13 de dezembro de 2024
A influência do aikidô de Morihei Ueshiba sobre o judô de Jigoro Kano
Em outubro de 1930, Jigoro Kano visitou Morihei Ueshiba no dojô de Mejir, onde assistiu a uma demonstração de aikibudô e ficou muito impressionado com o que viu
Por Paulo Pinto
1º de março de 2023 / São Paulo (SP)
A semelhança entre os fundamentos do judô e do aikidô é bastante reconhecida pelos estudiosos das artes marciais, e foi aqui mencionada recentemente pelo shihan Wagner Bull. Para ele, se uma pessoa conhece bem as bases de judô, ela tem o que ensinar ao praticante do aikidô – e vice-versa. O fundador do Instituto Takemussu, que cultiva o aikidô tradicional criado pelo O-sensei Morihei Ueshiba desde 1988, nos ajuda agora a dar ao leitor uma visão mais profunda da estreita relação as duas escolas.
No outono de 1925, depois de insistentes pedidos de seu admirador, almirante Isamu Takeshita, o professor Morihei Ueshiba foi a Tóquio para fazer uma demonstração de ikidô diante de uma distinta plateia, na qual se encontrava o ex-primeiro ministro Conde Gonnohyoe Yamamoto, que ficou profundamente impressionado e solicitou ao fundador do aikidô que dirigisse um seminário especial de 21 dias, no palácio anexo de Aoyama, para especialistas de alto nível de judô e kendô da Casa Imperial.
Em outubro de 1930, Jigoro Kano visitou Morihei Ueshiba no dojô de Mejir, onde assistiu a uma demonstração de aikibudô, e também ficou impressionado, afirmando: “Isto é o meu ideal de budô; isto é o verdadeiro e genuíno judô”. Para Bull shihan, o primeiro latino-americano a receber o título máximo de ensino e detentor do 7º dan, a mais alta graduação já atingida por praticantes brasileiros, esses encontros confirmam a troca de conhecimento entre os fundadores das duas modalidades.
Pouco depois daquela demonstração, Jigoro Kano solicitou ao mestre Ueshiba que aceitasse ensinar alguns dos mais antigos alunos do Kodokan. Em consequência Minoru Mochizuki e Jiro Takeda, passam a treinar, no Instituto Kodokan, judô e aikidô na versão de Kenji Tomiki.
Para quem não conhece, shihan Wagner Bull lembra que Kenji Tomiki, nascido em 15 de março de 1900 no Japão, começou a manejar um bokken (espada de madeira) quando tinha apenas 6 anos de idade. Aos 10, após entrar na escola primária de Kakunodate, ele se uniu ao clube de judô da cidade.
Em 1926, Tomiki shihan conheceu O-sensei Ueshiba na Universidade de Waseda, em Tóquio, onde estudava, e com incentivo de Kano sensei tornou-se um de seus melhores alunos. Em 1936, enviado à Manchúria – território chinês ocupado na época pelo Japão – para lecionar caligrafia, ofereceu-se para ensinar também artes marciais. Seus alunos de judô e kendô tiveram então a oportunidade de aprender o aikidô. Tomiki shihan foi o primeiro aluno de mestre Ueshiba a obter a graduação de hachi-dan (8º dan), em 1940, e desde então já pensava em modernizar a modalidade.
Mesmo após a Segunda Guerra Mundial, quando foi aprisionado em solitária por três anos num campo de detenção da antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), continuou com seu pensamento voltado para as artes marciais, manteve sua forma física, e idealizou o unsoku, exercício que pode ser realizado em um espaço reduzido, e começou a esboçar a união entre judô e aikidô.
Durante os meses de verão dos quatro anos seguintes shihan Tomiki ensinou aos alunos graduados do Kodokan. Em 1958, fundou o Clube de Aikidô na Universidade de Waseda, da qual era o diretor do departamento de Educação Física, na condição de viabilizar o aikidô como esporte competitivo. Com sua grande experiência em artes marciais, pois já era hachi-dan tanto em judô quanto em aikidô, uniu as técnicas aprendidas com Morihei Ueshiba ao método de treinamento e doutrinas aprendidas com o judô.
Ele criou o randori – treinamento livre – em 1964, com o intuito de tornar as técnicas mais eficientes e transformar o aikidô em esporte competitivo, para atrair jovens praticantes. Tomiki shihan achava que os alunos motivados pelo esporte, com o tempo, iriam apreciar o lado espiritual da arte.
Neste particular o shihan Wagner Bull pensa de forma diferente, como pregava o fundador do aikidô. “Quando a pessoa tem o pensamento na competição voltada para a vitória, esta passa a ser o fator mais relevante, que é a ideia essencial do xintoísmo e do taoísmo: que não se deve treinar a mente para ver os contrários como opostos, mas como complementares.” Ele comenta que por meio do esporte o ego dos praticantes é fortalecido, e, se não tiver uma boa orientação, ou o praticante não for suficientemente maduro, ele pode perder o controle. “Isto se vê frequentemente no futebol”, diz sensei Bull. “Milhões de pessoas no Brasil, que não jogam futebol, não praticam o maravilhoso e necessário exercício físico e mental que o esporte proporciona, mas ficam diante da TV ou numa arquibanca, torcendo para a vitória de seu time. Vitória de quê? Ser campeão do quê? O que de concreto a pessoa ganha com isto? Absolutamente nada. É puro alimento do ego fora de controle. Jogar futebol é excelente, torcer fanaticamente por futebol não me parece algo sadio. Por receio de a competição estragar o dô (caminho), Ueshiba proibiu as competições. Mas os princípios que fundamentam as técnicas de aikidô e de judô são basicamente os mesmos, oriundos das arte chinesas, especialmente as internas.”
Tomiki sensei era um educador, um intelecutal, assim como Jigoro Kano, e seguiu a mesma linha. Mas antes da década de 60 ele se desligou do Aikikai, que é o Instituto Kodokan do aikidô, e fundou sua própria escola.
“Acho que que os judocas que queiram deixar de fazer força, e praticar o judô antigo, podem aprender a usar a energia ki muito mais rapidamente e complementarem seu treino de judô esportivo com a prática do aikidô. Sem dúvida alguma as técnicas poderão ser feitas com muito menos força física. Aliás, no aikidô treinamos para não fazermos força nenhuma, somente aprendendo a utilizar apenas o poder da postura, da força espiritual e mental. Esta força vital que se percebe facilmente quando respiramos ou nosso coração pulsa”, observa shihan Bull.
“Shihan Tomiki foi o primeiro aluno de mestre Ueshiba a obter a graduação de hachi-dan (8º dan), em 1940, e desde então já pensava em modernizar a modalidade.”
Em 1967 foi inaugurado o primeiro dojô exclusivo para a prática e estudo do aikidô competitivo. Shihan Tomiki lhe deu o nome de Shodokan, que significa “a casa do caminho iluminado”. As competições entre algumas faculdades na região de Tóquio começaram e, em 1970, houve o primeiro campeonato japonês universitário, no qual o tanto (tipo de adaga) foi introduzido.
Shihan Tomiki viajou pelos Estados Unidos e Austrália demonstrando e ensinando sua arte marcial. Escreveu vários trabalhos e livros e fundou a Associação Japonesa de Aikidô (JAA) em 1974. Em 1976, foi aberto o Shodokan Hombu Dojo, em Osaka. Ele faleceu em 25 de dezembro de 1979, sendo substituído pelo seu grande amigo e companheiro Hideo Hirosawa.
Uso da percepção ki no judô
Como não promove competições, e treina prioritáriamente e intensamente o desenvolvimento da perceção ki, o aikidô restringe ao máximo o uso da força muscular.
Como sensei Bull diz, e é também a opinião de muitos aikidoístas de alto grau, os princípios do aikidô de cultivo do ki buscam unir a mente ao espírito. Shin Shin Toitsu, corretamente praticado também pelos judocas, pode ajudar enormemente os praticantes de judô a aumentarem a sua sensibiidade para utilizar a energia do atacante no momento do combate, tornando sua técnica mais eficiente e sem uso da força – como ocorria no judô antigo, quando ainda não havia divisão por peso.
“No fundo, esta é a essência do ju, não depender apenas dos músculos, ou seja, com disse Kano sensei: eficiência máxima com o mínimo esforço.”
“Ou seja, o aikidô seria um ótimo complemento para o judô, assim como o judô o é para o aikidô, pois devido à luta permitiria ao aikidoísta aferir sua técnica numa situaçao similar a um combate, embora esportivo, portanto irreal”, acentua shihan Bull. “Infelizmente muitos pseudoprofessores de aikidô ficam ensinando apenas coreografias, não treinam para enfrentar ataques fortes, sem energia, parece uma dança, pois desconhecem o aspecto do budô.”
“No taichi ocorreu o mesmo fenômeno”, explica shihan Wagner Bull. “Muita gente treina somente pelo aspecto da saúde. Isto ocorreu porque, não havendo competiçã e luta, as pessoas podem enganar-se e confundir arte marcial com teatro marcial. No caso do judoca, ele pode testar se já consegue realizar o aiki, que é juntar a intenção do atacante com a sua percepção para controlá-lo e aplicar as técnicas em pessoas mais fortes sem usar muita força muscular, aplicando o principio do ju. Se não consegue, perde a luta e adquire consciência de suas limitações. Treinar kata é importante, mas não é suficiente. É preciso aprender a improvisar, e no aikidô isto se chama Takemussu. O próprio nome do judô sugere que a arte é o caminho, de forma suave e inteligente se controla a força bruta. No fundo, esta é a essência do ju, não depender apenas dos músculos, ou seja, com disse Kano sensei: eficiência máxima com o mínimo esforço.”