19 de junho de 2025

Enquanto promove valores como respeito, honra e honestidade, a maior federação estadual de judô do país mantém em sua cúpula administrativa um dirigente com histórico expressivo de inadimplência trabalhista. Em situação semelhante, o Esporte Clube Pinheiros — tradicional formador de atletas olímpicos — também reconduziu esse mesmo dirigente a um cargo estratégico.
O ponto de partida desta investigação é a incompatibilidade entre discurso institucional e práticas de gestão. A apuração traz à tona elementos que expõem tanto a permanência de um dirigente com passivo judicial significativo quanto o continuísmo administrativo de um grupo que atua há mais de três décadas à frente da Federação Paulista de Judô (FPJudô) — e que, sob nova presidência, dá sinais de continuidade em detrimento da renovação prometida.
Arnaldo Luís de Queiroz Pereira, ex-delegado regional e por vários mandatos presidente do Conselho Fiscal da FPJudô, ocupa desde 2021 o cargo de secretário-geral da entidade. Na prática, responde pelas ações administrativas e financeiras, representando institucionalmente a Federação perante empresas privadas, autarquias, prefeituras e secretarias de esporte.
Segundo consulta recente ao Banco Nacional de Devedores Trabalhistas (BNDT), seu nome aparece como devedor em dezenas de processos distribuídos por vários estados do país.
A permanência de Arnaldo Queiroz em cargos-chave na FPJudô e no Esporte Clube Pinheiros desafia diretamente os princípios de governança, ética e transparência que deveriam nortear a gestão esportiva © Global Sports
Apesar disso, sua permanência na função foi confirmada para o novo quadriênio. Em paralelo, foi nomeado assessor especial da presidência para assuntos esportivos no Esporte Clube Pinheiros, após a eleição de André Perego Fiore para a presidência da agremiação, em 12 de maio.
A acumulação desses cargos estratégicos por um dirigente com passivo judicial tão expressivo levanta questionamentos entre especialistas em direito, ética e governança institucional.
Sua nomeação no Esporte Clube Pinheiros ganha contornos ainda mais complexos quando se recorda que, durante o período em que ocupava função na FPJudô, Queiroz também exerceu o cargo de diretor de Esportes do clube. Posteriormente, foi exonerado da função e, segundo apuração, teve sua entrada no ECP proibida pelo então presidente e pelo Conselho de Administração da agremiação. Para retomar seu direito como associado, o atual secretário-geral da FPJudô precisou recorrer à Justiça.
A Revista Budô solicitou informações ao clube para compreender os motivos que levaram à proibição da entrada de um associado tão importante, mas até o fechamento desta edição, não houve retorno.
Esta reportagem analisa os impactos da manutenção desse dirigente sob três perspectivas: governança e compliance, princípios administrativos e legais, e valores filosóficos do judô.
Segundo especialistas ouvidos, a nomeação de um dirigente com passivo trabalhista relevante compromete não apenas a imagem das instituições que o mantêm, mas também pode gerar entraves em convênios com o poder público, diante da exigência de certidões negativas ou demonstrações de regularidade.
Ainda que a legislação não impeça, de forma expressa, que um dirigente com esse histórico ocupe funções em entidades privadas sem fins lucrativos, a prática afronta os princípios do compliance e da gestão responsável, que demandam integridade, reputação ilibada e confiança institucional.
O desconforto ético é ampliado pelo fato de o judô ser historicamente regido por valores como respeito, honra e responsabilidade. A manutenção de um gestor condenado por descumprimento de obrigações trabalhistas à frente de áreas administrativas e financeiras — inclusive conduzindo assembleias, processos eleitorais e acordos institucionais — representa uma contradição evidente entre os princípios do judô e a prática da gestão.
Segundo documentos e comunicações internas da própria Federação, Arnaldo Queiroz aparece como principal articulador das decisões administrativas e financeiras. Foi ele quem conduziu as duas últimas assembleias eletivas e a cerimônia de posse da atual diretoria. Foi ele que intermediou o acordo que encerrou a intervenção promovida pela Justiça entre março e maio de 2024 e retomou o controle da entidade ao grupo que a comanda há quase 40 anos.
Certidão positiva de débitos trabalhistas emitida pelo Poder Judiciário da Justiça do Trabalho © Arquivo
Juristas consultados apontam que clubes ou filiados podem recorrer à Justiça Comum ou ao Ministério Público para questionar a nomeação com base nos princípios da moralidade, da transparência e da boa governança.
O caso também desperta debate sobre quais são os critérios para a escolha de gestores em entidades esportivas e sobre a responsabilidade dos presidentes que os nomeiam ou mantêm em funções estratégicas, mesmo diante de passivos que poderiam comprometer juridicamente a instituição.
Em um momento em que o esporte exige mais integridade, participação democrática e coerência institucional, a permanência de dirigentes com histórico comprometedor deve ser objeto de reflexão e posicionamento por parte da comunidade esportiva — atletas, treinadores, dirigentes e familiares.
A legitimidade das entidades passa, necessariamente, pelo alinhamento entre os valores que pregam e as práticas que adotam.
Outro ponto muito comentado pelos filiados da Federação Paulista de Judô é a presença e a permanência da diretoria que causou a intervenção na entidade. Se o ex-presidente e sua diretoria foram afastados e tirados de cena pela Justiça, por que nomes como Arnaldo Queiroz, Alessandro Puglia e Adib Bittar Dib continuam com postos na entidade e comandando sua gestão administrativa e financeira?
No dia 30 de setembro, o medalhista olímpico Henrique Guimarães foi legitimamente eleito em assembleia prometendo uma gestão inovadora e transparente. Como falar em gestão inovadora, se os mesmos personagens que lançaram a entidade em um processo de intervenção continuam mandando e desmandando? Até mesmo o ex-presidente Alessandro Puglia mantém presença marcante em todos os eventos da federação. Como falar em gestão transparente se o secretário-geral, o número dois na escala hierárquica, é inadimplente e o diretor financeiro é exatamente o mesmo?
Certidão eletrônica de ações trabalhistas emitida pelo Poder Judiciário Federal © Arquivo
Membro da Comissão de Direito Desportivo do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e procurador-geral de diversos tribunais de justiça de federações e confederações, o jurista Alan Camilo Cararetti Garcia analisa com preocupação o fato de a maior federação de judô da América Latina manter em sua cúpula um dirigente com tal passivo judicial. Para ele, entidades sem fins lucrativos devem observar com rigor os princípios da administração pública, especialmente o da moralidade.
“A FPJudô deve agir com honestidade, ética e boa-fé, evitando atos que possam comprometer a confiança da sociedade em sua gestão. É no mínimo estranho que uma federação mantenha em sua diretoria alguém com certidões negativas no âmbito federal, sobretudo trabalhistas, expedidas pelo Tribunal Superior do Trabalho. Mais preocupante ainda é o fato de um clube do porte do Esporte Clube Pinheiros adotar postura semelhante.”
Segundo Garcia, o princípio da moralidade, no campo jurídico, não se refere apenas à moral social, mas sim àquela que está codificada nas normas legais. “Ainda assim, quando a ofensa à moral social coincide com uma determinação jurídica, há clara violação ao princípio da moralidade.”
Para o jurista, caberia às presidências da Federação Paulista de Judô e do Esporte Clube Pinheiros, amparadas por seus departamentos jurídicos e conselhos de administração, reavaliar a situação. Ele ressalta que a Lei nº 12.527/2011, que regulamenta o acesso à informação, assegura ao cidadão o direito de conhecer e fiscalizar atos e gestores de entidades que recebem recursos públicos. “Dessa forma, manter um dirigente com passivo dessa magnitude em posição de comando compromete o espírito de transparência e integridade que se espera do esporte”, concluiu.
O caso que envolve diretamente a Federação Paulista de Judô e o Esporte Clube Pinheiros escancara o abismo entre os princípios que essas entidades dizem defender e as práticas que adotam nos bastidores. Em tempos em que transparência, ética e governança se tornaram exigências mínimas para qualquer organização esportiva, a manutenção de figuras comprometidas com passivos judiciais coloca em xeque não apenas a legitimidade de suas estruturas administrativas, mas a própria credibilidade do judô enquanto instrumento de formação humana e social.