A criança e o judô competitivo

A criança não é um adulto em miniatura

Lamentavelmente, parte de uma nova geração de professores não foi orientada de forma condizente com aquilo que o educador Jigoro Kano desejou. Por isso, a educação física integral por meio do judô tende a desaparecer

Aspectos Pedagógicos do Judô
25 de julho de 2019
Por Prof. Me. ODAIR BORGES I Fotos BUDOPRESS
Curitiba – PR         

Na atual globalização do judô, as entidades de administração esportiva, professores, técnicos e competidores não estão mais preocupados com os ideais filosóficos e educativos instituídos pelo shihan Jigoro Kano. Estão, portanto, em total discordância com o conceito Do (Caminho).

Estamos, talvez, assistindo à morte lenta dos aspectos racional, espiritual e moral do judô, devido ao descaso e à modernidade. Grande parte de professores e competidores não tem a devida preocupação e tempo para o aperfeiçoamento do caráter, da moral, do respeito e da disciplina de seus alunos, pois necessitam primordialmente estar preparados “fisicamente” para a competição e as pretensas medalhas.

A participação na competição com regras oficiais deveria começar aos 12 anos, quando então a criança já tem desenvolvido um grande repertório de habilidades especificas

Uma nova geração de professores – “felizmente, nem todos” – foi orientada em ambiente não condizente com a energia física, moral e espiritual do indivíduo que o educador Jigoro Kano sempre desejou. Por isso, a educação física integral por meio do judô tende a desaparecer.

É preciso que pessoas que dirigem o judô como atividade física, como esporte, como educação, sejam suficientemente preparadas e bem informadas sobre os aspectos fisiológicos e pedagógicos da criança em desenvolvimento.

Essa conotação e a orientação somente competitiva vêm prejudicar a evolução natural das crianças, que são forçadas a competir muitas vezes precocemente, o que as leva em pouco tempo a abandonar o judô.  É notória a preocupação dos professores e dirigentes com os resultados e o pódio de minicampeões.

Gallahue (1982) mostra que, para se chegar ao domínio de habilidades desportivas, é preciso um longo processo, no qual as experiências com habilidades básicas são de fundamental importância. Infelizmente, quando se trabalha com habilidades esportivas, é dada uma ênfase excessiva ao produto tem-se e pouca preocupação com o processo. Dar ênfase ao “ser capaz de”, e não levar em consideração o que foi feito para ser “capaz” leva frequentemente ao imediatismo. Como a própria palavra indica, não é capaz de esperar, mas esperando, sim, resultados de alto rendimento no curto prazo.

Os erros de desempenho são muitas vezes esquecidos no processo ensino/aprendizagem de habilidades motoras – no caso, a habilidade judô – por professores que não respeitam os limites da capacidade de processamento de informação dos alunos. Frequentemente se dirigem ao imediatismo, transmitindo informações que ultrapassam as capacidades dos alunos, e esperam sucesso em curto prazo. Para esses professores só interessa o resultado e não o processo de aprendizagem. (Tani, 1989). A preocupação do “já e agora” e a pressa em vencer competições com crianças fisiologicamente e psicologicamente imaturas não favorecem de modo algum o desenvolvimento físico, afetivo e social da criança.

A criança tratada como adulto, segundo Tubino (2001), atuando em competições infantis que reproduzem as competições de alto rendimento com todas as suas características, desde regras, arbitragem, inclusive os vícios, adentra demasiadamente cedo no mundo adulto. É importante ressaltar que poucas crianças chegam a alcançar a vitória e o sucesso. Muitas delas não têm maturidade suficiente para assimilar ou administrar as vitórias ou derrotas. Muitas, depois de uma série de vitórias, acabam por ser derrotadas e abandonam o judô. É preciso ensiná-las a ganhar e a perder, o que as levará a aprender e a lidar com o fracasso, com a vitória e com o sucesso. Devemos prepará-las para a maturidade do judô e não simplesmente ensiná-las a lutar. Não podemos gerar na criança expectativa de resultados positivos, ansiedade e angústia, o que a levará ao abandono da prática tão logo seja vítima da primeira derrota.

Deve ser dada especial atenção às características físicas da criança que determinam suas possibilidades na execução de tarefas motoras

Portanto, a criança não é um adulto em miniatura. Ela possui medidas, qualidades físicas e mentais, interesses e aspirações diferentes. É inútil, e mesmo prejudicial, tentar levar uma criança a competir sem que seja ela capaz de produzir movimentos coordenados e efetivos que ocorrem no desenvolvimento motor com a maturação neuromuscular. Nessa fase ela não presta atenção ao movimento e sim ao resultado da luta, se ganhou ou perdeu.

A criança em seu desenvolvimento normal deve passar por etapas que precisam ser adequadamente cumpridas para que ela possa ser bem-sucedida em estágios posteriores. Na faixa etária compreendida entre os 3 e 6 anos que, segundo Gallahue (1982), Kirchner (1981), Pestolosy e Arnheim (1973), as crianças encontram-se na fase de aquisição dos padrões motores fundamentais de locomoção, manipulação e estabilização. Observa-se realmente, à roda dos três anos, ainda uma certa lentidão motora e dificuldade nos movimentos que requerem controle do equilíbrio e nas trocas de posicionamento do corpo.

Kirchner (1981) considera a fase da média infância – aos 7 ou 8 anos de idade – o estágio ideal para o desempenho de habilidades motoras gerais, ou seja, combinar e refinar uma ou mais habilidades fundamentais caracterizadas pela eficiência mecânica, coordenação e desempenho controlado. O estágio da infância entre os 10 e 12 anos de idade é considerado uma extensão do estágio anterior. A criança entra na pré-adolescência e o seu interesse está mais voltado para a forma e a precisão nos esportes individuais e de equipes e outras habilidades especializadas.

A participação de crianças com idade imprópria para a competição de judô parece não afetar as entidades, professores e dirigentes da modalidade, apesar das constatações cientificas. Seguem programando competições para categorias de idades cada vez menores.

O que temos visto são competições entre crianças desde 4 anos com regras rígidas do judô internacional, inclusive com árbitros aplicando, entre outras, penalidades por falta de combatividade com gestos que a criança não entende, decidindo a luta de forma que a criança nem fica sabendo porque perdeu ou venceu, algo simplesmente fora de propósito.

Isso não quer dizer que a criança não possa iniciar seu aprendizado no judô. A idade de 4 a 6 anos é um período favorável ao “pré-judô”, com características de educação psicomotora e não como uma atividade já competitiva, de conflitos, e associada a um conceito técnico com o objetivo de vencer o outro.

Especial atenção deve ser dada às características físicas que determinam as possibilidades da criança na execução de tarefas motoras, como um meio de favorecer o desenvolvimento físico, afetivo e social, fundamentado no aprendizado das habilidades motoras básicas e variadas. Devem ser utilizados movimentos de forma diversificada, tais como: a consciência do corpo, consciência do espaço, o equilíbrio, a lateralidade, a coordenação e movimentos e tarefas motoras aplicadas ao judô. Deve-se observar especificamente o aprendizado minucioso das quedas e suas variações, os rituais próprios da modalidade, a disciplina, o respeito, enfim os comportamentos no convívio social, dando à criança um conhecimento do judô que corresponda às suas capacidades fisiológicas e, sobretudo, psicológicas.

Temos visto competições entre crianças desde 4 anos de idade com regras rígidas do judô internacional, e geralmente a criança nem fica sabendo porque perdeu ou venceu, o que vem a ser simplesmente fora de propósito

O estágio das habilidades motoras especializadas começa ao redor dos 14 anos e continua até a idade adulta. A especialização representa o ápice do processo de desenvolvimento e caracteriza-se pelo desejo do indivíduo de participar de um número limitado de atividades. Ele pode alcançar esse estágio principalmente pela maturação e influências ambientais, como a oportunidade para a prática, talento individual, condição física, motivação e orientação adequada. Guiselini (1985)

Considerando a relevância de nossa pesquisa e ponderações averiguadas com abordagens na literatura cientifica, deve-se ressaltar que o judô pode ser ensinado e orientado desde que a criança demonstre um controle motor bem definido e uma adequada orientação pedagógica.

No caso da competição observa-se a necessidade de, até os 9 anos, uma atenção especial à organização metodológica/pedagógica da competição. Por exemplo: um formato diferenciado de competição, regras adaptadas, sem penalidades, sem gestos incompreensíveis, com orientação adequada aos árbitros – que compreensivelmente, por vezes, não possuem experiência pedagógica – no sentido de aproveitar o momento para orientar e ensinar. Enfim, educar.

Com uma conscientização mais acadêmica e educativa, evitaríamos o envolvimento estressante e às vezes até verbalmente agressivo – por enquanto – entre pais, professores e árbitros. Quanto à premiação, não basta contemplar todos com medalhas, é preciso que entendam sua participação e tenham assimilado o aprendizado.

Conforme demonstram e evidenciam as pesquisas científicas, a participação na competição “com regras oficiais” deveria começar aos 12 anos, quando a criança já desenvolveu um grande repertório de habilidades específicas. É a fase em que a criança começa a querer ter êxito no esporte e a praticá-lo com maior dedicação.

Não só pela pesquisa, mas também por experiência própria e conhecimento de grandes judocas no Japão e no mundo – sem falsa modéstia –, eu mesmo, com meus desempenhos, e de aluno que chegou à seleção brasileira principal, sendo vice-campeão mundial, nunca foram ou fomos campeões mirim ou infantil.

Portanto, não façamos pequenos especialistas e vamos evitar procurar entre eles o futuro campeão. Nós temos tempo, e o campeão deve ser fruto de uma orientação adequada, tanto física quanto psicológica e social.

Bibliografia

Gallahue, D.L. – Development movement experiences for children, New York, John Wiley & Sons, 1982.

Guiselini, M.A – Educação Física na Pré-Escola. Belo Horizonte, Imprensa Universitária, 1983.

Kirchner, G – Physical Education for Elementary School Children Dubuque, WMC Brow Company Publishers, 1981.

Pestolesy, R.A. & Arnhein, D.D. – Developing Motor Behavior in Children, Saint Louis, C. V. Mosby Company, 1973.

Tani, G. (et AL). Educ. Física Escolar – Fundamentos de uma abordagem desenvolvimentista E.P.U. São Paulo, 1988

Tubino, M.G. (2001) – Dimensões sociais do esporte. 2ª edição –  São Paulo