15 de novembro de 2024
A montanha e o budô
O budô dispensa razões, existe por ser e não por necessitar ser; ele próprio impondo obstáculos, a todo o momento
Caminho do Budô
19 de março de 2020
Por FERNANDO MALHEIROS FILHO I Fotos BUDOPRESS
Curitiba – PR
Tempos antes de ser engolido pelos ventos gélidos e o ar rarefeito da grande altitude no Monte Everest, onde desapareceu, perguntado sobre as razões íntimas para o desafio de escalar a montanha mais alta do mundo, o alpinista inglês George Mallory respondeu: “Porque ela está lá”.
Semelhante poderá ser a resposta de quem trilha a senda do budô, ao ser questionado sobre os treinamentos repetitivos, os objetivos que não se podem alcançar pela razão, a vida inteira dedicada a desvendar os enigmas do movimento e do ser que o executa. Que outro poderia ser o caminho?
Essa percepção, é claro, não está ao alcance do praticante que se inicia na arte de fazer do seu corpo a expressão de seu pensamento. Mas, se ele sobreviver ao tempo em sua existência, dedicando-se à árdua tarefa de descobrir em si o que há no mundo, envelhecendo nesse mister, começará a perceber aquilo que, quando jovem, passava despercebido, embora, enigmático, habitasse suas entranhas, explicando a teimosia que o fez seguir adiante.
Igual ao alpinista morto ao investir contra o cume da montanha, o budoka enfrentará a montanha de si mesmo, escarpada, gélida e inexpugnável, tornando a escalada mais insalubre quanto maior a altitude. Mas ela segue lá, e para lá é que se deve ir.
O budô dispensa razões, existe por ser e não por necessitar ser; ele próprio impondo obstáculos, a todo o momento, ao alpinista que deseja alcançar-lhe o cume, certificando-o de que a sua existência e, mais do que isso, a glória de fazê-lo, não passa de ilusão, figura mental que produzimos de nossa própria natureza para adoçá-la, quando a realidade da escalada é dura e áspera, somente permitindo chegar àqueles que disso derem conta no aprendizado que fazem a cada dia.
O cadáver de George Mallory foi encontrando em 1999, não se sabe se estava a caminho do cume do Everest ou em seu retorno, na jornada do dia 8 de junho de 1924. Para ele nunca importou se chegou lá, o que realmente importa é que morreu no “caminho”.
O caminho do guerreiro padece de tais vicissitudes, e a ninguém é dado duvidar de que Mallory foi guerreiro. Ainda que não saibamos se ele encontrou o cimo, esse fato nenhuma relevância tem para sua memória. Dedicou a vida a fazê-lo. Esse é o único caminho digno do significado que o budô empresta ao fenômeno.
Mallory não estava em busca da vista que o topo do mundo pode oferecer àquele que atinge o objetivo, quase sempre turvada pela intempérie e pelas dificuldades físicas enfrentadas por todos que decidiram desafiá-lo. Queria ouvir e entender a voz interior que o levava a fazê-lo. Estou certo de que a escutou nítida e compreensível pouco antes de desfalecer.
São da essência do caminho as dificuldades e as dúvidas, o temor, e a paz quando as diáfanas certezas são encontradas para logo depois se perderem para sempre.
Talvez por isso, outro alpinista, que ganhou fama por ser o primeiro a chegar ao cume do Everest em 1953 – ou pelo menos o primeiro a retornar para retratar seu feito –, o neozelandês Edmund Hillary (sem esquecer do sherpa Tenzing Norgay), tenha dito a quem quisesse ouvir: “Não é a montanha que conquistamos, mas nós mesmos”. (It is not the mountain we conquer, but ourselves.)
Fernando Malheiros Filho é
professor de karatê-dô,
historiador e advogado, especialista
em direito da família e sucessões