A relação sempai e kohai

Os professores kodanshas Luís Alberto dos Santos e Rioiti Uchida cumprimentam-se após execução de nage-no-kata

O exemplo de relação fraternal, tão comum entre os judocas, deve estimular os sempais, a atuarem como multiplicadores sociais, disseminando os cuidados para com o outro como a forma mais importante para estabelecer o bem na sociedade

Hiden – Judô Essência
13 de abril de 2020
Por PAULO DUARTE I Fotos BUDOPRESS
Artigo publicado em 2011 na Revista Budô
Curitiba – PR

A relação do sempai (mais graduado) com o kohai (menos graduado), estimulada pela orientação do sensei, deve constituir importante momento de reflexão para melhor aproveitamento dos princípios do judô no âmbito das escolas e academias.

Longe de uma prática autoritária, como muitos podem imaginar, essa relação deve ser pautada em respeito e consideração mútuos. É a oportunidade que o (a) sempai tem para demonstrar sua compaixão, ouvindo e colocando-se no lugar do (a) kohai, explorando seus pensamentos e sentimentos. Muitos já sentiram o alívio que resulta da conversa com alguém que se predispõe a ouvi-los. Esses encontros não devem acontecer por acaso. Os sempais devem ter a percepção de que os kohais, em determinados momentos, necessitam de ajuda, e devem criar as condições propícias para conversar. Atento (a) para que a qualidade do relacionamento, especialmente qualidade de honestidade, confiança e confidência, se façam presentes, a conversa terá como propósito e objetivo dar o devido apoio nas questões que forem colocadas em pauta. Não intervindo mais do que o momento sugere, o (a) sempai deve colocar-se à disposição pelo tempo que for preciso.

As judocas Aline e Juliana executam o ju-no-kata durante o campeonato paulista de kata de 2011

Dentro do contexto de cuidados que deve caracterizar a ação do (a) sempai, devemos destacar as preocupações esportivas/educacionais/sociais. A retransmissão das técnicas e experiências pessoais é de grande valia para o desenvolvimento e aperfeiçoamento tanto do judô quanto da pessoa. Essa dinâmica é muito utilizada no Japão (ex-atletas não se afastam do dojô enquanto uma nova geração não estiver devidamente formada). Comprometidos em devolver ao judô tudo aquilo que obtiveram para seu crescimento esportivo/educacional/social, os ex-atletas esmeram-se na retransmissão dos conhecimentos que adquiriram, colaborando assim com a manutenção da qualidade do judô praticado em suas escolas e no país. Esse exemplo, ensinado pelo professor Jigoro Kano por meio de suas máximas, deve ser seguido por toda a sociedade judoísta. A preocupação do mestre com a formação integral do judoca foi a base de sua metodologia de ensino e, por esse motivo, o judô expandiu-se por todos os continentes. É de nossa responsabilidade a continuidade desse trabalho!

No mundo contemporâneo, a ausência dos pais em grande parte do dia na vida dos filhos transferiu para as escolas a incumbência da educação. Nessa categoria encontra-se o judô. Quando os pais encaminham seus filhos para uma escola de judô, o fazem conscientes de que encontrarão a ajuda que necessitam para a difícil tarefa de educar. O judô incorporou em sua filosofia os princípios da cidadania – ética, moral, costumes – constituindo importante ferramenta de construção do tecido social.

A retransmissão das técnicas e experiências pessoais é de grande valia para o desenvolvimento e aperfeiçoamento tanto do judô quanto da pessoa.”

É nessa forma de ser escola que estão depositadas as maiores esperanças da comunidade. Por isso, somos chamados a intervir nesse processo em toda sua integralidade.

A começar pelo ambiente do dojô, devemos compará-lo a um templo. Toda reverência e respeito lhe são devidos. O ambiente onde se pratica judô tem uma correlação muito estreita com o mundo. É aí que, após uma queda, aprendemos a levantar. É aí que aprendemos a cair sem nos machucar. Numa analogia com o mundo, as quedas assemelham-se às adversidades da vida. Só conseguimos superá-las (levantar) amortecendo corretamente seus impactos. Assim como as quedas são inevitáveis no judô, na vida as adversidades também o são. Em ambos os casos é preciso aprender a amortecer seus impactos. Isso posto, temos também, no dojô, a oportunidade de aprender alguns princípios de solidariedade. Ao saudarmos o companheiro antes e depois do treinamento, reconhecemos a sua gentileza em ceder seu corpo para que possamos praticar nossas técnicas e, em contrapartida, aceitamos seus cumprimentos pela cessão do nosso.

O tori Victor Senna de Figueiredo da Academia Adrearmas de São Vicente, joga seu irmão e uke, Pedro Luiz Figueiredo que defende a Associação Rogério Sampaio de Santos no exame de faixas da FPJudô 2019

Toda essa aura de respeito, consideração e solidariedade que envolve o ambiente do dojô – base de toda a filosofia do judô – deverá ser projetada para os outros setores da sociedade para que mais pessoas possam beneficiar-se de seus ensinamentos.

O ideal do professor Jigoro Kano – bem-estar comum para todos – é também a palavra de ordem no mundo contemporâneo. Num momento em que todos os segmentos da vida humana estão passando por grandes transformações devido aos avanços tecnológicos, ações mais humanizadoras se fazem necessárias.  O distanciamento, patente nas relações interpessoais devido à independência provocada pelo acesso aos objetos da vida, é responsável pela deterioração da convivência familiar, social e planetária. O isolamento a que o homem se está submetendo, pensando que é autossuficiente em sua maneira de viver, o coloca em total desacordo com os princípios físicos, sociais e espirituais, que são a base da sua constituição como ser humano. A vida em sociedade não pode prescindir do contato presencial dos seres humanos em seus diferentes setores.

É exatamente aí que o judô, com suas propostas socioeducativas, pode dar sua contribuição, já que as relações existentes entre os judocas são de muita proximidade, de muito contato. Esse exemplo de relação fraternal – tão comum entre os judocas – deve estimular os (as) sempais, como verdadeiros representantes dos ideais propostos pela doutrina do judô, a atuarem como multiplicadores sociais, disseminando os cuidados para com o outro como a forma mais importante para estabelecer o bem na sociedade.

Afinal, o trabalho de cuidador é que melhor qualifica o (a) sempai. Estar envolvido em qualquer processo que, efetivamente, possa ajudar o próximo a superar os obstáculos e dificuldades categoriza o (a) genuíno (a) sempai.

Paulo Roberto Duarte, professor kodansha shichi-dan (7º dan) é psicossomaticista, teólogo 
 formado pela Universidade Metodista de São Paulo, professor e técnico
dos medalhistas olímpicos Rogério Sampaio e Leandro Guilheiro