos se apresentam reclamando o entendimento.

Foi difícil, mas finalmente compreendi que dependemos, no mundo físico, mental e natural em geral, de harmonia, quase sempre incognoscível ao observador com o “olho desarmado”, ou seja, aquele que não afiou sua intuição ao longo da vida.

O exagero quase sempre desequilibra © Geraldo de Paula

O fenômeno é facilmente perceptível se abandonamos a mera digressão filosófica e vamos aos fatos: os praticantes jovens, na medida de seu envelhecimento, vão abandonando a prática quando não dispõem mais em seus corpos do vigor juvenil, tudo levando a crer que não compreenderam o sentido profundo do “caminho”, retirando-se frustrados com a própria evanescência (daquele que vai em direção ao fim).

E assim é em tudo: basta olhar ao derredor. Contrariados com a vontade não atendida, abandonamos aqueles procedimentos que não nos levaram ao objetivo pretendido, ainda mais considerando que, para o próprio reconhecimento psíquico e para amenizar as limitações, o agente (praticante) normalmente se projeta para além dos limites de suas capacidades.

É nisso que a parcimônia aparece como elemento definidor da prática longeva, ou daqueles que efetivamente encontraram o “caminho”, diversos daqueles que passam a existência tentando.

Essa harmonia essencial ou ontológica (relativa à essência do ser) reclama compreensão. Esta se dá quando percebemos que a ação volitiva, ou o aumento de intensidade do ato humano, apenas multiplica o desequilíbrio fundamental, impedindo que os resultados sejam alcançados ou os comprometendo.

Convenha, prezado leitor, que não estou a tratar de resultados imediatos, mas daqueles que realmente importam: os perenes. Aqueles que firmam suas raízes na essência do ser, e o modificam a partir da compreensão que ele passa a ter de si mesmo e do mundo que o cerca.

A compreensão da harmonia depende da orientação a que se submete o praticante e de seu esforço© Budopress

Parcimônia vem de parco, modesto, o mínimo necessário. Em latim a expressão “quantum satis” encerra essa compreensão: o quanto basta, o necessário para atingir a satisfação ou o objetivo.

Na ação humana não é diferente, seja ela física ou exclusivamente mental: o exagero desequilibra quase sempre. Talvez possamos encontrar o melhor exemplo prático numa viagem de automóvel: se formos além da velocidade estrutural do veículo, este certamente se acidentará, não atingiremos o objetivo, não chegaremos ao destino e, provavelmente, perderemos a vida ou a saúde física. Mesmo que o façamos aquém dos limites do veículo, mas sem parcimônia, haverá grande possibilidade de frustração em alcançar o destino: ainda poderemos ser vitimados por acidente, termos problemas com as autoridades de trânsito ou com a quebra dos elementos do veículo. Qualquer dessas hipóteses, muito prováveis, frustrará o objetivo perseguido: alcançar o destino em menor espaço de tempo, com menor custo e principalmente com segurança.

A ação física – e sua prévia correspondente mental – obedece às mesmas regras. É comum que o praticante frustrado com seu desempenho encontre na vontade e na intensidade a solução para o baixo rendimento. Agindo assim, será grande a chance de malogro.

Antes de executar cada movimento, deve o praticante compreendê-lo, e antes disso entender as regras da harmonia que regem seu corpo, no conjunto das leis da física, com aquelas a que o corpo físico deve obediência. Nesse processo de compreensão a parcimônia surge como elemento essencial.

A parcimônia garantirá ao praticante a constante avaliação de seus resultados © Geraldo de Paula

A compreensão da harmonia não está disponível em prateleiras de supermercado. Depende da orientação (de seu instrutor) a que se submete o praticante e de seu esforço. Mas não para produzir movimentos imediatamente mais intensos, e sim para compreender as leis a que está submetido: leis físicas, psicológicas, corporais e até metafísicas, dependendo do olhar de quem observa.

A parcimônia garantirá ao praticante a constante avaliação de seus resultados, positivos ou negativos, na exata proporção em que aplica tensões ou relaxamentos em sua atividade física (e mental), podendo, paulatinamente, averiguar os resultados, fazendo as constantes correções que significam o aprendizado.

Sem parcimônia nada disso será possível. O exagero sobrevirá e, pelo comprometimento da harmonia (desequilíbrio), o praticante colherá os resultados negativos, receita infalível para o fim da prática: o ser humano não foi previamente equipado pela evolução para reconhecer suas próprias incapacidades. Só o engrandecimento espiritual pode fazê-lo.

Fernando Malheiros Filho
é professor de karatê-dô, historiador
e advogado, especialista em direito
da família e sucessões.