12 de novembro de 2025
Grous brancos que deram origem ao kata kanku-dai
Nesta viagem através do tempo, saiba como uma luta travada por dois grous, em 1650 na província de Fujian (China), resultou na criação dos fundamentos do kata kanku-dai
História
28 de agosto de 2020
Por LUIZ ALBERTO KÜSTER I Fotos ARQUIVO
Curitiba – PR
Há 370 anos, numa pequena vila no município de Yongchun, na província de Fujian (China), as águas azuis do lago banhavam placidamente as margens cobertas de grama verde. O cenário incluía dois enormes grous brancos que lutavam acirradamente. Movimentando-se com agilidade em suas longas pernas, trocavam bicadas entre si. Completamente brancos em sua plumagem, concentrados em sua luta, ignoravam o mundo ao redor.

O estilo Fujian White Crane é uma arte marcial do Sul da China que se originou no condado de Yongchun, na província de Fujian
Perto dali, observando atentamente a luta, a menina Fang Qiniang não resistiu à tentação. Como o grou é um símbolo de felicidade e juventude eterna em toda a Ásia, pegou uma vara do chão e resolveu apartar a briga. Os grandes pássaros brancos não desistiram da luta, mas o que era uma refrega entre dois, passou a ser entre três. Eles se desviavam dos golpes de vara com graciosos movimentos de corpo, e atacavam a menina com bicadas entre asas abertas. Surpresa e derrotada, Fang foi obrigada a abandonar a luta e passou a meditar profundamente sobre o ocorrido.
Fang era treinada em artes marciais pelo seu pai, mestre de chuan fa, luta chinesa que foi ocidentalizada e generalizada como kung fu. O pai, zeloso e preocupado com a segurança, saúde mental e física da filha querida, a submetia a rigoroso treinamento diário.
A menina, extasiada com os movimentos dos pássaros brancos, inspirou-se neles para criar golpes e contragolpes de luta, logo incorporados ao seu treinamento diário. Nascia assim o estilo de kung fu que ficou conhecido como Fujian White Crane, ou Luta do Grou Branco, praticado no Sudoeste da China. Seus movimentos leves e elegantes, porém potentes e poderosos, criados pela menina Fang Qiniang, logo encantaram a população de Fujian.
A técnica espalhou-se pela China e pela Ásia, chegou às ilhas de Okinawa, transcendeu as brumas do tempo, existe e é praticada até os dias de hoje.
Kwang Shan Fu, militar, monge e embaixador, 1750
Em 1750 a última dinastia imperial chinesa reinava há mais de cem anos. O Grande Qing (Qingé Tchin) deu nome à China moderna.
Em busca de aproximação política e comercial com as ilhas de Ryukyu (Okinawa), o imperador Qing enviou para a cidade de Shuri, capital das ilhas, o militar e embaixador Kwang Shan Fu, natural da província de Fujian, onde estudara e aprendera a arte marcial do Grou Branco criada pela menina Fang Qiniang.
Ao chegar a Shuri como representante oficial do imperador chinês, foi recebido com grande respeito, tanto pelas autoridades quanto pela população local.
Dada a dificuldade notória dos japoneses em adaptar-se aos sons de línguas estrangeiras, o embaixador logo passou a ser chamado Kusanku, uma corruptela fonética de Kwang Shan Fu.
Shuri-te, a fusão do te de Ryukyu com o Fujian White Crane
Em sua nova moradia na cidade de Shuri, Kusanku logo estabeleceu forte relação de amizade com um dos maiores mestres de te das ilhas Ryukyu, o mestre Peichin Takahara (1683 – 1760). Takahara era também de casta militar, estudioso de astronomia e cartografia. Consta que ele desenhou os primeiros mapas das ilhas de Okinawa.
Naquela época, Takahara, já com idade avançada de 68 anos, mantinha o ensino e prática da luta marcial das ilhas, conhecida como te. Entre seus alunos, destacava-se um jovem de 18 anos: Kanga Sakugawa (1733 – 1815).
Reconhecendo o potencial do aluno nas artes marciais, ele o recomendou a seu amigo Kusanku para treinamento. Assim, Sakugawa, o aluno de te, tornou-se discípulo do mestre de Fujian White Crane.
Virou uma lenda em Shuri pelas suas habilidades marciais. Ficou conhecido como Tode Sakugawa (Sakugawa Mão Chinesa). O aluno viajou com o mestre em mais de uma oportunidade para a China, onde permanecia por longos períodos de tempo, a treinar no Templo Shaolin de Fujian. Era praticamente invencível em combate sem uso de armas.
Tode Sakugawa resolveu consolidar as técnicas e práticas aprendidas ao longo de sua vida, unindo o te, aprendido em Okinawa, com os ensinamentos do mestre chinês. Criou um kata, forma de treinamento de combate, que denominou kusanku. Conseguiu assim, além de homenagear, imortalizar o nome do mestre que tanto lhe ensinou.
O curioso é que nunca conseguiu formar um discípulo, apesar de uma promessa a seus mestres de que o faria. Até que, em 1812, com a idade de 79 anos, para honrar sua promessa, aceitou um aluno, filho de um amigo, adolescente encrenqueiro e problemático: o jovem Sokon Matsumura (1809 – 1899).
Sokon Matsumura, fundador da escola Shorin-ryu
O jovem Matsumura era amarrado a um tronco de árvore, de modo a não poder se esquivar ou recuar frente a um ataque. Recebia uma sequência de socos e chutes, e assim logo adquiriu perícia e fama.
Conheceu uma jovem, Yonamine Chiru, também reconhecida por suas habilidades em lutas e artes marciais. Yonamine, que vinha de uma família famosa nas ilhas pelas características guerreiras, propalava que jamais se casaria com um homem que fosse menos habilidoso que ela.
Sokon Matsumura a desafiou e venceu; tomou-a para o que seria o casamento da sua vida. Tornou-se o principal oficial militar a servir Sho Tai, o último rei de Okinawa, antes da anexação final das ilhas ao Império Japonês em 1879.
Matsumura manteve o ensino e disseminou o kusanku. O kata é praticado até os dias de hoje, em escala mundial, como um dos principais da escola Shorin-ryu.
Gichin Funakoshi 1868 – 1957
Yasutsune Itosu, secretário do rei Sho Tai, e Yasutsune Asato, conselheiro real e senhor da vila de Asato, foram os principais discípulos de Sokon Matsumura.
Ambos foram mestres de Gichin Funakoshi. Mesmo assim, Funakoshi teve oportunidade de treinar diretamente com o velho mestre, apesar da grande diferença de idade.
Sob o olhar atento de Matsumura, receberam o ensinamento e o treinamento do kusanku. Funakoshi, em sua saga para conseguir a aceitação e inclusão do karatê na cultura japonesa, e adaptado à estrutura de treinamento de sua escola Shotokan, fez pequenas alterações de forma, sem alterar a estrutura do kata, e o renomeou, chamando-o kanku-dai.

Funakoshi executando o kata kanku-dai, que expressa a união do céu, terra e do lutador, que enfrenta inimigos imaginários atacando de todas as direções. O grande movimento circular inicial visto por um praticante de Fujian White Crane será o das asas do grou
Era o kata predileto do mestre Funakoshi, pelas técnicas de tempo rápido e lento, dinâmicas da força, e expansão e contração muscular.
Até hoje, passados 370 anos, em nossos treinamentos rotineiros de kanku-dai, estamos a repetir os movimentos circulares das asas do grou, e assim, tornamos perene a inspiração e a criatividade da menina chinesa Fang Qiniang.
Luiz Alberto Küster estudou na Academia Militar das Agulhas Negras é Engenheiro Civil (Universidade Federal do Paraná) e mestre em engenharia (Colorado State University). Foi presidente da Confederação Brasileira de Karatê e atualmente é o secretário geral da ITKF.
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