22 de novembro de 2024
Para muito além daquilo que os “cegos do shiai-jô” conseguem enxergar
O judô existe naqueles que o vivem em essência, como prática filosófica de vida, nas gentis trocas horizontais humanas, no estender sincero de mãos para ajudar, na honesta busca por um caminhar suave conjunto rumo a um futuro próspero e harmonioso.
Por Marcus Mesquita / Global Sports
9 de agosto de 2024 / Curitiba, PR
Em tempos nos quais a liquidez do todo já afoga, também, a capacidade da maioria de encontrar ídolos ilibados por quem possa devotar sincera admiração pelos feitos que alcançam e que servem de norte-inspirador no que se refere à tríade resiliência, busca por autoaprimoramento e determinação para alcançar o almejado, os Jogos Olímpicos sempre chegam como uma espécie de tábua da salvação. E aí está a 33ª edição das Olimpíadas que não me deixa mentir: já são vários os exemplos daqueles que, merecidamente, deixaram de lado o alter ego de “atletas” para vestirem a persona de “heróis olimpianos”.
Para não me delongar por demais na vastidão de possibilidades de menções honoríficas que eu poderia aqui exaltar – que só no âmbito brasileiro perpassaria por histórias categorizadas em “com pouco” ou “com risível apoio”, “vitórias sem medalhas” ou “vitórias com medalhas”, dentre outras tantas –, eu vou ater-me apenas ao universo do judô, que é a filosofia de vida travestida de esporte à qual me dedico desde criança, ou seja, há muito tempo mesmo.
Só nesta atual edição dos Jogos Olímpicos, que se realiza na capital francesa, Paris, até o dia 11, o judô elevou dez judocas ao panteão de heróis olimpianos brasucas, isto considerando tanto as campanhas individuais quanto a disputa por equipes mistas. Nas individuais, conquistamos uma medalha de ouro com Beatriz Souza, uma de prata com William Lima e uma de bronze com Larissa Pimenta. Já na campanha coletiva, chegamos à medalha de bronze, que é entregue a cada atleta inscrito nesta divisão. E assim sendo, além dos três antes citados, receberam a premiação Daniel Cargnin, Guilherme Schimidt, Ketleyn Quadros, Leonardo Gonçalves, Rafaela Silva, Rafael Macedo e Rafael Silva.
Para quem acha que o que até aqui descrevi já explica o porquê meritocrático das titulações de heróis logradas pelos nossos representantes, eu nem julgo. Infelizmente, é uma convenção universal creditar pódios a sucesso no contexto esportivo. Na própria esfera judoísta tocantinense há quem acredite que só merece respeito o judoca que se torna corcunda por carregar tantas medalhas no pescoço – e só de campeonato brasileiro para cima, vale ressaltar! Entretanto, a minha proposta aqui é ir além de onde, com a devida licença do Nando para esta paráfrase, os “cegos do shiai-jô” conseguem enxergar.
Criador do judô em 1882, o japonês Jigoro Kano, alguns anos adiante, quando começou a ser questionado sobre a possibilidade de ver a sua já internacionalmente bem-sucedida criação introduzida no rol das modalidades olímpicas, afirmava que não apresentaria objeção caso fosse a vontade da maioria. Entretanto, enfatizava o patrono, esta iniciativa jamais partiria dele, que ratificava ter criado o judô não como um mero esporte ou jogo, mas como um princípio de vida, de arte e de ciência.
Convicto disto, Jigoro estabelecia princípios como o jita-kyoei, que prega o bem-estar e benefícios mútuos. E aqui voltamos à atual equipe brasileira, que para além das medalhas, vive o que pregava o Kano shihan, visto que em 2008, ano em que Ketleyn Quadros foi medalhista de bronze nas Olimpíadas de Pequim – primeira brasileira a medalhar em modalidades individuais em Olimpíadas – Rafaela Silva foi a sparring na sua preparação. Oito anos depois, a própria Rafaela foi campeã olímpica no Rio, e hoje Rafaela – que Ketleyn chama de “ídola” – é quem garantiu em Paris o bronze por equipes mistas, levando ambas a subirem no mesmo pódio.
Jigoro Kano também criou a expressão “judoca é aquele que possui inteligência para compreender aquilo que lhe ensinam, paciência para ensinar o que aprendeu aos seus semelhantes e fé para acreditar naquilo que não compreende”. E aqui valem os exemplos da Sarah Menezes, primeira brasileira campeã como atleta em Londres 2012 e como treinadora em Paris 2024, e de Beatriz Souza, que, mesmo vítima de sérias lesões que quase a impediram de integrar a delegação, se tornou a primeira atleta brasileira a sagrar-se campeã individual numa estreia em Olimpíadas. Sem falar na segunda medalha, de bronze por equipes. Vale lembrar que Bia não participou da edição olímpica passada porque perdeu a vaga para Maria Suelen Altheman, com quem passou a treinar e de quem diz ter-se tornado amiga, tendo aprendido com ela valiosos ensinamentos.
“Com tudo isto dito, enfatizo que é honroso e lindo, sim, saber que o judô está há 11 edições seguidas de Jogos Olímpicos garantindo medalhas para o Brasil e que é o “esporte” que mais medalhas conquistou pelo País – 28, até então.”
Por fim, mas não menos importante, destaco outra frase de saber do Kano sensei: “somente se aproxima da perfeição quem a procura com constância, sabedoria e, sobretudo, humildade”. E esta eu associo ao André Mariano, indefectível representante da arbitragem brasileira nestas Olimpíadas, que é um poço de sabedoria e simplicidade. Um dos árbitros mais respeitados na atualidade, Mariano sensei foi o escolhido para conduzir a final dos pesos-pesados no último dia de disputa, com a participação do maior nome do judô da última década, o francês Teddy Riner. Um baita reconhecimento! Um título!
Com tudo isto dito, enfatizo que é honroso e lindo, sim, saber que o judô está há 11 edições seguidas de Jogos Olímpicos garantindo medalhas para o Brasil e que é o “esporte” que mais medalhas conquistou pelo País – 28, até então. Entretanto, ele vai muito além disto, tanto que Kano shihan afirmava que o judô existe para o benefício do homem, apesar de reconhecer, com pesar, a possibilidade de que o oposto pudesse vir a se materializar.
E neste preciso contexto, deixo aqui um alerta: cuidado com quem se diz do judô, pois ninguém é dele, visto que ele transcende qualquer busca por pertencimento, não é palpável como o tão venerado metal dos que só celebram medalhas conquistadas. Ele se faz existente, sim, naqueles que o vivem em essência, como prática filosófica de vida, nas gentis trocas horizontais humanas, no estender sincero de mãos para ajudar, na honesta busca por um caminhar suave conjunto rumo a um futuro próspero e harmonioso.