22 de dezembro de 2024
A menina chinesa e sua inspiração transcendental
Nesta viagem através do tempo, saiba como uma luta travada por dois grous, em 1650 na província de Fujian (China), resultou na criação dos fundamentos do kata kanku-dai
História
28 de agosto de 2020
Por LUIZ ALBERTO KÜSTER I Fotos ARQUIVO
Curitiba – PR
Há 370 anos, numa pequena vila no município de Yongchun, na província de Fujian (China), as águas azuis do lago banhavam placidamente as margens cobertas de grama verde. O cenário incluía dois enormes grous brancos que lutavam acirradamente. Movimentando-se com agilidade em suas longas pernas, trocavam bicadas entre si. Completamente brancos em sua plumagem, concentrados em sua luta, ignoravam o mundo ao redor.
Perto dali, observando atentamente a luta, a menina Fang Qiniang não resistiu à tentação. Como o grou é um símbolo de felicidade e juventude eterna em toda a Ásia, pegou uma vara do chão e resolveu apartar a briga. Os grandes pássaros brancos não desistiram da luta, mas o que era uma refrega entre dois, passou a ser entre três. Eles se desviavam dos golpes de vara com graciosos movimentos de corpo, e atacavam a menina com bicadas entre asas abertas. Surpresa e derrotada, Fang foi obrigada a abandonar a luta e passou a meditar profundamente sobre o ocorrido.
Fang era treinada em artes marciais pelo seu pai, mestre de chuan fa, luta chinesa que foi ocidentalizada e generalizada como kung fu. O pai, zeloso e preocupado com a segurança, saúde mental e física da filha querida, a submetia a rigoroso treinamento diário.
A menina, extasiada com os movimentos dos pássaros brancos, inspirou-se neles para criar golpes e contragolpes de luta, logo incorporados ao seu treinamento diário. Nascia assim o estilo de kung fu que ficou conhecido como Fujian White Crane, ou Luta do Grou Branco, praticado no Sudoeste da China. Seus movimentos leves e elegantes, porém potentes e poderosos, criados pela menina Fang Qiniang, logo encantaram a população de Fujian.
A técnica espalhou-se pela China e pela Ásia, chegou às ilhas de Okinawa, transcendeu as brumas do tempo, existe e é praticada até os dias de hoje.
Kwang Shan Fu, militar, monge e embaixador, 1750
Em 1750 a última dinastia imperial chinesa reinava há mais de cem anos. O Grande Qing (Qingé Tchin) deu nome à China moderna.
Em busca de aproximação política e comercial com as ilhas de Ryukyu (Okinawa), o imperador Qing enviou para a cidade de Shuri, capital das ilhas, o militar e embaixador Kwang Shan Fu, natural da província de Fujian, onde estudara e aprendera a arte marcial do Grou Branco criada pela menina Fang Qiniang.
Ao chegar a Shuri como representante oficial do imperador chinês, foi recebido com grande respeito, tanto pelas autoridades quanto pela população local.
Dada a dificuldade notória dos japoneses em adaptar-se aos sons de línguas estrangeiras, o embaixador logo passou a ser chamado Kusanku, uma corruptela fonética de Kwang Shan Fu.
Shuri-te, a fusão do te de Ryukyu com o Fujian White Crane
Em sua nova moradia na cidade de Shuri, Kusanku logo estabeleceu forte relação de amizade com um dos maiores mestres de te das ilhas Ryukyu, o mestre Peichin Takahara (1683 – 1760). Takahara era também de casta militar, estudioso de astronomia e cartografia. Consta que ele desenhou os primeiros mapas das ilhas de Okinawa.
Naquela época, Takahara, já com idade avançada de 68 anos, mantinha o ensino e prática da luta marcial das ilhas, conhecida como te. Entre seus alunos, destacava-se um jovem de 18 anos: Kanga Sakugawa (1733 – 1815).
Reconhecendo o potencial do aluno nas artes marciais, ele o recomendou a seu amigo Kusanku para treinamento. Assim, Sakugawa, o aluno de te, tornou-se discípulo do mestre de Fujian White Crane.
Virou uma lenda em Shuri pelas suas habilidades marciais. Ficou conhecido como Tode Sakugawa (Sakugawa Mão Chinesa). O aluno viajou com o mestre em mais de uma oportunidade para a China, onde permanecia por longos períodos de tempo, a treinar no Templo Shaolin de Fujian. Era praticamente invencível em combate sem uso de armas.
Tode Sakugawa resolveu consolidar as técnicas e práticas aprendidas ao longo de sua vida, unindo o te, aprendido em Okinawa, com os ensinamentos do mestre chinês. Criou um kata, forma de treinamento de combate, que denominou kusanku. Conseguiu assim, além de homenagear, imortalizar o nome do mestre que tanto lhe ensinou.
O curioso é que nunca conseguiu formar um discípulo, apesar de uma promessa a seus mestres de que o faria. Até que, em 1812, com a idade de 79 anos, para honrar sua promessa, aceitou um aluno, filho de um amigo, adolescente encrenqueiro e problemático: o jovem Sokon Matsumura (1809 – 1899).
Sokon Matsumura, fundador da escola Shorin-ryu
O jovem Matsumura era amarrado a um tronco de árvore, de modo a não poder se esquivar ou recuar frente a um ataque. Recebia uma sequência de socos e chutes, e assim logo adquiriu perícia e fama.
Conheceu uma jovem, Yonamine Chiru, também reconhecida por suas habilidades em lutas e artes marciais. Yonamine, que vinha de uma família famosa nas ilhas pelas características guerreiras, propalava que jamais se casaria com um homem que fosse menos habilidoso que ela.
Sokon Matsumura a desafiou e venceu; tomou-a para o que seria o casamento da sua vida. Tornou-se o principal oficial militar a servir Sho Tai, o último rei de Okinawa, antes da anexação final das ilhas ao Império Japonês em 1879.
Matsumura manteve o ensino e disseminou o kusanku. O kata é praticado até os dias de hoje, em escala mundial, como um dos principais da escola Shorin-ryu.
Gichin Funakoshi 1868 – 1957
Yasutsune Itosu, secretário do rei Sho Tai, e Yasutsune Asato, conselheiro real e senhor da vila de Asato, foram os principais discípulos de Sokon Matsumura.
Ambos foram mestres de Gichin Funakoshi. Mesmo assim, Funakoshi teve oportunidade de treinar diretamente com o velho mestre, apesar da grande diferença de idade.
Sob o olhar atento de Matsumura, receberam o ensinamento e o treinamento do kusanku. Funakoshi, em sua saga para conseguir a aceitação e inclusão do karatê na cultura japonesa, e adaptado à estrutura de treinamento de sua escola Shotokan, fez pequenas alterações de forma, sem alterar a estrutura do kata, e o renomeou, chamando-o kanku-dai.
Era o kata predileto do mestre Funakoshi, pelas técnicas de tempo rápido e lento, dinâmicas da força, e expansão e contração muscular.
Até hoje, passados 370 anos, em nossos treinamentos rotineiros de kanku-dai, estamos a repetir os movimentos circulares das asas do grou, e assim, tornamos perene a inspiração e a criatividade da menina chinesa Fang Qiniang.
Luiz Alberto Küster estudou na Academia Militar das Agulhas Negras é Engenheiro Civil (Universidade Federal do Paraná) e mestre em engenharia (Colorado State University). Foi presidente da Confederação Brasileira de Karatê e atualmente é o secretário geral da ITKF.