A luta e a arte marcial

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A luta é limitada a si própria, mas suas raízes oferecem, a quem desenvolve sua prática, horizonte não percebido por aqueles que têm nela apenas o exercício físico, a habilidade na defesa pessoal ou a vitória em competições.

Por Fernando Malheiros Filho
1º de junho de 2023 / Curitiba (PR)

O que, para muitos, pode parecer indistinguível comporta distinção. Senão ao público leigo, aos praticantes, mesmo os mais experientes, não é incomum essa confusão teórica. Afinal, a arte marcial seria apenas uma forma de luta?

O tema é complexo, e não pode ser abordado sem a prévia avaliação conceitual e histórica. Em todas as culturas e continentes, de alguma forma, desenvolveram-se artes guerreiras. Até hoje não é possível encontrar as verdadeiras razões pelas quais os seres humanos fazem guerra, ainda mais sabendo-a tão deletéria, tão destruidora, tão lesiva. Povos inteiros chegaram a ser extintos, e outros estiveram a ponto de sê-lo, mercê dos conflitos ancestrais. Afora isso, e com relevo, as guerras destruíram joias arquitetônicas, cidades inteiras, obras de arte, relegando ao esquecimento, em um átimo, séculos de cultura.

A história da civilização conta-se por guerras. Foram dezenas de milhares, desde as menos importantes até aquelas que envolveram grupos de países, povos contra povos. Não é possível entender a trajetória humana senão através de suas guerras.

Esse cenário pouco alentador fez com que os povos – e os indivíduos – estivessem constantemente preocupados com sua defesa, alguns com a expansão de seus territórios à custa dos vizinhos ou daqueles que serviriam ao ímpeto na espoliação. Isso sem contar as chamadas guerras civis, entre os patriotas do mesmo país.

É dessa razão fundamental que surge a ação humana na própria defesa ou no ataque, inclusive a discussão em torno do direito ao porte de armas de fogo. Sempre fomos belicosos – todos os povos – e lutar, nesses milênios que nos separam da aurora dos tempos, imposição à sobrevivência.

São tão antigas quanto a existência humana as formas de luta, com as mãos desarmadas ou mediante o porte dos mais variados artefatos, sempre em busca do melhor resultado – é preciso reconhecer –, do maior dano a ser causado no oponente. É a guerra em seu estado puro.

Mesmo voltando ao primeiro símio que passou a se servir de alguma haste dura (na genial alegoria de Stanley Kubric, em 2001, uma Odisseia no Espaço, baseada no livro de Arthur C. Clarke The Lost Worlds of 2001), passando por exércitos na antiguidade, as guerras napoleônicas ou os conflitos mundiais do século XX, sempre o propósito ao guerrear é o mesmo: defender-se de invasores ou invadir, em qualquer hipótese matando ou ferindo o inimigo.

“É muito diversa a posição do mero praticante, ou do atleta de competições, ocupado em dominar e refinar suas técnicas, daquele que tem na arte seu caminho para o  autoconhecimento (daí o Budô, ou simplesmente o caminho do guerreiro, ou da guerra) e de tudo que o cerca, desde o microcosmo de sua existência até as grandezas do macrocosmo, em ambos os casos tão incognoscíveis quanto os limites da mente humana em entendê-los.”

As lutas convencionais atuais, desde o boxe até o MMA, não fogem desse desiderato: embora as regras tenham sido estabelecidas para preservar a integridade física dos atletas, o objetivo é neutralizá-los, com a dor ou o desfalecimento. Tais práticas, apesar da brutalidade, têm contato com os instintos mais primitivos do gênero humano e são muito populares, por isso rentáveis, atraindo legiões de atletas interessados no resultado econômico, o que parece compreensível, apesar dos riscos envolvidos.

Mas, e com ênfase cada vez mais evidente, desenvolve-se o processo imanente às artes marciais que, apesar de associado às lutas, distancia-se de seu objetivo.

Até mesmo a semântica é traiçoeira no exame do fenômeno. Lutas e guerras são próprias a todos os povos, em todos os quadrantes do planeta, mas as “artes marciais” que se popularizaram foram aquelas que provieram do Oriente, notadamente do Japão, berço da maior parte delas.

O nome que se consagrou tem raízes destacadamente ocidentais, romana, no Deus Marte, a divindade da guerra, que também dá nome ao planeta, que acabou por levar essa designação por sua cor, vermelho sanguíneo, fruto de sua delgada atmosfera, predominantemente composta de dióxido de carbono.

Ainda que o nome tenha essa origem elíptica, o fato é que as artes marciais, alicerçadas nas lutas que lhes dão origem, tendem a delas se separar, formando sistema de valores e de compreensão da realidade mais amplo, profundo, e de potencialidades ainda não inteiramente exploradas.

É muito diversa a posição do mero praticante, ou do atleta de competições, ocupado em dominar e refinar suas técnicas, daquele que tem na arte seu caminho para o autoconhecimento (daí o Budô, ou simplesmente o caminho do guerreiro, ou da guerra) e de tudo que o cerca, desde o microcosmo de sua existência até as grandezas do macrocosmo, em ambos os casos tão incognoscíveis quanto os limites da mente humana em entendê-los.

A medição – se é que é possível fazê-lo – do proveito que uns ou outros podem retirar da arte marcial não está relacionada com a eficiência do praticante em expor e desenvolver sua técnica, ou de sua proficiência em lutar, mas daquilo que dessa prática consegue incorporar ao seu desenvolvimento moral, filosófico e, em certa medida, religioso.

Associa-se o lutador àquele que põe a dormir seus adversários, os submete pela dor ou imposição física. O objetivo final do artista marcial é a consciência de si mesmo. E pode fazê-lo mesmo com limites físicos – e até mentais –, sendo idoso, independentemente do sexo.

Aqui a distinção pode ser entendida, entre um e outro dos praticantes. A luta é limitada a si própria, mas suas raízes oferecem, a quem desenvolve sua prática, horizonte não percebido por aqueles que têm nela apenas o exercício físico, a habilidade na defesa pessoal ou a vitória em competições. Objetivos plenamente aceitáveis, o que não se desdenha.

Há um universo disponível ao “artista marcial”, aguardando para ser explorado. A aventura existencial é temporalmente limitada, e pode ser interrompida abruptamente, como as guerras, a violência e as doenças teimam em nos impor. É melhor experimentá-la da forma mais aguda e profunda, revolvendo aquilo que há submerso em cada praticante, capaz de desvendar sua verdadeira identidade. Esse é o desafio.

Fernando Malheiros Filho
é professor de karatê-dô, historiador
e advogado, especialista em direito
da família e sucessões.

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