18 de novembro de 2024
A essência do aikidô desde sua origem à prática nos dias atuais
Após contato com grandes nomes do aikidô do Japão no ano passado, shihan Wagner Bull mostra-se satisfeito com o reconhecimento do seu trabalho e revela projetos para 2023
Por Paulo Pinto
21 de fevereiro de 2023 / São Paulo (SP)
De volta de sua viagem ao Japão, em companhia do seu filho Alexandre, sensei Wagner Bull, que possui a máxima graduação como praticante até hoje atingida por aikidoistas do País, tendo sido o primeiro latino-americano a receber em 2009 o título de shihan, graduação máxima oficial de docência no aikidô no Brasil. Aos 75 anos, ainda na ativa, assessorado por seus dois filhos Alexandre roku-dan (6º dan) e Edgar go-dan (5º dan) e alunos antigos, Bull prevê uma agenda repleta de cursos nacionais e internacionais. Além de promover seminários com importantes nomes mundiais da modalidade no Brasil, ele fará uma viagem em março para ministrar um curso em Sorrento, na Itália, a convite do professor Angelo Armano.
Nesta entrevista, sensei Bull também aborda outros assuntos de grande interesse para a comunidade do aikidô brasileira. Depois de avaliar as diferenças entre o aikidô original e o moderno, adentra nos aspectos imateriais do aikidô, na sua influência na formação dos indivíduos e no trato dos problemas cotidianos.
Quais são os eventos já confirmados para 2023?
Antes de tudo, quero esclarecer que os cursos e seminários são abertos a praticantes de todas as escolas. Em fevereiro, no Rio de Janeiro, o professor Carlos Nogueira ministrou um seminário de armas. Grande conhecedor da área, Nogueira treinou com o respeitado professor Hitohiro Saito, filho do respeitado Morihiro Saito e com seu renomado filho Hitohiro Saito. Em março vamos a Sorrento, na Itália para ministrar um curso. Em maio, será a vez do professor Gerard Blaize, melhor aluno de Michio Hikitsushi sensei, a única pessoa a quem o O-sensei Morihei Ueshiba outorgou o juu-dan (10º dan). Será um seminário importantíssimo para quem quer realmente treinar com alguém que conhece e treina bastante o aikidô antigo. Para o segundo semestre já está programada a vinda do professor Hiroshi Hikeda, muito conhecido aqui no Brasil – já o convidei duas vezes – e aluno do sensei Mistugi Saotome. Ele é um mestre importantíssimo que faz seminário no mundo inteiro. Trata-se de uma oportunidade de ouro para quem quer aprender o aikidô antigo e sua conexão com o aikidô moderno.
Os objetivos de sua viagem ao Japão foram atingidos?
Fui ao Japão porque lá vive o mestre Hideo Hirosawa, último aluno vivo do O-sensei, com quem conviveu até o dia anterior de sua ida para o hospital onde faleceu. Ele treinou com Morihei Ueshiba por 20 anos, e desenvolveu o que no Japão se chama bannen aikidô, ou seja, o “aikidô do velho”, a última prática a que a pessoa se dedica na vida. Eu precisava falar com pessoas que realmente sabem e conhecem mais do que eu, por que, lamentavelmente, no Brasil não há ninguém com esse conhecimento após a morte do sensei Massanao Ueno. Para minha felicidade, sensei Hirosawa confirmou praticamente todos os meus questionamentos e acrescentou algumas coisas novas que pude absorver. Em resumo, fiquei contente ao saber que basta continuar meu trabalho.
“Não tenho dúvidas em afirmar que quem está acostumado a praticar judô focado nas competições, e usando muito os músculos e a agilidade física, pode evoluir muito em sua prática, resgatando a percepção e utilização da energia ki, que, no passado, era o recurso que uma pessoa mais leve utilizava para controlar e vencer um adversário mais forte ou mais pesado.”
Quais as principais diferenças entre o aikidô criado pelo O-sensei e o aikidô moderno?
Comparar os dois estilos de aikidô é, de certa forma, como comparar o judô de Jigoro Kano com o de Kyuzo Mifune, um judoca espetacular com uma forma diferente. Isso não quer dizer que um seja melhor do que o outro. Cada um tem vida e estilo próprios. No aikidô, o estilo raiz é mais marcial, para a defesa pessoal, enquanto o moderno é mais plástico, porém menos efetivo numa situação de perigo. Por isso prefiro trabalhar mais o bannen aqui no Instituto Takemussu, mas o moderno é importante também, tanto que sou shihan 7º dan nessa vertente. É minha a obrigação, portanto, desenvolvê-la e divulgá-la, e as nossas promoções seguem o aikidô moderno. Entretanto, o foco principal está no aikidô tradicional, takemussu aiki, que era ensinado pelo fundador Morihei Ueshiba.
É possível também comparar o judô com o aikidô?
Há muito tempo percebi que o judô e o aikidô têm muitos princípios técnicos essenciais, idênticos. Basicamente são artes idênticas, variando a forma de expressá-las e o aikidô guarda muito a posição do espadachim em suas posturas e é claro o judô se tornou esportivo, e nisto, sim está a diferença que é capital. Mas o shihan Jigoro Kano, que viu o aikidô com olhos tradicionais, disse: “este é o judô que imaginei quando o criei”, ele se referia ao princípio do aiki. No mais é tudo muito semelhante. Contudo, se não houvesse a competição, o judô não se teria expandido tanto. Tudo na vida são escolhas. Eu não tenho dúvidas em afirmar que quem está acostumado a praticar judô focado nas competições, e usando muito os músculos e a agilidade física, pode evoluir muito em sua prática, resgatando a percepção e utilização da energia ki, que, no passado, era o recurso que uma pessoa mais leve utilizava para controlar e vencer um adversário mais forte ou mais pesado. Por causa do esporte, as competições foram divididas por peso, como no boxe, ou não seria justo uma pessoa mais fraca ter de lutar com uma mais forte. No caso do judô antigo, em teoria, ser fraco, baixo forte ou fraco, seria indiferente, pois a percepção do ki, permite um equilíbrio energético entre os lutadores. Foi por isto que no aikidô foram proibidas as competições, para que o praticante não se preocupasse em vencer uma luta, mas em usar a energia ki. No aikidô a pessoa se prepara para desenvolver sua percepção e nunca perder, traçando uma estratégia vencedora, sem regras, ou seja, se for preciso usar um revólver, que o use, mas sempre considerando o lado espiritual, não para matar o atacante, mas para conter sua agressividade e trazer equilíbrio e harmonia. Aikidô é um shinken, sem regras, para usar em situações também de vida ou morte. No aikidô é mais importante treinar a percepção, o espirito, não a força muscular ou bruta. Claro que, se puder treinar estes aspectos, é ótimo também, mas no caso do aikidô é secundário.
Em janeiro o aikidô mundial foi surpreendido com o passamento do shihan japonês Yoshimitsu Yamada, que vivia em Nova York. Há alguém capaz de assumir seu papel?
Sensei Yamada, que viveu a maior parte da sua vida nos Estados Unidos, era a maior autoridade do aikidô nas Américas. Não vejo ninguém apto para assumir o posto deixado por ele perante o Hombu Dojô e a comunidade de aikidocas americana. Yamada sensei era uma pessoa única, grande líder, grande empresário no aikidô, com milhares de alunos e uma conexão direta com o Japão. Mas, tecnicamente falando, há muita gente aqui mesmo no Brasil, na América Latina e nos Estados Unidos perfeitamente apta a desenvolver o aikidô moderno que o sensei Yamada fazia. Lamentamos muito sua morte porque ele era um grande líder e gestor carismático. Treinei 11 anos com ele; me ajudou e ensinou muito. Conhecia-o muito bem, assim como conheço os principais alunos dele.
Aos 74 anos, e mais de 50 de prática, qual é hoje a sua visão da arte criada por O-sensei?
A arte criada por O-sensei era realmente Budô, uma arte marcial original cheia de conhecimentos desenvolvidos no Japão antigo, na Índia e na China. É algo profundo, essa é a verdade, uma prática esotérica, nas palavras do fundador. Não é uma religião, mas contém a essência de todas elas, que é a união e o amor, mas dentro do conflito; sem medo de enfrentar inimigos, mas buscando a harmonia, a paz. Entretanto, poucas pessoas absorveram tudo isso, como dizia o professor Yoshinobu Takeda, que começou a treinar em 1960 e que conheci em novembro último em Yokohama. Ele mantém uma grande organização na Ásia. “Há poucas pessoas no mundo fazenda a arte do O-sensei”, foram suas palavras. Mas ele me elogiou, dizendo que eu estaria treinando e ensinando corretamente depois de uma aula e demonstração que fiz para seus alunos, o que me deixou satisfeito. Mas, em termos de número de praticantes, o que prevaleceu mesmo foi o aikidô moderno, da mesma forma que aconteceu com o judô. Raramente vamos achar um judoca treinando da forma tradicional. Hoje a modalidade adota divisão por peso, existem sete categorias. Não vemos mais um judoca baixinho lutar contra um grandão e vencer. Hoje não se pratica aquele judô técnico fundamentado no ippon. O que vemos é um monte de gente forte lutando com o livro de regras embaixo do braço. Como no aikidô com o tradicional e o moderno no judô ocorre algo semelhante, mas não dá para dizer qual é bom, qual é melhor, a forma antiga ou a moderna. Cada um tem suas características. Por exemplo, se não houvesse o aikidô moderno, a modalidade não se teria espalhado para 150 países. Não julgo, ofereço os dois aos meus alunos, e ensino bem os dois. Eu particularmente foco todo meu treino e estudo no aikidô antigo, especialmente o bannen aikidô, mas ensino e promovo meus alunos seguindo suas preferências. É muito difícil aprender bem o aikidô antigo; com dez anos de treino o praticante mal começa a sentir o ki e a deixar de fazer força, usando mais a mente. No caso do aikidô moderno, com dez anos já há muita gente por aí dando aula e sendo chamado de “mestre”. Isto é possível porque a pessoa aprende a coreografia, e como não há competição, quem for mais articulado se destaca.
Como defesa pessoal, em quê o aikidô difere de artes marciais como o karatê-dô e o judô, por exemplo?
Sendo muito realista e dizendo o que penso até aqui é que, em nível de defesa pessoal, acho que não faz diferença se é aikidô, karatê, judô ou outra arte marcial. O que realmente deixa alguém preparado para enfrentar uma situação de perigo é a forma como treina. Para quem treina pensando apenas na força, na velocidade e no músculo, nenhuma arte vai resolver – é melhor comprar um revólver. Agora, se alguém quer realmente aprender defesa pessoal para lutar na vida, qualquer uma delas é boa. O aikidô é extraordinário porque ensina a desenvolver a percepção, e diante de uma dificuldade o indivíduo antevê o perigo, se prepara e supera a adversidade. Mas as outras artes também são efetivas, desde que treinadas com o sentido original. Treinar só esportivamente não resolve porque numa situação de vida a pessoa não terá a percepção necessária e não saberá defender-se. Defesa pessoal não é brincadeira: é a nossa vida que está em jogo e vai vencer quem tiver mais percepção. E adquire essa percepção tanto quem treinou karatê antigo quanto quem pratica judô antigo. A defesa pessoal não tem nada a ver com desempenho do corpo, é pura e simplesmente o desempenho da mente. O-sensei disse isso claramente: “No aikidô não se treina o corpo, treina-se a mente”. Qualquer arte marcial tem de treinar e desenvolver o ki, e ele está em todas elas.
Qual é a força que mantém você e seus dois filhos – ambos profissionais bem-sucedidos em suas áreas – lutando pela expansão do aikidô no País?
Graças a Deus eles só me dão alegrias em todos os sentidos, tanto na prática do aikidô quanto na vida profissional. Mas não acho que haja uma força: são exemplos que dei a eles e um pouco de sorte. Busquei tratá-los sempre com muito respeito, com muito amor, e ensiná-los a serem responsáveis e cumprir aquilo que combinam, sem deixar que ficassem neuróticos, deixando-os expressar a natureza individual. Cada um de nós possui um jeito próprio. Um deles começou no aikidô há 36 anos e outro treina há 33, e felizmente nenhum parou. São excelentes aikidocas e professores muito bons. A coisa mais importante para ensinar a alguém é ter garra, persistência e disciplina. Isto é como uma arte tradicional japonesa que deve ser transmitida nas aulas do dia a dia, por meio da relação do contato do mestre com o aluno e também do senpai com o kohai.
O renomado professor Leonardo Sodré disse que, ao contrário de outras lutas, o aikidô não afasta as pessoas, ele constrói pontes. Você concorda?
Concordo inteiramente com o que o professor Sodré falou, mas acrescento uma coisa: cada um tem de desenvolver a sua percepção, e uma vez que o faça vai entender que não adianta nada afastar os outros – é preciso aproximar-se. Ou seja, o aikidô é a arte do amor e por isso constrói pontes; porque a ponte une e não afasta. Mas isso é uma consequência: o principal mesmo é o indivíduo desenvolver a sua percepção. O sensei Sodré possui excelente handicap e até onde eu sei, se dedica profissionalmente a arte quase que full time. Então pode estar sempre à disposição dos alunos e vem divulgado bastante o aikidô do Aikikai, principalmente nas redes sociais. Atualmente ele, juntamente com o sensei Gianini, de Curitiba, e os líderes das organizações reconhecidas pelo Aikikai no Brasil, entre outros lidere de dojôs e organizações ligadas a shihans do exterior, estão trabalhando para unir as organizações da modalidade e, se possível, torná-la a entidade oficial representativa do Aikidô que poderá ser reconhecida pelo governo brasileiro. Isto será muito bom para acabar com intrigas e até, a falta de ética de algumas pessoas despreparadas que se colocam como mestres. Por outro lado, esta união poderá ajudar a viabilizar maior intercambio técnico entre os diversos membros, proporcionando uma sinergia benéfica para a arte. A boa política, lubrifica as relações, e promove o crescimento mutuo. O-Sensei dizia que o aikidô seria a verdadeira democracia, ou seja, a união de todos para o bem comum e nunca para o benefício egocêntrico de ditadores neuróticos.
Sob o aspecto filosófico-espiritual, qual a relação do aikidô com a energia que emana das pessoas?
O que nós somos? Somos um conjunto de elementos químicos que tiramos do sangue das nossas mães quando estamos em formação e depois crescemos nos alimentando do leite, da papinha, do arroz e feijão, carne etc. Isso, porém, não é aleatório, há uma energia que organiza tudo. O xintoísmo chama isso de naohi, um espírito que se constituiu, uma força que se chama ki em japonês, shi em chinês e prana, no indu. Essa energia que está em todos os seres vivos e constitui a nossa individualidade, que por sua vez está integrada a todos os elementos. É por isso que Jesus falou “Ama o próximo como a ti mesmo”, quer dizer, nós todos estamos interligados. Até a mecânica quântica está provando isso, mas as pessoas não percebem porque se fecham em si mesmas. O indivíduo torna-se uma pessoa sem sentimentos, sem empatia, e vira um ser egoísta e, claro, vai viver mal, sem amor, sem afeto. Todo mundo precisa deixar fluir do amor a energia da união, a energia que é o ki. Ao unir o seu ki com o ki do universo ele se torna o universo, e o universo torna-se parte dele. O fundador do aikidô disse isso, e é essa energia que o praticante treina. Quando alguém ataca um aikidoca, ele não tenta usar a força ou a velocidade do agressor, mas tenta sentir seu ki harmonizar-se com ele. Na verdade, uma técnica de aikidô é como se o praticante fizesse uma oração: vai ligar-se com Deus e receber um grande prêmio, que é sentir-se bem, amado. Vai ter progresso e tudo vai caminhar bem. Esta é a faixa preta máxima do aikidô de O-sensei, aceitar-se como se é e sentir-se pleno, feliz.
No que o aikidô facilitou a sua vida no dia a dia?
São muitas coisas e situações, mas vou citar algo bastante emblemático. Na vida, nem o problema nem a solução dependem das circunstâncias, mas da forma que lidamos com eles. Duas forças opostas podem se autodestruir ou gerar movimento e grande energia. Fazer aiki é reprogramar nosso subconsciente para gerar mais equilíbrio em nossas ações. Em síntese, treinar aikidô é aprender algo para vivermos em equilíbrio, harmonia, alegres, relaxados e felizes!