23 de outubro de 2025
No vasto mosaico das lutas brasileiras, uma manifestação singular ressurge das memórias de um pescador octogenário para lembrar que a história corporal do país vai muito além das influências orientais. É a Luta Tarracá, uma expressão endêmica do norte maranhense — especialmente das regiões ribeirinhas da Baixada — que combina brincadeira, desafio e identidade cultural em um mesmo gesto de agarrar e derrubar.
O estudo publicado por Cláudio J. Borba-Pinheiro, Hudson F. Nunes, Diego G. Linhares, Alam dos R. Saraiva, Ítalo S. Campos e Alexandre J. Drigo na Revista Ciencias de la Actividad Física UCM (vol. 26, n.º 2, 2025) caracteriza pela primeira vez os aspectos técnicos, históricos e simbólicos dessa prática.
A pesquisa, de natureza antropológica e qualitativa, baseou-se no depoimento de um pescador de 87 anos — ex-morador da ilha do Cajual dos Pereiras — e utilizou o método de análise temática para reconstruir o significado cultural do Tarracá na vida comunitária maranhense.
A narrativa do ancião entrevistado revela que o Tarracá era parte do cotidiano dos jovens pescadores. Praticava-se na areia seca ou no mato roçado, após o futebol ou antes do banho de maré. Mais do que um combate, era um jogo de destreza e força, uma prova de coragem que, paradoxalmente, fortalecia amizades.
“Era uma brincadeira nossa”, relata o participante no estudo. “A gente se agarrava, caía na areia, lutava até cansar. Quando um prendia o outro, acabava. Depois todo mundo ia tomar banho na maré.”
A análise dos dados mostrou que o Tarracá combinava ludicidade e competição, com golpes de projeção e imobilização — entre eles, a canga-pé, a baiana, a cabeçada e o mata-leão. A luta terminava apenas por exaustão ou desistência, sem limite de tempo ou espaço.
Para os autores, o Tarracá é mais do que uma simples disputa física. Ele representa uma memória coletiva, transmitida pela oralidade e pela experiência dos corpos em convivência. A prática surge como símbolo de sociabilidade e de resistência cultural, preservando valores de solidariedade e pertencimento que marcaram as comunidades pesqueiras da Baixada Maranhense.
Em termos técnicos, as ações descritas — varridas de pé, ganchos e desequilíbrios — assemelham-se às encontradas na Luta Marajoara do Pará e à Galhofa portuguesa, outra luta de caráter lúdico preservada na Europa. Assim como essas manifestações, o Tarracá traduz uma pedagogia ancestral, em que o corpo é meio de comunicação e celebração da vida comunitária.
Os autores defendem que essa luta, nascida como brincadeira popular, pode e deve integrar a unidade temática de lutas da educação física escolar brasileira. O estudo dialoga com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) ao sugerir que o Tarracá seja reconhecido como conteúdo cultural e educativo, à semelhança da Luta Marajoara, já reconhecida como patrimônio imaterial pelo IPHAN.

Jovens lutam na areia © Imagem gerada por IA / Global Sports
Nesse sentido, o trabalho de Borba-Pinheiro e colaboradores propõe uma nova forma de olhar para as lutas regionais — não como curiosidades folclóricas, mas como expressões legítimas de conhecimento corporal, cidadania e identidade.
A pesquisa encerra-se com um alerta: se nada for feito, o Tarracá corre o risco de desaparecer junto com as memórias de seus últimos praticantes. O resgate científico é, portanto, um gesto de preservação da cultura e da diversidade brasileira.
Mais do que documentar técnicas de combate, o estudo convida a compreender o Tarracá como rito de amizade e afirmação coletiva — uma luta que une, em vez de dividir; que mede força, mas exalta humanidade.
Referência:
Borba-Pinheiro, C. J.; Nunes, H. F.; Linhares, D. G.; Saraiva, A. R.; Campos, Í. S.; Drigo, A. J. (2025). Luta Tarracá: uma manifestação originária da cultura do Maranhão no Brasil. Revista Ciencias de la Actividad Física UCM, 26(2), 149–164. DOI: 10.29035/rcaf.26.2.10
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