A sujeira sob os tatamis olímpicos

Sílvio Acácio paralisou o judô brasileiro © Budopress

Sob o tai-sabaki silencioso de professores kodanshas e dirigentes estaduais, a gestão nacional esgota-se por falta de renovação e pelo apego daqueles que se apossaram do alto escalão da modalidade

POR PAULO PINTO
CURITIBA (PR) / 5 de março de 2021

Indubitavelmente, o judô brasileiro viveu seus anos de ouro entre 2008 e 2016, quando à frente da modalidade havia uma gestão fundamentada em princípios de modernização, transparência e ética. Vitórias e conquistas internacionais geravam os resultados esportivos e midiáticos que por quase uma década constituíram o maior case de sucesso do marketing esportivo do Brasil.

A Confederação Brasileira de Judô (CBJ) era a grande referência de gestão e o exemplo a ser seguido tanto no ambiente olímpico interno quanto no World Tour da Federação Internacional de Judô.

Dirigentes estaduais diante do ônibus da CBJ que não existe mais em 2017 © Budopress

Nos últimos quatro anos, porém, a entidade se apequenou e, em vez de despontar na mídia pelas medalhas conquistadas, passou a administrar equívocos e escândalos protagonizados por um dirigente que fora ungido apenas para manter o legado do seu antecessor.

Aos poucos os principais personagens da equipe que antes dava ippon na gestão foram excluídos e os patrocinadores foram retirando-se, enquanto a TV Globo, SporTV e o Esporte Espetacular rapidamente perceberam o insucesso técnico e administrativo da atual gestão. Resultado: fracasso midiático de uma modalidade que antes atingia audiência e números expressivos.

Da noite para o dia a fórmula de sucesso deixou de ser utilizada e os encontros de kodanshas e eventos maçantes para a arbitragem ganharam maior importância e projeção que a seleção brasileira sênior. Os resultados nos tatamis escassearam, o foco foi perdido e a soberba, que antes já era gigantesca, tomou conta de vez da gestão.

Os escândalos começaram a ganhar espaço, fornecedores tiveram de fechar as portas por falta de pagamento e a vultuosa operação aérea transferiu-se para Santa Catarina. Em 2018, finalmente, as mentes brilhantes que administram a CBJ determinaram que o Centro Pan-Americano de Judô (CPJ), o maior centro de treinamento do judô mundial, se tornara um elefante branco e, numa operação até hoje não devidamente esclarecida, foi devolvido ao governo da Bahia.

O maior centro de treinamento do judô mundial foi sucateado pela atual gestão © Arquivo

Nas últimas semanas soubemos que a Secretaria do Trabalho, Empresa, Renda e Esporte (SETRE) devolveu o CPJ à Confederação Brasileira de Judô e que se acumula uma multa milionária pelo descumprimento da contrapartida que a CBJ deixou de prestar, conforme contrato firmado pelo atual presidente da CBJ.

Enquanto isso, nossos professores kodanshas, que deveriam ser a reserva moral e ética da modalidade, ficam discutindo futilidades estéreis e passando pano nas loucuras protagonizadas por aqueles que, devido ao silêncio subserviente e covarde, certamente os premiarão com maior graduação.

Há um ano a Federação Internacional de Judô e federações estaduais, como a de São Paulo, vêm desenvolvendo esforços gigantescos no sentido de fomentar a modalidade em meio à pandemia, enquanto a CBJ, dona de um orçamento milionário, simplesmente suspendeu toda e qualquer atividade. Pior: não ofereceu nenhum suporte à base e muito menos às pobres federações estaduais, que se encontram em estado pré-falimentar devido ao imobilismo da CBJ, que durante a pandemia favoreceu apenas a seleção brasileira sênior. Para as federações restaram apenas as promessas de ajuda que jamais se concretizam.

Para este ano a CBJ aprovou, em assembleia, um orçamento de 25 milhões de reais, mas ainda não agendou nenhum evento para esta temporada. Em que serão gastos estes recursos, se todas as ações esportivas internacionais e muitas nacionais são subsidiadas pelo Comitê Olímpico do Brasil, que ainda despeja anualmente quase 8 milhões de reais nos cofres de uma entidade que está de costas para toda a cadeia produtiva e hoje está à deriva e sem a menor perspectiva de sobrevivência.

Tiago Camilo foi o único judoca que teve coragem de falar a verdade © Divulgação

Em seu isolacionismo, a casta real da CBJ está no Olimpo, acima dos problemas que enfrentam os milhões de praticantes, atletas, professores, técnicos e demais profissionais que edificam o judô real e dão suporte à base.

Os gestores das áreas técnica, administrativa e financeira estão preocupados apenas em preservar seus altíssimos salários, esquecendo-se de que – em se mantendo o quadro perverso dos últimos quatro anos – em breve nada mais restará de uma modalidade que foi a mais bem administrada do País.

Ninguém é capaz de lançar um olhar crítico realista ao desastre que se aproxima, mas a grande pergunta que paira é: quem vai pagar esta conta quando a casa cair e os desmandos financeiros forem expostos?

Gestores administrativos e financeiros, membros do conselho fiscal e, principalmente, os presidentes das federações estaduais que assinam os balanços anuais de uma modalidade gerida com recursos públicos, terão de prestar conta ao Tribunal de Contas da União e ao Ministério Público Federal.

Neste sábado (6) teremos a assembleia de prestação de contas e a eleição da CBJ que definirá o comando da CBJ para o próximo quadriênio. Com expressiva vantagem numérica e o importante apoio de setores do Comitê Olímpico do Brasil, muito provavelmente o atual presidente será reeleito – e por mais quatro anos nada vai mudar.

Com isso, Ney Wilson Pereira atingirá a marca expressiva de 25 anos à frente da seleção brasileira sênior, mantendo a mesma panelinha que provocou o êxodo de grandes judocas para o exterior, onde hoje brilham no circuito internacional representando outros países. As federações estaduais continuarão na miséria extrema e absoluta, enquanto mais uma geração de talentos será sacrificada em nome da manutenção das benesses de poucos e de gente que pouco se importa com a história e a tradição que demoramos meio século para construir.

A contrapartida do CPJ não foi cumprida e a confederação brasileira terá que responder pelos desmandos, além de ter que encarar a multa milionária © Arquivo

Em 2019, o medalhista olímpico Tiago Camilo disse à Folha de São Paulo que o judô brasileiro está ultrapassado e foi muito criticado pelos passadores de pano de plantão. Dois anos depois, a verdade e o resultado do desastre estão aí. O medalhista olímpico de Bastos, apenas fez a leitura correta da realidade. Com raríssimas exceções, hoje, a seleção brasileira exibe um judô limitado que beira o medíocre.

Em poucos anos o judô brasileiro se descaracterizou, afastando-se de suas origens, e nem mesmo os valentes e talentosos judocas que no passado garantiram as medalhas que nos transformaram numa potência da modalidade parecem mais existir. Temos uma geração que não sabe as dificuldades que seus antecessores enfrentaram para disputar um simples campeonato brasileiro.

A eleição da CBJ é feita de forma aberta e neste sábado saberemos quais membros do colégio eleitoral possuem verdadeiramente espírito de judoca e quem está a serviço daqueles que defendem seus próprios interesses há mais de 20 anos, instalados no comando e administrando em causa própria.

Parafraseando Martin Luther King, prêmio Nobel da Paz de 1964, o que me preocupa não é o grito dos maus. É o silêncio dos bons.