A saga de Sugata Sanshiro, ou de Shiro Saigo

Do universo marcial que moldou o Japão feudal nasceu o judô, recriado por Jigoro Kano como caminho pedagógico, de valores e desenvolvimento humano © Imagem ilustrativa criada por IA / Global Sports

Entre a lenda de Shiro Saigo, eternizada no cinema por Kurosawa, e os princípios de Jigoro Kano, emerge a verdadeira essência do judô: mais do que combate, um caminho de formação e desenvolvimento humano.

Por Professor Sérgio Luiz Carlos dos Santos (PhD)
Curitiba, 4 de setembro de 2025

Um dos mais laureados diretores do cinema japonês, Akira Kurosawa dirigiu, em 1943, seu primeiro filme, denominado Sugata Sanshiro. Para os jovens judocas que não conhecem Kurosawa, ele é um dos maiores cineastas do Japão, diretor do épico Os Sete Samurais, que inspirou o famosíssimo filme de Hollywood Sete Homens e um Destino.

O personagem do filme, Sugata Sanshiro, foi inspirado no judoca Shiro Saigo (1866–1922), pioneiro entre os alunos de Jigoro Kano shihan e considerado uma das quatro colunas do Kodokan, os “Guardiões do Kodokan” (Kōdōkan Shitennō). Saigo sensei é considerado uma lenda do judô, foi um dos primeiros faixas-pretas de Kano shihan, e seu tokui-waza (técnica preferida) era o poderoso yama-arashi, que em tradução livre significa “Tempestade na Montanha”. Essa técnica fazia parte do Habukareta waza – ou técnicas preservadas – dentro do Go Kyo de 1925, no grupo de nage-waza (projeções) e, especificamente, em te-waza (técnicas de mão). Esse lendário judoca motivou o livro e o filme Sugata Sanshiro, cujo maior legado foi a divulgação do judô.

Quando treinei judô na Universidade de Tsukuba, tínhamos um colega de treino que era especialista em yama-arashi, e sua técnica era próxima da perfeição.

No Japão feudal, as competições eram demonstrações de eficácia e eficiência das artes marciais, servindo como critério para seu ensino em escolas e forças armadas.

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Na era Meiji, quando o Japão abriu seus portos ao comércio internacional, os samurais perderam seus postos, e os mestres de ju-jutsu, outrora respeitados, passaram a sobreviver de apresentações públicas. Houve uma tentativa de retomar a tradição, incluindo o ju-jutsu nas escolas, mas a prática não prosperou, pois, muitos estudantes retornavam para casa lesionados. Foi então que o ju-jutsu acabou substituído pelo ju-dôeducacional de Kano shihan.

Voltando ao filme sobre Sugata Sanshiro (Shiro Saigo), encontramos uma obra realizada no auge da Segunda Guerra Mundial pelo promissor e novo diretor Akira Kurosawa. Considerado um marco inaugural dos filmes de artes marciais, ele inaugurou um estilo cinematográfico que, ao mesmo tempo em que servia como propaganda belicista, evidenciava o enorme talento de Kurosawa, mais tarde reconhecido como um dos maiores diretores de cinema de todos os tempos.

“A essência do judô está em cultivar valores que atravessam gerações e em oferecer às crianças um caminho de aprendizado, disciplina e humanidade. É nesse terreno que o legado de Jigoro Kano continua vivo e insubstituível.”

A história se passa durante o período da Restauração Meiji, no Japão, e trata da luta entre o velho e o novo em termos de artes marciais. O filme foi inspirado no livro homônimo Sugata Sanshiro, do autor Tsuneo Tomita, filho do judoca Tsunemiro Tomita, considerado um dos mais importantes alunos de Kano shihan.

O judô foi criado a partir do ju-jutsu, arte marcial dos samurais e, como relatamos, hoje é esporte olímpico e amplamente praticado em escolas infantis. Nessas escolas, a preocupação deve ser a formação da personalidade e do caráter dos praticantes, como preconizou Jigoro Kano. É importante lembrar que a etimologia de “marcial” remete ao deus romano da guerra, Marte.

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Atualmente, as guerras são travadas com drones e computadores. O esporte espetáculo movimenta milhões de dólares e impõe aos atletas custos altíssimos em termos de vida útil, saúde e ausência de lesões. Isso nos remete ao pensamento inicial de Jigoro Kano, com seus três princípios:

  • SEIRYOKU ZENYO (PRINCÍPIO DA MÁXIMA EFICIÊNCIA): visa encontrar o caminho mais eficaz para realizar uma ação, utilizando o mínimo de energia possível para alcançar o máximo resultado.
  • JITA KYOEI (PRINCÍPIO DA PROSPERIDADE E BENEFÍCIOS MÚTUOS): refere-se à importância da solidariedade e da ajuda mútua para o bem-estar de todos, promovendo progresso pessoal e coletivo.
  • JU (SUAVIDADE): associado à ideia de “ceder para vencer”, ensina a não usar a força bruta, mas a canalizar a força do oponente em benefício próprio.

A alta competição é regida por interesses, e as regras são moldadas para atender a esses negócios. A essência do judô sobrevive em poucos dojôs, onde professores se dedicam às crianças, com a preocupação de estudarem profundamente os aspectos biológicos, sociológicos, psicológicos e pedagógicos. Sobretudo, devem buscar conquistar as novas gerações para a prática do judô — ou de qualquer outro esporte — como ferramenta de formação e desenvolvimento humano.

No fim, o judô não se resume a medalhas, regras ou espetáculos moldados por interesses. Sua essência está em cultivar valores que atravessam gerações e em oferecer às crianças um caminho de aprendizado, disciplina e humanidade. É nesse terreno que o legado de Jigoro Kano continua vivo e insubstituível.