Karatê-Dô: fenômeno anátomo-neurológico

Não há ação humana que não represente antes um pensamento, ainda que reação instintiva ou reflexa © Thao Lee / Unsplash

O desenvolvimento do pensamento humano, inclusive avaliado pelo método científico, depende da formulação teórica posterior à experiência observacional

Por Fernando Malheiros Filho
10 de outubro de 2022 / Curitiba (PR)

Há muitas formas de ver, observar e interpretar o mesmo fenômeno. O poeta asturiano já o disse: “todo es según el color del cristal con que se mira” (Ramón de Campoamor). Muitos afirmarão ser o karatê-dô uma forma de luta, outros – não muitos –, uma manifestação cultural; ainda outros dirão tratar-se de mecanismo de autoconhecimento; haverá também os que afirmarão cuidar-se de um método de treinamento físico e mental; muitos reconhecerão que representa forma de arte e linha de pensamento filosófico. Todos estarão parcialmente corretos.

De fato, há muitas maneiras, compatíveis entre si, de ver e interpretar os fatos e os fenômenos próximos e visíveis, especialmente aqueles que estão em cada um de nós e a partir de nós próprios podem ser observados, dependendo da ênfase emprestada à avaliação.

Do ponto de vista físico, o karatê-dô representa manifestação mental traduzida pelo gesto, sendo necessário interpretar a qualidade do pensamento antecedente, comparando-a com a qualidade do movimento por ele produzido.

É fundamental, portanto, conhecer a natureza do pensamento e a natureza física dos movimentos. Depois, a influência das leis da física nos movimentos e a importância desta na formulação teórica dos mesmos movimentos, fenômeno abstrato que ocorre no plano mental.

Vale dizer, conhecer a física altera a compreensão mental dos movimentos, alterando os pensamentos que lhes dão origem, modificando, por consequência, os movimentos em si mesmos.

A física dos movimentos, cientificamente constatada ou mesmo por sua observação empírica, compõe a natureza e expressão do pensamento (conduta mental) dos quais os primeiros são originários. Não há ação humana que não represente antes um pensamento, ainda que reação instintiva ou reflexa.

Quando estiver a dizer a seus alunos como são os fenômenos mentais e os movimentos, o mestre sempre estará sendo personagem dessa equação que, mesmo sem saber, a terá revolvido © Ozan Safak / Unsplash

Por isso, das inúmeras formas descritivas do fenômeno, também é possível dizer que o karatê-dô representa fenômeno anátomo-neurológico. Anatômico, por determinar o movimento da anatomia humana (em geral o corpo inteiro), neurológico por representar, antes, ação neural, pensamento, ação cerebral que desbordará no movimento físico.

Tudo isso para explicar que o estudo dos pensamentos haverá de ser elemento essencial para conhecer os movimentos e, entendendo-os, formulá-los teoricamente e, finalmente, aperfeiçoá-los.

É pouco provável que esse processo possa ser otimizado, ainda mais no espaço de uma vida, pela tentativa e erro ou pela mimetização. Essas alternativas, apesar de poderem apresentar alguns resultados positivos em largos períodos, são pouco eficientes e, por isso mesmo, descartáveis.

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O desenvolvimento do pensamento humano, inclusive o avaliado pelo método científico, depende da formulação teórica posterior à experiência observacional. É preciso observar, testar e formular teorias que serão mais ou menos eficazes quando aplicadas à realidade.

Disso advém certo darwinismo teórico, com a “seleção natural” das teorias eficientes, processo no qual o próprio teórico ver-se-á envolvido, ele mesmo melhorando suas percepções.

E, para isso, sem desdenhar as enormes consequências filosóficas dessas percepções, o exercício diário das hipóteses e testagens das teorias sempre será a melhor, senão única, alternativa eficiente.

O mestre – que para sê-lo haverá de ser sábio –, quando estiver a dizer a seus alunos como são os fenômenos mentais e os movimentos, sempre estará sendo personagem dessa equação que, mesmo sem saber, a terá revolvido, em sua prática e reflexões, milhares de vezes ao longo da vida.

Por fim, desconfie de quem sabe sem saber exatamente o porquê.

Fernando Malheiros Filho
é professor de karatê-dô, historiador
e advogado, especialista em direito
da família e sucessões.