Centro de gravidade

Já há séculos, os orientais especulavam acerca da posição do centro de gravidade no corpo humano, provavelmente situado no baixo ventre, localização confirmada pela ciência moderna © Paulo Pinto / Global Sports

É virtualmente impossível pensar em foco sem um domínio exato do centro de gravidade. Mesmo pequenas oscilações neste ponto podem provocar perturbações significativas na execução final de cada movimento.

Por Fernando Malheiros Filho
7 de agosto de 2024 / Curitiba, PR

O centro de gravidade é um conceito físico que tem por fundamento a força responsável pela amálgama do universo. Todo o equilíbrio cósmico, de galáxias e sistemas solares, está calcado na força gravitacional. Embora seja necessário reconhecer que outras forças também atuam, mas que para este ensaio não têm relevância.

Fosse possível “desligar” a força gravitacional, passaríamos imediatamente a flutuar sem nenhum ponto de apoio. Em pouco tempo, os músculos ficariam flácidos até perderem a função e os ossos, porosos até se desmancharem. Entretanto, mesmo que a gravidade pudesse ser “desligada”, deste terrível mal não padeceríamos. É a força gravitacional que também mantém a atmosfera em torno do planeta.  Em segundos estaríamos mortos por asfixia.

Esses breves comentários servem para ilustrar a relevância da força gravitacional para a vida de qualquer ser humano, com especial relevância para o budoka que faz do movimento o seu caminho (Do). Sem a força gravitacional, os movimentos como os conhecemos não existiriam, tampouco a espécie humana ou até outras formas de vida.

Todo o movimento humano, no ambiente gravitacional, tem origem num ponto de apoio que normalmente encontramos no solo. Ocasionalmente poderemos apoiar-nos em obstáculos laterais, mas será do chão que partirão as forças físicas que gerarão a movimentação humana. Com menor relevância também nos servirmos do ar, o mesmo que é mantido ao alcance nossos narizes pela força gravitacional.

A consciência desse fenômeno — para alguns mera obviedade e por muitos despercebida — em muito transcende sua percepção fenomenológica. É preciso compreendê-lo para otimizar a interação e assim alcançar melhores resultados.

Desde Arquimedes, e isso no século II AC, o conceito do centro de gravidade ou baricentro é fundamental à compreensão do movimento dos corpos, representado pelo ponto em que se concentra a força gravitacional. A posição do centro de gravidade em relação a seu corpo determinará o equilíbrio e, a partir dele, o movimento que aquele corpo poderá desenvolver, tratando-se quer de um corpo inanimado, quer de um corpo vivo.

Os orientais, já há séculos, especulavam acerca da posição do centro de gravidade no corpo humano, provavelmente situado no baixo ventre, localização confirmada pela ciência moderna. Com efeito, o conceito do Tanden (Hara), o ponto imaginário que se situa quatro dedos abaixo do umbigo, estava correto. Ali o ponto nevrálgico dos movimentos humanos. Ali o equilíbrio e o desequilíbrio necessários ao movimento eficaz.

Normalmente dispomos deste conceito introjetado instintivamente.  Fosse diferente não poderíamos executar as tarefas mais prosaicas, como movimentar os braços e a cabeça ou caminhar. A própria natureza nos dotou dessa função, tal como qualquer ser vivo que necessite movimentar-se. Contudo, o sistema ganha muita complexidade no momento em que desejamos desenvolver movimentos mais refinados, para os quais não fomos dotados de capacidade instintiva.

Inquestionavelmente, o primeiro conceito a ser dominado é o centro de gravidade. Toda a movimentação do corpo humano está condicionada a sua posição em relação aos demais membros ou porções.  Rapidamente o praticante vai descobrindo que a eficiência do movimento está relacionada à conexão entre no chão, o centro de gravidade e o produto final do gesto.

Mais do que tudo, o refinamento da prática, na velha equação segundo a qual se deve perseguir o resultado máximo com o mínimo de energia, exige a aguda percepção do posicionamento do centro de gravidade, e não só porque o melhor resultado, o mais eficiente, depende da equação energética, mas também porque para o budô o outro, o oponente, é elemento integrante da equação.  E o outro dispõe de razão, emoção e sua própria compreensão do movimento. Nenhuma utilidade haverá de se retirar do movimento potente, mesma na melhor de suas expressões individualmente admitidas, sem cirúrgica precisão, mesmo que para isso a potência cinética tenha de ser reduzida. O movimento isoladamente potente, com frequência, se volta contra quem o produziu. A precisão sempre haverá de estar acima de tudo, daí o foco ou o kime.

É virtualmente impossível pensar em foco sem o exato domínio do centro de gravidade. E isso porque mesmo as pequenas oscilações no centro de gravidade produzem graves perturbações na execução final de cada movimento.

Essa compreensão não pode jamais escapar àqueles que se dedicam ao budô.  Observando e estudando compreenderão que a sintonia com o equilíbrio cósmico, assim considerado pelas leis da física, está no domínio da posição do centro de gravidade, principal preocupação do praticante na execução de cada movimento, para disciplinar o corpo e a mente no respeito àquilo que é imutável.

A prática continuada, a execução contínua e repetida dos movimentos, serve primordialmente à sintonia destes com centro de gravidade, cuja atuação tem efeito purificador, no paradoxal encontro do equilíbrio dentro do desequilíbrio que representa qualquer movimento corporal.

Somente assim o budoka se encontra apto aos desafios externos, seja na sua representação física direta, do oponente a ser vencido, seja na metáfora maior, muitíssimo mais relevante, do encontro do ser humano com a última das verdades.

E não haverá de ser verdadeiro o movimento que, apesar do imenso esforço, não produz sequer uma parte do efeito que dele se espera. Estaremos no caminho da verdade quando a surpresa nos apanhar, quando o mínimo esforço despertar um estupendo resultado. Nada disso será possível sem a compreensão aguda e profunda do conceito do centro de gravidade, que sempre deverá ser explorado para muito além de sua mera representação física, pois nele está guardado o mistério, o segredo, a chave para a compreensão do universo.