02 de dezembro de 2024
Budô: a transcendente força de um soco, na luta e na vida
A vida, e toda sua fenomenologia, reclama compreensão. O movimento serve a esse propósito. O golpe morre quando atinge seu alvo e nele deposita a cinética que angariou em sua trajetória
Budô
25 de março de 2021
Por FERNANDO MALHEIROS FILHO
Curitiba (PR)
Propositalmente escolhi a expressão “força”, que dispõe de amplitude lexical maior. A expressão “potência” é mais restrita e, para a hipótese, tem incidência sobre a mecânica e cinética do movimento, enquanto “força” pode significar determinação, intensidade, acuidade, oportunidade, foco, precisão, atenção, equilíbrio, aceleração, choque, e todos os demais qualificativos do ato.
A ideia não é explicar cineticamente o funcionamento do golpe, ainda mais nas inúmeras modalidades conhecidas a partir da arte no qual tem seus fundamentos.
O propósito deste artigo vai muito mais além: pretende dar início à compreensão da importância do ato para o praticante e das várias ideações ou construções mentais a serviço do fim último da prática: o autoconhecimento de quem pratica.
Partimos do elemento fundamental: filosoficamente e fisicamente não haveria vida sem tempo, e não há tempo sem mudança, sem movimento. Daí que não há vida sem movimento, o que se verifica na própria fenomenologia, mas até nas múltiplas teorias que ainda tentam explicar o seu surgimento, circunstância singular ao nosso planeta, pelo menos no âmbito do sistema solar em que estamos geograficamente contidos, na imensa galáxia a que pertencemos.
E quanto mais complexo o movimento, maior a possibilidade de carregar em si a metáfora da própria vida de quem o executa, que, entre humanos e animais, e de certa forma no reino vegetal, divide-se em etapas, muitas, mas que convencionamos dividir, para facilitar o estudo e o conhecimento, em três fases: o início, o meio e o fim.
Na vida humana, o início dá-se com o nascimento, a infância e a adolescência – subdivisões arbitrárias, criadas para facilitar o entendimento. Segue-se a fase adulta, sobrevém a velhice e, com ela, o fim.
O gestual marcial carrega essa feição simbólica. Também pode ser dividido entre início, meio e fim, sendo possível identificar e estudar cada uma de suas etapas, ainda que se trate de fenômeno que se desenvolve em curtíssimos espaços de tempo para a percepção humana a “olho nu”.
Como sabemos, movimentos de artes marciais podem atingir grandes velocidades na perspectiva das limitações corporais humanas. Facilmente o gesto pode chegar à velocidade de dez metros por segundo. Conclui-se que percorre o espaço de um metro no diminuto tempo de um décimo de segundo.
Dentro desse estreitíssimo espaço de tempo (um décimo de segundo) dão-se as três fases, que desafiam a nossa limitada percepção e, mais ainda, o desenvolvimento da técnica, prova inequívoca de que a “vida” do ato se assemelha à vida do agente. Esta alcança o status de metáfora da primeira.
Observados os elementos atuantes, da física newtoniana – que mereceriam outro estudo, muito além daquele que estas linhas pretendem compreender –, é possível entender que o movimento marcial, notadamente o soco (tzuki no karatê), na sua primeira fase, depende do relaxamento, seguindo-se o endereçamento ao alvo e, finalmente, a aceleração até atingir o seu destino ou o limite e esgotamento de sua expressão. Essa a vida complexa do movimento e essas etapas podem ser estudadas em separado, bem como todos os elementos que em cada uma delas atuam.
O que realmente importa é o estudo do movimento como significação da própria vida do praticante, ganhando o movimento, então, “força” moral e filosófica. Depurar o movimento, estudá-lo nas suas imensas, e possivelmente infinitas, possibilidades, aperfeiçoando-o até o limite do humanamente possível, responde e se aproxima do próprio aperfeiçoamento que todo ser humano tem o dever moral de buscar em sua própria vida.
Não ignoro que não é necessariamente assim que as coisas se dão; que a maior parte dos praticantes jamais poderá ou quererá ver as coisas, e sua própria prática, dessa perspectiva, mas esse compreensível desleixo dos seres humanos em geral, nitidamente perceptível, jamais poderá servir ao que pensa como escusa para o desvendamento das complexidades existenciais.
A aventura da vida, além de complexa, pode ser difícil, dolorosa, penosa e sempre significa trajetória com o final triste: a morte. Por mais que as religiões tenham procurado levar os humanos à transcendência, vendo na existência neste mundo apenas uma passagem, em quase todas as culturas a morte é experimentada com enorme tristeza; por aqueles que sabem que vão morrer e pelos que sobrevivem ao morto.
A vida, e toda sua fenomenologia, reclama compreensão. O movimento parcialmente serve a esse propósito. O golpe “morre” quando atinge seu alvo, e nele deposita a cinética que angariou em sua trajetória. Serve ao entendimento da vida e seus movimentos, e serve à ideia de transcendência, no sentido de que a vida produz efeitos para além do tempo de sua própria existência. Daí a percepção de que: um soco (golpe), uma vida.