A linguagem do corpo na relação entre atletas e técnicos

Se o judô filosófico de Jigoro Kano não é adequado à conduta dos atletas em competições, ele é mais do que oportuno para nortear as atitudes de qualquer liderança esportiva

Psicologia do Esporte
21 de abril de 2020
Por Vera S. Sugai
Fotos DI FELICIANTONIO EMANUELE, GABRIELA SABAU E RAFAL BURZA
Artigo publicado na Revista Budô em 2012
Curitiba – PR

A psicologia esportiva está muito ligada ao tema da motivação.  Motivar uma equipe, ajudar o atleta a superar as dificuldades com atitudes mais positivas é o que sempre esperam. Motivação é importante, mas não a panaceia que apregoam, e afirmo que qualquer trabalho centrado neste tema é temerário.

É possível que uma conversa motivadora ajude, mas somente se o atleta já é, por si, motivado e está confiante em sua própria capacidade; na hora do shiai não haverá motivação que dê conta de um treinamento precário, de bloqueios motores, de problemas crônicos não resolvidos, falhas técnicas que não foram ajustadas ou momentos de “brancos” devastadores.

Jun Shinohara no Grand Slam de Paris 2020

Está claro que se faz necessário um trabalho bem abrangente para dar conta de tantas variáveis.  Mas creio que, em primeiro lugar e como base de tudo o mais, um olhar mais apurado para o corpo do atleta, seus movimentos e para a forma como ele treina é fundamental. Deve-se considerar como ele pratica seus uchi-komi, como utiliza seus ukemis, como entende e vive os randoris que pratica, e ainda importante: como respira ou deixa de respirar. Tudo isto treinando com cuidadosa observação, para desenvolver também percepção e a atenção de boa qualidade.

Rafael Macedo encaixa o morote-seoi-nage no sueco Marcus Nyman e garante o bronze no Grand Prix de Tel Aviv 2020

Atletas de qualquer modalidade treinam e competem com seu corpo em seu pleno potencial expressivo, e o momento competitivo se faz no mais concentrado silêncio. Somente o corpo, na sua linguagem de gestos significativos, faz a comunicação; é ele, a seu modo, que “dá seu recado”. E é bom lembrar que, em qualquer conversa ou relação, o diálogo corporal é extremamente rápido. A velocidade da sua resposta é infinitamente maior do que qualquer palavra, por mais rápida que seja essa resposta verbal. Então, exceto para alguma explicação com certeza necessária, todo o processo de preparação exige muita observação, treino da percepção e da propriocepção – percepção dos seus próprios movimentos. Exemplo: não levaremos jamais algum sorvete à testa, ainda que no escuro, porque temos apurado desenvolvimento desta habilidade de perceber com acuidade os próprios movimentos.

Yuko Fuji, a treinadora da seleção brasileira masculina da classe sênior

Para uma preparação desta natureza o psicólogo esportivo, além das qualidades de bom motivador e de conhecedor das patologias, precisa ser alguém muito familiarizado com as terapias corporais. Temos grandes teóricos corporais raramente levados em consideração, mas eles são de essencial importância no entendimento dos problemas deste universo tão especifico das competições.

Nós, brasileiros, nos acostumamos a exaltar e a copiar tudo o que vem de fora, da Europa principalmente, mas a nossa experiência no que tange ao judô nos mostra que sabemos bastante. Temos por herança dos nossos imigrantes japoneses um judô excelente.  Mas se não o colocarmos em questão, revendo as teorias mais tradicionais para desenvolver novas formas de treinamento, o restante do mundo esportivo, a exemplo do futebol, reagirá nos surpreendendo com os melhores resultados. Com isto, quero aqui assinalar que é preciso cuidar mais da preparação psicológica voltada ao treinamento de alto rendimento. Ao observarmos atentamente os treinos da atualidade, excetuando as boas atuações no campo da preparação física ou de algum treinador mais vivaz, mais criativo, o panorama não é de avanço. Quando já sabemos que no mínimo 60% dos resultados competitivos se devem a uma boa preparação psicológica e nada fazemos de efetivo, o que percebemos é no mínimo um retrocesso; quando nada fazemos para ir à frente, para progredir, ficamos para trás.

Sob o olhar atento de Yuko Fuji, o suíço Timo Allemann projeta o peso leve Eduardo Barbosa

Então, para nos elevarmos ainda mais na categoria de um bom judô internacional, será preciso sair do lugar comum mediante uma preparação mais sofisticada; seja no olhar mais aguçado, mais amplo, do técnico na compreensão psicológica dos processos biológicos, seja na relação mais profissional e eficaz do técnico e seu atleta. Vamos nos ater a esta última variável, a mais delicada e um tema realmente complicado.

Uma equipe de atletas de alto rendimento que se considere moderna, avançada, não prescinde do trabalho do psicólogo esportivo, não somente auxiliando os atletas, mas principalmente o técnico. Boa parte dos nossos técnicos não é preparada nesta área. Acredito que alguns dediquem algum tempo a leituras específicas no intuito de conseguir um trabalho mais efetivo com o seu grupo, mas outros acreditam que pelo fato de ser judoka por formação, sabem utilizar todo um arsenal de conceitos do judô tradicional de Jigoro Kano. Creio que há certa verdade nisso, e todo o arsenal doutrinário de Jigoro Kano seria de excelente auxílio na tarefa de dirigir um grupo. Mas me pergunto se esses conceitos são realmente vividos de forma clara e verdadeira.

Fuji comemora com Rafael Silva, a conquista do bronze no Grand Slam de Dusseldorf de 2020

Alguns técnicos, mais sinceros e corajosos, questionam a utilidade desses ensinamentos e apontam a diferença que existe entre o judô do praticante, um judô filosófico, e o judô competitivo. E como argumento para não utilizá-los com seus atletas, afirmam que judô competitivo é para ser entendido e vivido com a “violência ou a animalidade” que o atleta conseguir extrair de dentro de si. Concordando ou não, é um posicionamento a ser respeitado, mas a experiência tem demonstrado que o judô, e principalmente o judô competitivo, deve ser exercido com talento técnico e com um tanto de agressividade e força física realmente, mas também é preciso muita inteligência para administrar de forma estratégica essas forças instintuais, do contrário elas se voltarão contra o próprio atleta. Elas não são controladas ao nosso bel prazer, pois não somos irracionais, e assim elas irrompem desordenadas, destruindo boas oportunidades, coisa que acontece com demasiada frequência.  Entretanto, em que exatamente alguns bons técnicos podem mais se equivocar?

Leonardo Gonçalves e Rafael Buzacarini disputam a final do meio-pesado do Aberto de Oberwart 2020

Um lutador inteligente, com grande percepção do que acontece no seu entorno, pode notar que o seu técnico, embora entenda bastante do treinamento, é alguém um tanto limitado como pessoa – e se decepciona bastante. Com certeza, dificuldade afetiva, incoerência, vaidade, arrogância e pouca coragem são atributos humanos, são dinâmicas pessoais a serem trabalhadas ao longo de uma vida. Entretanto, tudo isso se torna um grande entrave e não fica bem em nenhuma relação em que a tônica relacional deva ser o cuidado, a admiração carinhosa e um modelo a ser seguido.  Bem, se o judô filosófico de Jigoro Kano é indevido para nortear a conduta dos atletas em competições, ele é mais do que oportuno no sentido de nortear as atitudes de qualquer liderança esportiva.

O judô de Kano, no mínimo, nos fornece uma base: o treino da humildade como a conduta primeira e a que determina o padrão de toda a arte. Exercê-la como um dever propicia uma observação honesta de si mesmo. Um olhar questionador a tudo o que se diga ou faça. Somente assim é possível evitar projeções impróprias de desejos pessoais. E, aliada a um saudável bom humor, que ela ajude a administrar bem as destemperanças em prol de um estado de espírito mais equilibrado, mais sereno, mais compreensivo e mais verdadeiro frente ao seu atleta.

Na disputa do bronze no Grand Slam de Paris desta temporada, Rafael Silva caiu diante do cubano Andy Granda

Em termos gerais, professores e técnicos, visto que alguns exercem essas duas funções, se dividem em: os indiferentes, cujos treinos prosseguem previsíveis como as estações do ano, e os que são verdadeiros papais ou mamães, excessivamente possessivos, principalmente no trato com as mulheres, o que é desarrazoado.  Entretanto, tudo isto pode ser bem resolvido com o acompanhamento de um profissional honesto.

Muitas vezes por receio de parecer uma figura fraca demais para um modelo ultrapassado do técnico esportivo de caserna, ainda herança de uma educação física militar, o técnico se petrifica em uma liderança solitária e autoritária. Os tempos são outros e não é preciso ser alguém tão perfeito e sem falhas para ter o respeito do grupo.  Mas alguém que se empenhe em adquirir mais consciência de suas falhas é no mínimo reconhecido como corajoso e justo consigo mesmo e com os outros. E também, convenhamos, somente assim conseguiremos mais equilíbrio e lucidez, num mundo onde a fantasia de glórias, por vezes, beira as raias da loucura.

Yuko Fuji no Aberto de Oberwart 2020

E, para terminar, um lembrete: gostamos de acreditar que as pessoas que nos rodeiam não percebem as nossas segundas intenções, por mais sutis ou disfarçadas que sejam, através do nosso olhar, de gestos que nos denunciam. Justamente são esses gestos mal interpretados os que mais provocam verdadeiros desastres em qualquer tipo de relação e, no caso, são os que resultam em prejudicar todo um projeto. Mas não temos um espelho para nos mirarmos sempre que nos dirigimos a alguém. Em contrapartida, o que de melhor ganhamos neste trabalho pessoal é uma razoável autoestima. E não é pouca coisa! É desta forma que nos tornamos o nosso melhor amigo, nosso melhor conselheiro, nosso crítico mais sincero. É somente assim que ampliamos o nosso grau de compreensão em relação aos outros e, sem perceber, influímos e motivamos pessoas, ajudando-as na busca dos seus sonhos. Isto é autoconhecimento e é fundamental no processo de liderança. O papel de liderança do técnico é fundamental, haja vista a natureza altamente estressante da trajetória competitiva. Um alto desgaste emocional é previsto e todo e qualquer trabalho no sentido de minorá-lo é importante, a começar com a questão das relações pessoais. Sendo a figura central do técnico de uma enorme abrangência num processo interpessoal complexo, penso que não dá para prescindir de mais ajuda, ainda que seja dos velhos conselhos de um grande mestre.

Afora tudo o já dito acima, temos as questões de cunho psicomotor, que infelizmente ainda não são pensadas pelas equipes de treinamento. Mas isto fica para outra ocasião.

Falecida em 8 de julho de 2015, a budoka Vera Sugai foi
uma grande escritora, psicóloga e faixa-preta sho-dan de
Judô e ni-dan de Aikidô, professora de
yoga e terapeuta de EMF.