A experiência no dojô

A distensão é a caraterística fundamental do praticante evoluído, no dojô e fora dele

Não escolhi ser karateca. No primeiro momento foi o karatê e no segundo, o dô que me escolheram

Caminho do Budô
20 de maio de 2020
Por FERNANDO MALHEIROS FILHO I Fotos WKF
Curitiba – PR

Não sei ao certo o mês e dia (as anotações perderam-se na azáfama diária, nas mudanças e por outros contratempos), mas posso dizer que foi em 1973, provavelmente no segundo semestre, quando tive o primeiro contato com o que, até aquele momento, desconhecia integralmente: o karatê-dô. Tampouco, naquele momento, o sufixo dô (caminho) estava em cogitação. Tratava-se de arte marcial japonesa com o nome de karatê, nada mais.

Até hoje – e já passaram 46 anos – não consigo explicar o feitiço de que fui tomado naquele primeiro contato. O que posso afirmar é que não me invadiu nenhuma visão filosófica sobre o fenômeno que testemunhei, cujo fundamento mais profundo somente me tocou 20 depois. Era adolescente, então com 14 anos, e sequer suspeitava de que uma luta poderia ser adotada de tais predicados. Bastou-me a sensação de equilíbrio e a expressão estética que tive frente aos meus olhos, ainda que os praticantes que na época divisei não tivessem qualificação técnica; eram aprendizes na distante Porto Alegre, Sul do Brasil, no início dos anos 1970.

Competição de kumitê no Karatê 1 Premier League Salzburgo

É preciso levar em conta esse elemento fundamental pelo qual todo iniciante acaba envolvido – naquele tempo mais do que hoje, mas atualmente também –, quando não é possível fazê-lo entender a natureza, as agruras e a recompensa pelo caminho que começou a trilhar.

O jovem praticante tem necessidades psicológicas que, caso atendidas, o farão dar seguimento ao treinamento, ainda que não esteja preparado para compreender, mesmo em seus rudimentos, os aspectos da prática, às vezes também difusos ao velho, como eu que, aos 60 anos, dediquei 46 deles ao caminho que me escolheu.

Essa digressão parece necessária: a inconsciência sobre o fenômeno subjacente é própria ao iniciante, que somente conseguirá entendê-lo passados anos, ainda assim se estudá-lo com afinco, a partir da orientação segura daquele a quem cabe ensinar.

Hoje, do alto dessa experiência, posso afirmar que somente o velho, e não pela senectude, mas pelo tempo de prática e reflexão acumulado, é capaz de compreender a natureza do caminho, ainda que lhe falte, e sempre faltará, a completude inalcançável, havendo de levar para o túmulo as dúvidas que não soube solver.

Fazer de cada movimento a expressão metafórica de um ato da vida, cujo equilíbrio, além da eficiência e oportunidade, permitirá viver melhor, enquanto existirmos.”

Quanto mais cedo o jovem tomar conhecimento dessa aventura interna, melhores e mais apreciáveis serão os frutos de sua prática, notadamente aqueles que transcenderem o dojô e puderem alcançar a vida mesma, aplicáveis ao mundo exterior, nas relações que lá se estabelecem, nos êxitos, mas principalmente nos fracassos, na compreensão do envelhecimento e da morte.

Disputa de kata no Karatê 1 Premier League Salzburgo

Tal como a vida, a prática pulsa, mas teimamos em capturar o que é efêmero, com resultado negativo na qualidade dos movimentos. Essa sensação de permanência é letal à boa técnica, que deve compreender o mistério da vida, sendo executada no seu tempo, com fluidez, obedecendo à velocidade permitida, desaparecendo imediatamente após cumprir o seu destino.

Essas tensões que trazemos da vida para a prática, nesta deverão ser dissipadas. A distensão é a caraterística fundamental do praticante evoluído, no dojô e fora dele. Deve compreender as flutuações do corpo e da existência, e delas retirar o melhor resultado, aproveitando as “energias” espontâneas no exato átimo em que se produzem, antes que inevitavelmente se dissipem.

Sempre que vejo um praticante emaranhado em suas tensões, lembro que, para distensioná-lo, será necessário antes compreendê-lo, situá-lo, explicar-lhe que as tensões vêm de fora, de sua vida, e que a experiência no dojô têm por objetivo justamente permitir-lhe a nova consciência de si próprio, capaz de fazê-lo executar o movimento com fluidez (e lutar), em quaisquer circunstâncias, em todo o alcance das metáforas e analogias que temos para a luta.

Freudianamente, situamos os fantasmas longe, por vezes por meio da criação de entidades, para poder enfrentá-los fora, quando estão dentro de cada um. É à superação desses entraves que se deve propor, do meu ponto de vista, a prática correta. Fazer de cada movimento a expressão metafórica de um ato da vida, cujo equilíbrio, além da eficiência e oportunidade, permitirá viver melhor, enquanto existirmos.

Fernando Malheiros Filho é
professor de karatê-dô,
historiador e advogado, especialista
em direito da família e sucessões