15 de novembro de 2024
O Karatê-dô e as Leis de Newton
Os movimentos humanos na face da Terra obedecem à mecânica interpretada pelas Leis de Newton, mas sua aplicação requer grande esforço de compreensão
Karatê-dô
31 de março de 2020
Por FERNANDO MALHEIROS FILHO I Fotos KPHOTOS
Curitiba – PR
É pouco provável que os conhecimentos sobre a mecânica newtoniana (de 1687) tenham chegado ao Oriente, senão muito recentemente, não havendo evidências de que as técnicas das artes marciais tenham partido dessas formulações teóricas, a não ser intuitivamente.
As Leis de Newton não representam qualquer invenção, mas interpretação da fenomenologia dos movimentos dos corpos no espaço, cujo comportamento é igual em qualquer lugar do universo, salvo nas situações extremas (buracos negros, supernovas e situações afins) ou infinitesimalmente pequenas, quando aplicável a teoria quântica.
Os movimentos humanos na face da Terra obedecem à mecânica interpretada pelas Leis de Newton, mas sua aplicação requer grande esforço de compreensão, quase sempre contra os resultados meramente intuitivos. Não é possível desdenhar, no desenvolvimento das artes marciais, as inúmeras tentativas malogradas de técnicas, por isso abandonadas ao longo do tempo. Nesse verdadeiro darwinismo da técnica, chegaram até nós aquelas que se comprovaram eficientes, ainda que não seja possível entendê-las fisicamente. É porque é, diz a tradição! A resposta está em submeter os movimentos ao escrutínio das Leis da Física, às Leis de Newton.
Grosseiramente considerando, Newton concebeu três leis fundamentais do movimento: a (1ª) Lei da Inércia, a (2ª) Lei da Superposição de Forças e a (3ª) Lei da Ação e Reação. Resumidamente, os corpos tendem a movimentar-se (inércia) da mesma forma no espaço, até que outra força sobre eles aja (superposição). Quando ou corpo age sobre outro, este outro responde com a mesma força em sentido contrário (ação e reação).
De todas as Leis de Newton aplicadas ao karatê-dô, a da Ação e Reação é a mais facilmente verificável, e se dá usualmente contra o chão. Fisicamente não saltamos ou nos movimentamos à frente, mas sim agimos contra o chão, que “reage” nos levando à frente. Da mesma forma, isso ocorre quando pressionamos o chão ao tempo do impacto do golpe, de modo a por ele transmitir também a reação do solo, equivalente ao peso do corpo sobre ele.
Somente essa evidência já é revolucionária. Pela Lei da Ação e Reação transmitimos ao alvo a cinética produzida contra o chão, razão pela qual essa pressão deve ser logo anterior ao golpe, jamais posterior.
O problema é que nossos sentidos podem trair-nos, como normalmente nos traem. Tão pequena é a unidade de tempo de tais fenômenos, que parecem ser instantâneos. Mas não são. É necessário observá-los para deles retirar o melhor proveito.
As outras duas Leis de Newton têm aplicação mais complexa. A Lei da Inércia regula o movimento, tanto do deslocamento quanto dos membros do corpo ocupados com o ato de golpear. Temos de interpretar a presença das forças implicadas no movimento. Se lançarmos um objeto qualquer (uma pedra, por exemplo) à frente, em algum momento ela perderá velocidade e cairá no solo. Esse fenômeno ocorre pela ação da gravidade e o atrito com o ar, mas serão necessários muitos metros até que o ocaso do movimento aconteça.
Ao golpear, ainda que tais fenômenos estejam presentes, sua influência na trajetória do golpe é muito menor. A “retenção” cinética dar-se-á pela presença dos ossos interligados pelas articulações e sustentados pelos músculos. Intuitivamente consideramos que o melhor a fazer para otimizar o golpe é o uso dos músculos do membro envolvido no ato de golpear.
Equívoco manifesto. Outros músculos muito mais potentes (das pernas) em contato com o chão, à mercê da Lei da Ação e Reação, fazem o trabalho de forma mais eficiente. Ao contrário do que possa parecer, os músculos do braço que golpeia apenas servem, caso contraídos, para desacelerar o golpe. Devem ser utilizados unicamente para direcioná-los, isto é, pondo em linha as articulações na direção do alvo. A mesma aplicação verifica-se no ato de chutar, quando um dos pés permanece em contato com o chão. Por isso, a 1ª lei de Newton nos ensina que, ao golpear, a velocidade imprimida ao golpe dependerá do relaxamento.
Mas não ficam nisso as implicações da mecânica newtoniana no ato de golpear. Observada a 1ª lei, da inércia, a 2ª e a 3ª leis aplicam-se ao átimo entre o momento em que o golpe dispara e aquele em que atinge seu alvo. A ortopedia do movimento não permite aceleração (2ª lei) constante desde o momento do disparo até o momento da chegada, algo em torno de 1/10 de segundo se a distância for de aproximadamente um metro. Acontece que a ação da 3ª lei (Ação e Reação) se dá em intervalo temporal muito menor, ainda que tenhamos dificuldade em perceber unidades de tempo tão diminutas.
Ao princípio, ao membro encarregado de golpear, devemos imprimir o relaxamento para facilitar seu deslocamento, sem que as tensões musculares possam impedi-lo. A aplicação da 3ª lei somente deve se dar aproximadamente no terço final do movimento (1/3 de 1/10), garantido ao impacto os seus efeitos. Nos dois terços iniciais, o membro relaxado sairá da inatividade pela ação natural do corpo, sendo então endereçado ao alvo, quando, finalmente, poderá ser acelerado.
Essas aplicações são mais ou menos complexas na dependência da técnica utilizada, velocidade inicial e final, conexão corporal e peso do membro (mãos, pernas, cotovelos, joelhos e cabeça) utilizado na execução. Sempre será necessário interpretar a situação vivida, com a aplicação das leis da física, para delas retirar o melhor resultado. Os resultados ruins derivam, sempre, desse desconhecimento. Concluindo, o eventual desdém com as Leis de Newton não evitará sua incidência, pois sempre estaremos a elas submetidos, a qualquer tempo ou circunstância.
Fernando Malheiros Filho
é professor de karatê-dô, historiador e advogado,
especialistaem direito da família e sucessões