A virtualização digital do dojô e seus perigos

Campeonato mundial de karatê 2018

Desdenhar a informação digital significaria ignorar os benefícios do tráfego de informações livre, possível apenas com a rede, mas adotar acriticamente essa nova modalidade de abordagem esconde perigos que merecem muita atenção

Karatê-dô
21 de novembro de 2020
Por FERNANDO MALHEIROS FILHO I Fotos WKF
Curitiba – PR

Não surpreenderei os leitores ao anunciar que a comunicação em rede impactou todas as atividades humanas, incluindo a prática das artes marciais. O primeiro elemento constatável é representado pela imediata democratização das informações. Conhecimentos que, antes, demandavam, àquele que os desejava adquirir, vencer enormes distâncias, talvez varar o planeta em busca de suas fontes, hoje moram à distância de um movimento do dedo indicador.

A rede, especialmente a disponibilidade de material em vídeo, encurtou dramaticamente essas distâncias, permitindo a qualquer praticante, de seu computador doméstico, dispor daquilo que, antes, exigiria muito tempo, determinação e dinheiro para alcançar.

A seleção francesa feminina de kumitê após a conquista do bicampeonato mundial de forma consecutiva

É claro que não basta o acesso. Para muitos – a maioria – a informação não está inteiramente acessível, na superfície do disponível. Para aqueles ávidos em obtê-la, dotados de pertinácia suficiente, capacidade de leitura e interpretação, os elementos estão todos lá, espalhados no imenso firmamento da rede. Basta buscá-los, mas, na montagem do completo quebra-cabeça, exige-se o esforço da interpretação e compreensão, a formar a imagem ou aspecto, do fato ou conhecimento que se pretende alcançar.

Essa democratização relativizou e apequenou o poder dos intermediários. Estes, os professores, somente manterão sua posição se, além da simples intermediação, oferecerem a quem os procura o saber que se forma da experiência, da reflexão, cuja transmissão somente é possível pela convivência e a prática constante.

Nestes tempos de pandemia, afastadas as discussões sobre a periculosidade do vírus ou o acerto das medidas governamentais de confinamento, abriu-se nova realidade à prática: os encontros virtuais.

Desdenhá-los de forma absoluta significaria ignorar os benefícios do tráfego de informações livre, possível apenas com a rede, mas adotar acriticamente essa nova modalidade de abordagem esconde perigos que merecem atenção.

O conhecimento não se produz exclusivamente pela formação de imagens que podem ser captadas pelos instrumentos eletrônicos, e não se transmite somente pela linguagem idiomática.

O ser humano, pelas forças evolutivas que, mesmo fisicamente fraco, o fizeram vencer no feroz entrechoque de todos os elementos da natureza, é dotado se sensibilidades que vão muito além do que os olhos veem e os ouvidos ouvem. Mesmo a visão e a audição limitam-se na esfera tecnológica. Somos capazes de perceber nuanças tridimensionais, enquanto a máquina apenas oferece o precário plano bidimensional; somos capazes de identificar as várias fontes sonoras do entorno, enquanto na máquina há uma única fonte, da qual derivam os sons, então quase indistinguíveis ao ouvido humano.

Afora isso, os rumores e humores, os cheiros e as vivências são infinitamente mais ricas e multifacetadas na proximidade física, ao contrário do mundo virtual.

Principalmente, no contato virtual, somente é possível transmitir o conhecimento enquadrado por sua limitada linguagem, ao invés dos inúmeros e, talvez infinitos, sedimentos da convivência e do contato físico.

Professores de todo o mundo, e os de artes marciais, devem considerar que, na capilaridade da cultura, o aluno hoje pode ter acesso às informações das quais os primeiros eram, e até há pouco tempo, os únicos intermediários. Ao professor, e em tudo, não cabe mais o dever de informar ou simplesmente transferir o conhecimento enquadrado e etiquetado. Se o fizer, e a isso se limitar, não poderá concorrer com o oceânico material disponível nas redes. Terá de contentar-se, e aceitar, que o aluno possa saber, antes dele, aquilo que um dia ele pretendia ensinar.

Conhecimento não se produz exclusivamente pela formação de imagens que podem ser captadas pelos instrumentos eletrônicos, e não se transmite somente pela linguagem idiomática.”

Esse não é mais o papel do professor nestes tempos de acelerada virtualização, embora tenha sido tentado em sê-lo apenas isso, pela facilidade de revender o conhecimento previamente envazado, cuja origem jamais realmente especulou.

Ao professor cabe, nestes tempos de entropia social e vulneração dos valores, representar o elemento catalisador da convivência e bússola moral, capaz de atrair os alunos ensinando-os a viver.

Essa transmissão somente é possível na sala de aula e, na hipótese das artes marcais com ainda mais ênfase, no ambiente físico do dojô. É ali que se dá a efetiva convivência, local em que o professor poderá exercer suas verdadeiras aptidões, desenvolvidas na excelência de sua prática, nos anos antecedentes, único valor que efetivamente tem, com exclusividade, a transmitir.

Não compreenda o leitor que estaria o professor exonerado de deter o conhecimento formal que lhe cabe transmitir. Apenas advirto que se procurar exclusivamente fazê-lo, será consumido pela concorrência desequilibrada da máquina e da rede. Mantenha seu dojô aberto, acolha os alunos e aponte-lhes o caminho, ou não sobreviverá.