O judô brasileiro perde seu maior historiador

Morre o professor kodansha Stanlei Virgílio, autor do maior acervo literário sobre o judô brasileiro.

Autor de oito livros sobre técnicas, biografias e histórias da modalidade, o ex-delegado regional da Federação Paulista de Judô, Stanlei Virgílio faleceu aos 85 anos e deixou um registro literário gigantesco sobre a história e a biografia dos principais personagens do judô paulista e fluminense.

Dono de um comportamento paradoxal, sensei Stanley era austero em seus compromissos, mas totalmente despojado no que diz respeito à vaidade pessoal. Contudo, a sua grande magoa foi não ter a graduação reconhecida pela Federação Paulista de Judô, onde alcançou o 6º dan, enquanto na Liga Paulista de Judô havia alcançado o 8º dan. Leia abaixo a entrevista concedida à Revista Budô, em 2016.

A paixão pelo judô

Traduzida em livros

Mais do que as competições, a filosofia e a beleza dos movimentos fizeram Stanlei Virgílio apaixonar-se pelo judô. Essa paixão transformou-se em ensinamentos para os alunos de sua academia e em oito livros sobre técnicas, biografias e histórias da modalidade.

No começo dos anos 1950, pouca gente sabia o que era na realidade o judô, visto por alguns como uma luta mortal praticada pelos japoneses. Mas Stanlei Virgílio, chegado havia pouco a Assis para iniciar sua carreira profissional, enxergou além dos golpes e combates. Nascido em 31 de março de 1932, em Rio Claro, ele havia passado por outras cidades do interior paulista, como Bebedouro e Jaboticabal, onde concluiu seus estudos na Escola de Agricultura em 1950, antes de chegar a Assis.

Foi nessa cidade, onde iria trabalhar na Empresa de Mecanização Agrícola S.A., que fez o primeiro contato com o judô e teve as primeiras aulas com o professor Massao Kodama. Ao logo de sua vida, até por limitações impostas pelo trabalho, apresentou-se em muitas competições e exibições, mais por amor ao esporte do que em busca de grandes títulos. Em 1987 fundou a Academia Stanlei de Judô e Ginástica, em Campinas. A preocupação em transmitir a seus alunos conceitos até então pouco conhecidos levou-o a escrever um livro sobre técnicas e fundamentos do judô. E não parou mais de escrever.

Stanlei não tem dúvidas de que se tornou uma pessoa melhor, inclusive fisicamente, graças ao judô. Por ele abandonou o futebol, o atletismo e o tênis de mesa. E se sente feliz porque o judô lhe deu tudo que queria da vida. Especialmente a possibilidade de construir sua academia, dentro dos parâmetros que sempre sonhou, com um programa de ensino estudado, aperfeiçoado e melhorado.

O que não significa que não tenha sofrido decepções. A maior delas, afirma, é não ter seu trabalho e sua dedicação reconhecidos pela Federação Paulista de Judô, embora tenha contribuído decididamente para a criação da 15ª DRH – Grande Campinas, da qual foi um dos comandantes. Do futuro, só teme que sua academia possa um dia deixar de existir. Conheça mais dessa personalidade marcante do judô paulista na entrevista a seguir.

Quantos livros escreveu até hoje?

Escrevi dez: A arte do judô, A arte e o ensino do judô, Defesa pessoal, Golpes extra gokio, Judô Campinas – história e arte, Personagens e histórias do judô brasileiro, Conde Koma e Ne-waza, todos sobre judô, além de Despertar da mecanização agrícola e Uma vida, autobiografia.

O que o motivou a escrever sobre judô?

A escassez de literatura. Antes de 1980 eram raríssimos os livros sobre judô, e a maioria era muito ruim.

Qual livro lhe deu mais prazer?

Acho que o mais prazeroso foi o primeiro, porque não via a hora de ser publicado; os outros foram uma consequência, uma continuidade. Mas não se pode dizer que um é melhor do que o outro. Há uma sequência que começa mostrando o que é o judô, para que um principiante entenda seus conceitos e não as técnicas. Já para escrever Os golpes extra gokio pesquisei mais de 100 deles para escolher os que entrariam, e tive de treiná-los até a perfeição. Ensinei e fiz demonstrações desses golpes em vários lugares. Outro livro particularmente interessante é o Conde Koma, que conta toda a história do judô desde o Japão até a entrada dele no Brasil, em 1915.

Qual biografia foi mais desafiadora?

A do Conde Koma, porque tive de viajar no tempo e no espaço. Não enfrentei apenas problemas financeiros, mas tive de ausentar-me de minha vida e enfrentar inúmeras adversidades para mapear a vida e os caminhos daquele pioneiro dos tatamis em nosso País.

Qual foi a entrevista mais emocionante que já fez?

Foi com o sensei Sadai Ishihara, na cidade de Assai, em 2001. A impressão que me causou foi de desolação: um professor como ele, um nome que tem de ser lembrado para sempre pelo judô do Paraná, era uma figura pequena, sentadinha na soleira de uma porta toda quebrada. A academia, que fora referencial no Norte do Paraná, era só escombros. Na casa dele, de madeira toda desgastada, dona Kiê foi fazer um café para a gente, insistindo em dizer que era brasileira, que os filhos são brasileiros, e que não lembrava mais nada do Japão. Esta foi a entrevista que realmente mais me comoveu. Vieram-me lágrimas de ver a situação de um judoca que lutara diante do imperador do Japão, um privilégio reservado aos melhores, agora velhinho, abandonado naquela cidade.

Os livros lhe proporcionaram ganho financeiro significativo?

Infelizmente, só tive prejuízos. No livro do Conde Koma fiquei uma semana em Belém, viajando de ônibus por estradas de terra, com ajuda do presidente da federação paraense da época. Depois de muito custo encontrei o japonês que precisava entrevistar, só que ele não falava português. A mulher dele traduziu, mas não resolveu; foi muito esforço para nada. Fui a Manaus também pesquisar sobre ele. Só que naquele tempo eu tinha condições de me aventurar e bancar as despesas.

Recebeu muito apoio da comunidade judoísta?

Algumas pessoas me ajudaram muito, como o Renato Fruehwirth, na época em que era presidente da Federação Paranaense de Judô. A FPJ, ao contrário, nunca me ajudou em nada. O atual presidente me fez uma indelicadeza que jamais poderia esperar. Quando estava com o livro de ne-waza já adiantado, mostrei-lhe o conteúdo e disse que ficaria honrado se ele escrevesse o prefácio. E ele me respondeu que o faria com muito prazer. Quando o livro estava bem adiantado, enviei-lhe um pen drive com o conteúdo, mas não tive resposta. Tempos depois o encontrei em Amparo e ele disse que estava muito ocupado, mas confirmou que faria o prefácio. Mandei outro pen drive via Sedex, a secretária dele confirmou o recebimento, mas até hoje não tive retorno. Em contrapartida, às vezes nos deparamos com pessoas que nos dão uma atenção inesperada. Quando falei sobre um livro ao professor Ney Wilson, atual gestor do alto rendimento da CBF, e pedi que me ajudasse a localizar as pessoas que deveriam ser ouvidas lá no Rio de Janeiro, ele me hospedou num hotel em frente à federação e conseguiu que as pessoas fossem até lá falar comigo. Fui três vezes ao Rio fazer essas entrevistas. O Renato, o Chico do Judô e o Ney também me ajudaram quando precisei pagar um adiantamento para a editora, depois que o Gerardo Siciliano disse que o livro não interessava à FPJ. Cada federação que ajudou recebeu depois 40 exemplares.

O que o impele a seguir trilhando o caminho da literatura técnica e didática?

A ausência de material para passar aos alunos que virão. O pouco de material que existe por aí é muito mal feito e mal explicado. Minhas publicações têm tudo detalhado, fotografias com legendas numeradas, tudo certinho. Há coisas da história muito interessantes nestes livros.

É possível comparar o judô atual com o de 50 anos atrás?

O judô evoluiu muito. Para melhor, claro, porque naquele tempo os professores que vinham do Japão ainda tinham e ensinavam um pouco de técnica. O meu professor era formado aqui. O Massao Kodama que me desculpe a franqueza, mas ele não tinha conhecimento nenhum de judô. Ele simplesmente largava o povo lutando. Naquela época achávamos que aquela luta dos japoneses matava – e não era nada disso. Nem kata existia. A evolução veio gradativamente. Quem ensinou kata pela primeira vez no Brasil foi o Yoshio Kihara, que veio do Japão com a filha. Antes não existia nada, era tudo na força mesmo.

O que se perdeu de mais importante em todos esses anos?

A filosofia do judô.

Qual foi o fato mais importante na história do judô?

A criação da Federação Paulista de Judô, indubitavelmente. Acho que a implantação das federações, primeiro a FPJ, em 1958, em 1962 a do Rio de Janeiro. Antes disso, por exemplo, aqui em São Paulo existiam núcleos formados por famílias como os irmãos Ono, os Ogawa e a turma do Tatsuo Okoshi que englobava as escolas dos senseis Tokuo Terazaki, Katsutoshi Naito, Seissetsu Fukaia e Sobei Tani. Foi muito difícil unir todas estas escolas, na época, mas foi preciso para a evolução do judô.

“Sensei Motoyuki Murayama nos moldou e nos ensinou

a fazer o que achava certo – e até hoje todos nós concordamos

que ele estava definitivamente certo.”

Qual foi a importância da implantação das delegacias regionais no desenvolvimento da modalidade?

Foi extraordinária, porque cada região pode trabalhar e fazer o judô avançar sem depender tanto da FPJ. Nós, da 15ª DRJ, quando ainda não tínhamos a delegacia aqui, dependíamos da 8ª DRJ e com isso o judô aqui era restrito, acanhado, massacrado, e tudo de que precisávamos tínhamos de pedir para Rio Claro, onde vi coisas absurdas. Certa vez vi toda uma turma ser reprovada em exame, e pouco depois entraram no escritório várias caixas de laranja e garrafões de pinga e logo todos foram aprovados. Lembro que todos das turmas de Limeira e Piracicaba foram reprovados. Eu fiz o nage-no-kata com o Umeo Nakashima, e fui reprovado. Quando perguntei para o Oide por que havia sido reprovado, ele disse que eu pegava antes (eu era o tori) e eu neguei. Na verdade, me reprovou porque não foi com minha cara e pronto. E todos havíamos sido muito bem preparados pelo sensei Murayama.

As DRJs sempre tiveram força política ou isso é coisa recente?

O grande trunfo das delegacias regionais é resgatar a importância geopolítica da modalidade. Quando a 15ª DRJ foi fundada, já tínhamos aqui a União Campineira de Judô, com 33 associações. Essa união nos projetava politicamente no Estado e foi por meio dessa força que derrubamos o lobby do Mubarac e companhia na região. Num acordo que envolveu o Hatiro, Jantália e o Tico, propusemos apoio ao Hatiro Ogawa, que venceu o Watanabe e honrou o trato, permitindo que fundássemos a 15ª DRJ, que hoje é a maior delegacia do Estado depois da capital. A União Campineira, que fundamos um ano antes da 15ª DRJ, já dispunha de material para fazer os eventos, seis áreas de tatamis novos, seis áreas de seminovos. Fui delegado regional aqui de 1990 a 1995 e depois disso o Celso de Almeida Leite, que sempre foi uma pessoa muito capacitada, assumiu. Quando o indiquei para o cargo o Bahi foi contra, dizendo que ele nem era judoca. Eu argumentei que era o único que tinha condição, e a gestão dele é excelente até hoje; ele melhorou, organizou e fez a delegacia crescer. A única mágoa que tenho é que dois anos depois ele tirou toda a equipe que eu havia deixado, gente experiente e de muita responsabilidade, como os professores kodanshas Mercival Daminelli, Milton Trajano, Cláudio Kyoshi Konno, Nélson Pedroso e eu.

Por que demorou tanto para se criar a 15ª DGR, se o judô foi sempre tão importante na região?

Porque o Mubarac e o Watanabe não queriam de jeito nenhum. O que viabilizou a criação da DRJ foi o acordo político que firmamos. Caso contrário estaríamos até hoje sob o jugo de terceiros.

Qual é o maior responsável pela propagação do judô na Grande Campinas?

O judô em Campinas teve três pernas. A primeira, José de Almeida Borges, pai do Odair Borges, que trouxe o sensei Shigueichi Yoshima para ensinar. Só que ele mesmo nunca fez nada pelo judô; a vida toda só fez por ele e pelo Odair. Sobre o sensei Yoshima, podemos chamá-lo de pai do judô de Campinas. A segunda perna foi o Sebastião Germano, que veio para cá em 1966, comprou sua academia, teve os filhos que lutaram, e foi ele que introduziu o judô nos clubes. A terceira perna, quem realmente fez a difusão do judô em Campinas e região, foi o sensei Motoyuki Murayama. Nada sobrou dos dois primeiros, mas Murayama fez escola e ramificou nossa modalidade na região. Cito como exemplos o Milton Trajano, que conhece e estuda as coisas do judô, o Cláudio Kioshi, que também tem uma academia, o Anízio Belchior, o Mercival Daminelli, o Nélson Pedroso e eu. Somos seis professores graduados que continuamos formando judocas, seguindo e semeando os ensinamentos do sensei Murayama para centenas de alunos que estão na estrada do judô. Ele nos moldou e nos ensinou a fazer o que achava certo – e até hoje todos nós concordamos que ele estava definitivamente certo.

Qual o judoca que mais o impressionou positivamente em todos esses anos?

No livro que ainda estou escrevendo cito três pessoas: meu professor Masahiko Murayama, a quem devo muito, pois foi um pai para mim; Sérgio Adib Bahi, com quem tinha grande sintonia, além da amizade; e Mateus Sugizaki, outra pessoa que sempre admirei e que faria originalmente o prefácio do livro de ne-waza.

Qual foi o maior professor de judô na região?

Indubitavelmente foi o sensei Motoyuki Murayama.

E no Estado de São Paulo?

Massao Shinohara. Se alguém no Brasil merece o 10º grau, sem dúvida alguma é ele.

E em nosso País?

O professor kodansha Ryuzo Ogawa foi o grande percursor do judô no Estado e no País.

Qual foi o maior judoca que conheceu nestes anos?

Ainda fico com os dois que já citei anteriormente, Sérgio Adib Bahi e Mateus Sugizaki. São as duas pessoas que mais admirei por suas trajetórias no judô.

“O judô está espalhado pelo mundo e tem a função principal de mudar, educar e melhorar uma sociedade por meio dessa arte. É nesse aspecto do judô que os professores têm de concentrar-se”.

Qual foi o judoca mais técnico que conheceu?

Participei pouco de competições, porque minha vida profissional não permitia. Mas, se for julgar pelo que ouvi a vida inteira, seria o Ricardo Kurachi. Dizem que ele não lutava: simplesmente bailava encima dos tatamis.

E o maior dirigente?

Sérgio Adib Bahi. Ele não olhou só o judô de forma local, ele trabalhou nas Américas, ele levou meus livros para as Américas. Quando morreu, estava a ponto de ser presidente da FIJ, porque seu prestigio em termos mundiais era excepcional. Era um dirigente honesto, trabalhador, competente, um empresário muito bem-sucedido. Era uma pessoa que vivia para o judô e não do judô. Num dos meus livros escrevi o seguinte: Em 25 de julho de 1999 chegou a triste notícia, morreu Sérgio Adib Bahi, porém pouco antes de sua morte, em entrevista que me concedeu para feitura deste livro e talvez já prevendo o desfecho final, fez questão de deixar esta mensagem para os jovens: “O judô educa, é o esporte por excelência, o esporte da integração de todos os valores positivos; foi missão das gerações passadas solidificá-lo, fazê-lo crescer, e essa missão é também desta minha geração e das gerações que virão. Desvinculá-lo do uso da força através da técnica e manter intacta sua filosofia nos dá a certeza de que ele será amanhã o esporte do universo”.

Em competições, os judocas que vêm de nível sociocultural menor se saem melhor. Como vê esse fato?

Não há dúvidas de que nas camadas mais pobres existe mais determinação e vontade de vencer na vida; por isso surgem grandes revelações, tanto no judô quanto em outras modalidades. Além disso, hoje algumas prefeituras estão bancando o esporte, e o judô tem sido bem aceito. Em Atibaia, por exemplo, a prefeitura tem um projeto com mais de mil alunos. É desses mananciais que saem grandes campeões.

O que é preciso para dar maior impulsão à modalidade?

Acho que se precisaria fazer mais justiça. Tenho 63 anos de judô, escrevi oito livros, tenho uma academia desde 1987 pagando filiação, e o que vejo na federação? É só unilateral. Só fui promovido ao 6º grau porque meu professor Murayama insistiu muito, fez uma proposta e entregou para o sensei Nobuo Suga, que deu encaminhamento. Na época eu não tinha dinheiro, mas meus alunos se cotizaram e pagaram. Hoje, se eu quiser uma graduação, tenho de pagar muito dinheiro. Não tenho, mas mesmo que tivesse não pagaria. Um cara que gastou o que eu gastei para escrever grande parte da história do judô do Brasil, que dedicou o tempo que dediquei ao judô, ainda ter de pagar? Sinceramente, é um absurdo.

Qual é o sonho que nutre em relação ao judô?

Já fiz o que tinha de fazer, não tenho mais condições para nada. Este é o último livro que vou escrever. Gostaria que meus alunos e minha academia continuassem depois que eu me for, porque amo isto aqui. Quero que meu neto continue. Quem dá aulas aqui é o Glauco, que é uma pessoa excelente.

Qual é a mensagem que deixa para os futuros judocas do Brasil?

O judô vale a pena. É o esporte por excelência.

E qual é mensagem que deixa para os professores de judô?

Jigoro Kano queria fazer uma coisa grande para mudar o Japão. E ele conseguiu: o judô hoje está espalhado pelo mundo e tem a função principal de mudar, educar e melhorar uma sociedade por meio dessa arte. É nesse aspecto do judô que os professores têm de concentrar-se.