A faixa: mito e realidade de um símbolo essencial

A graduação implica direitos e deveres e vincula todos os valores que devem ser repassados às gerações futuras

O obi (faixa) é um objeto e símbolo forte intimamente ligado à prática das artes marciais e do judô em particular. Como judoca, usamos faixa e, por associação, somos essa faixa: tenho faixa preta e sou faixa-preta

Caminho – Dô
2 de agosto de 2020
Por Nicolas Messner I Fotos GRABIELA SABAU / IJF
Budapeste – Hungria

A motivação para alguns, a representação de um nível técnico para outros, o que chamamos de ‘Obi’ (帯) em japonês, também ajuda mais prosaicamente a manter o judogi fechado. Qualquer que seja o seu papel ou atributo, é um elemento fundamental e significativo que distingue o judô e as artes marciais de qualquer outra disciplina esportiva.

Desde o início do judô, em 1882, surgiu a questão de manter o kimono (judogi) fechado. Tinha que ser feito de maneira adequada e sem apresentar perigo para um judoca ou seu parceiro (adversário). Qualquer abotoamento foi proibido e, portanto, o princípio da faixa foi rapidamente adotado. Quando a faixa nasceu, o professor Jigoro Kano deu-lhe significado com a mesma rapidez.

Em seiza, a faixa-preta Majlinda Kelmendi, judoca kosovar medalha de ouro nos Jogos Rio 2016

Concretamente, além da necessidade de manter o judogi fechado, a faixa deve ser robusta o suficiente para suportar as garras e puxões que são aplicados a ele. Também deve ser larga e grossa o suficiente para não ferir quem a veste. Composta por várias camadas de tecido costuradas longitudinalmente, a faixa permite que certas técnicas sejam executadas em pé e, embora os regulamentos internacionais proíbam a aderência permanente a ela, o obi pode ser usado para fins ofensivos, bem como em técnicas aplicadas no chão.

As diferentes faixas que se obtém durante a vida como judoca marcam a progressão no esporte. O estudo do judô é um processo de longo prazo, que começa idealmente em tenra idade, embora seja possível iniciar o estudo do judô quando adulto. A obtenção de notas é, portanto, um processo contínuo que motiva o praticante a saber mais. O faixa-preta tem uma dimensão misteriosa. Ser faixa-preta de judô significa conhecer coisas que outras pessoas não sabem. No entanto, à medida que a prática avança, passo a passo, todos têm a possibilidade de obter conhecimento filosófico. No início, a faixa preta é um sonho idealizado pela criança, mas, gradualmente, torna-se a meta que se estabelece e que é possível alcançar através do trabalho e dedicação.

Portanto, é importante sublinhar que as graduações não são e não devem ser automáticas. Elas orientam a avaliação do nível técnico, a eficácia no combate e o grau do judoca, bem como as qualidades morais, que correspondem ao escrupuloso respeito pelo código moral, além de um investimento suficiente na prática. Sem um mínimo de respeito às regras exigidas, nenhum judoca pode reivindicar a obtenção da promoção.

As faixas coloridas, como as conhecemos hoje (da branca a marrom), foram inventadas na Inglaterra em meados da década de 1920 e depois introduzidas na França pelo professor Mikinosuke Kawaishi, onde ele desenvolveu o conceito sob a égide da Federação Francesa de Judô. Em seguida, vieram as chamadas notas mais altas: respectivamente, preta do 1º ao 5º dan, vermelha e branca do 6º ao 8º dan e, finalmente, vermelho para o 9º e 10º dan.

Mais recentemente, faixas bicolores foram introduzidas em alguns países (branca-amarela, amarela-laranja, laranja-verde ou verde-azul), representando graus intermediários que permitem a propagação da progressão do praticante mais jovem, sabendo que é comumente aceito que a primeira faixa preta possa ser obtida a partir dos 15 ou 16 anos.

Jigoro Kano, fundador do judô

As faixas de cores branca à marrom correspondem aos graus chamados de kyu. Esses níveis são determinados pelo professor de judô, que leva em consideração, durante o exame organizado no dojô, critérios técnicos, resultados ou participação em várias competições e eventos e o comportamento do aluno (vinculado ao código moral do judô).

Em seguida, os níveis são chamados de dan. Um faixa-preta pode ir do 1º ao 5º dan: sho-dan (1º dan), ni-dan (2º dan), san-dan (3º dan), yon-dan (4º dan) e go-dan (5º dan).

Então o sexto (roku-dan), o sétimo (shichi-dan) e o oitavo (hachi-dan) são representados pela faixa vermelha e branca. Os graus são distinguidos pela largura das faixas coloridas (6º dan tem 20 cm, 7º dan tem 15 cm, 8º dan tem 10 cm). O nono (kyu-dan) e o décimo (ju-dan) são simbolizados pela faixa vermelha.

Sendo ele mesmo 11º dan, Jigoro Kano não obteve graduação acima do 10º. Hoje, isso ainda representa um limite que não pode ser excedido. Simbolicamente, após sua morte, ele foi promovido por Jiro Nango, seu sobrinho e sucessor à frente do Instituto Kodokan, ao 12º dan, representado por uma faixa larga e branca. Filosoficamente, isso significava que, depois de ter aprendido e até inventado tudo, era necessário reaprender tudo. A outorga deste 12º dan ocorreu em 1940, ano em que os primeiros Jogos Olímpicos de Tóquio deveriam ter acontecido, pelo qual o professor Kano havia sido o porta-voz da candidatura do Japão. Naquela época, o mestre Kano já possuía o mais alto nível no judô com seu 10º dan, o que fez com que esse 12º dan criasse uma lacuna insuperável que ninguém jamais conseguirá preencher.

Cada nível possui seu próprio simbolismo: o 2º e o 3º dans correspondem ao nome japonês deshi, que significa discípulo; o 4º e 5º a renshi ou praticante que possui domínio externo, enquanto o 6º e 7º dan correspondem a kyoshi, ou seja, um instrutor que possui o mestre interior e do 8º ao 10º dans são conhecidos como hanshi, ou um professor modelo que possui domínio interno e externo unificados. O título de meijin, ou professor ilustre, também pode ser atribuído ao 10º dan.

Se voltarmos um pouco pela história do judô, descobriremos rapidamente que a utilização de faixas diferenciadas são invenção de Jigoro Kano, mesmo que a data exata de sua criação não esteja totalmente definida. Elas passaram a existir assim que Kano concedeu o primeiro dan, em 1883, um ano após a criação do judô. O que parece certo é que, já em 1886, certas ilustrações parecem corroborar com a existência de um sistema faixas, mesmo que a primeira menção escrita remeta a 1913.

Professor kodansha ju-dan (10º dan), Massao Shinohara o primeiro sensei das Américas com esta graduação

Para criar seu sistema de classificação, o professor Kano foi inspirado pelo método de recompensa Menkyo, datado do século XVI e correspondendo a certificados apresentados em rolos. Em cada uma delas, foram escritas várias informações, como o nome do destinatário, seu nível, as técnicas aprendidas e a duração do treinamento, entre outros itens incluídos.

Mesmo que as cores fossem limitadas (branca, marrom, preta), podemos dizer que, desde o início, Jigoro Kano pensou em um sistema coerente para determinar o nível de seus alunos.

Aqui está o que o criador do judô disse sobre seu sistema de classificação (graduação): “Eu fundei o Judô Kodokan no ano 15 de Meiji [1882] e estabeleci as graduações dos praticantes rapidamente. No passado, o número de graduações era diferente e cada uma recebia pergaminhos com vários nomes, mas basicamente havia três divisões principais que eram: mokuroku, menkyo e kaiden. Percebi que, entre cada uma delas, havia um tempo enorme e, para que isso ajudasse em termos de motivação dos praticantes, achei por bem criar outros níveis. Então, batizei os iniciantes de mudan-sha [praticantes sem dan] que separamos em três divisões: kô, otsu, hei e estabelecemos um sistema no qual nos tornamos primeiro dan depois de uma certa progressão na prática e depois o segundo, terceiro, quarto dan e assim sucessivamente, fazendo com que o 10º dan seja concedido a pessoas que no sistema antigo teriam atingido o nível kaiden. Posteriormente, eu ainda achava que meu sistema com três estágios kô, otsu e hei, demandava muito tempo e para motivar os praticantes reformulei o sistema estabelecendo um primeiro, segundo, terceiro, quarto, quinto kyu e um não-grau, que correspondia ao sexto. Com a experiência adquirida desde então, concluí que este formato de graduação atendia plenamente às nossas necessidades”.

A partir de 1913, os kyus foram divididos em duas cores de faixa, a faixa branca 5º e 4º kyus e a faixa marrom do 3º ao 1ª kyu) para adultos, enquanto os jovens praticantes usam faixa roxa em vez da marrom. Inicialmente, o dan foi dividido em duas cores: a faixa preta do 1º ao 9º dan e a faixa vermelha para o 10º dan. Em 1931, a faixa vermelha e branca representava a graduação do 6º ao 9º dan. Finalmente, em 1943, o 9º dan também foi autorizado a usar a faixa vermelha.

Em 1926, o mestre japonês Gunji Koizumi, fundador da Associação Britânica de Judô e do primeiro dojô europeu e, portanto, considerado o pai do judô britânico, fez uma invenção que revolucionou o sistema de classificação. Ele introduziu faixas com cores adicionais. Já em 1927, os novos obis apareceram nos relatórios da Budokwai. No programa de Gunji Koizumi, há cinco cores (branca, amarela, verde, azul e marrom), às quais foi adicionada a faixa laranja para corresponder ao sexto kyu do Kodokan.

Em 1935, outro especialista japonês, Mikinosuke Kawaishi, depois de uma estadia na Inglaterra, introduziu faixas coloridas também na França e desenvolveu um programa de ensino associado, que em breve seria chamado de “Método Kawaishi”. Essas invenções e adequações corresponderam totalmente à maneira ocidental de pensar e permitiram ao judô florescer no Ocidente, especialmente entre os membros mais jovens da sociedade. Este modelo de faixa colorida rapidamente se tornou referência. As graduações intermediárias bicolores foram introduzidas na França em 1990, permitindo que um judoca jovem e assíduo galgasse uma graduação por ano a partir dos seis anos de idade, para poder se preparar para a faixa preta ao entrar na adolescência.

O sistema de classificação inventado por Jigoro Kano e desenvolvido por outros especialistas foi tão bem-sucedido que foi adotado por outras artes marciais e até outros esportes que adaptaram um sistema de classificação também com base no mesmo conceito. O sistema kyu/dan ainda é o mais utilizado atualmente.

Uta Abe, a jovem faixa-preta japonesa campeão mundial júnior e sênior

É importante lembrar, no entanto, que a graduação não é o objetivo principal, mas representa a jornada percorrida pela prática cotidiana. No treinamento, fornece uma indicação visual para que um parceiro possa adequar seu nível e vice-versa. Hoje em dia, nas competições, é mais difícil ver essa distinção, pois quase todos atletas do circuito internacional usam faixa preta e não é permitido o uso de faixa vermelha e branca.

No entanto, a faixa cumpre importante missão de respeito e responsabilidade em relação às graduações inferiores. É um atributo pessoal, refletindo um nível e o trabalho realizado. Assume uma dimensão filosófica que proíbe o praticante de usar as técnicas aprendidas fora do dojô. Por outro lado, implica que o praticante deve considerar cotidianamente os valores do código moral do judô.

A faixa e a graduação representam, portanto, os valores da mente e do corpo que também encontramos na ideia de shin-ghi-tai (mente, técnica, eficiência) que ensinamos aos jovens judocas desde os primeiros anos. É por isso que, quando você amarra a faixa, é importante que os dois extremos tenham o mesmo comprimento, porque são uma representação simbólica da mente e do corpo, que, para uma vida equilibrada, têm a obrigação de coexistir em harmonia. Também é importante amarrar o nó da faixa corretamente; deve ser horizontal! Um nó cujas duas extremidades se projetam verticalmente, simbolicamente corta as energias físicas e espirituais que emanam do hara (estômago). Não devemos esquecer que o judô é uma disciplina de origem japonesa e que, para os japoneses, nosso estômago ou hara é o reservatório de nossa energia. Centrados nisso, demonstramos confiança e serenidade.

Finalmente, não é impossível que originalmente as faixas fossem brancas, para iniciantes, mas perdessem a brancura, ficando pretas quando o judoca praticava assiduamente, daí a progressão do branco para o marrom e depois para o preto.

A história pode atrair pessoas mais jovens e, mais uma vez, é carregada de simbologia. O certo é que a faixa do judoca significa e representa muita coisa. Não é apenas um pedaço de tecido amarrado na cintura. Implica direitos e deveres e vincula todos os valores que devem ser repassados ​​às gerações futuras.

Nicolas Messner é diretor de Mídia e Comunicação da Federação Internacional de Judô (IJF)