20 de novembro de 2024
Acolhimento é a palavra-chave no trabalho com pequenos judocas deficientes visuais
Ex-atleta e Profissional de Educação Física, a professora Ana Gomes dedica sua vida aos tatamis, num projeto do Comitê Paralímpico Brasileiro. Mas faz muito mais do que isso.
Por Paulo Pinto / Global Sports
8 de outubro de 2024 / Curitiba, PR
Num torneio para crianças e adolescentes da FPJudô, uma pequena judoca – Rafaela, de 12 anos – chamou nossa atenção: apesar de deficiente visual, ela lutava com judocas sem deficiência, com segurança e determinação. Procuramos saber um pouco mais sobre ela, como encontrara o caminho dos tatamis, e chegamos à sensei Ana Cláudia Gomes, bacharel e licenciada em Educação Física (CREF 094.982-G/SP). Mas não foi sua qualificação profissional – pós-graduada em psicopedagogia, judô aspectos metodológicos da teoria e da prática, treinamento desportivo e psicomotricidade – que nos impressionou, e sim a natureza humana, acolhedora e sensível do seu trabalho.
Rafaela é apenas uma entre dezenas de jovens judocas com deficiência visual atendidas pela Escola Paralímpica de Esportes do Comitê Paralímpico Brasileiro (CPB), cujo objetivo não é somente buscar talentos esportivos, nem apenas melhorar o desenvolvimento motor deles. Mais do que isso: o grande objetivo é, por meio do judô, proporcionar-lhes autonomia, autoestima, confiança, senso de pertencimento, socialização – enfim, acolhimento a essas crianças deficientes visuais.
Conheça, nesta entrevista, a inspiradora trajetória da professora Ana Gomes, uma dedicada profissional que transforma vidas por meio do judô. Seu trabalho nos programas do CPB com crianças deficientes visuais tem se destacado pelo acolhimento, pela inclusão, pelo desenvolvimento físico e emocional dos alunos, e pelo impacto positivo que gera na comunidade
Quando percebeu que sua vida estaria definitivamente atrelada ao ensino do judô?
Em meados de 2009, ainda aluna no curso de Educação Física e em meu primeiro emprego como de soldado temporário da Policia Militar do Estado de São Paulo, tive a oportunidade de coordenar um projeto social ao lado do soldado PM Alexandre Marques e com apoio do comandante capitão PM Vagner Joaquim. Foram meus primeiros passos no ensino do judô, mas seis meses depois, após conhecer a disciplina de esporte adaptado no curso de Educação Física, me interessei em buscar informações sobre o judô paralímpico. Isso acabou transformando-se em mais um projeto de judô, uma parceria entre a PMESP e a Associação dos Deficientes Visuais de Salto (Adevisa).
Como você chegou ao Comitê Paralímpico Brasileiro e ao trabalho com crianças e adolescentes com deficiência visual?
Atuei como técnica da equipe de judô da Secretaria dos Esportes e Lazer da Estância Turística de Salto de 2012 a 2021. Mas em meio à pandemia minha vida mudou – me casei e mudei para a capital, onde passei a integrar a equipe de atletas do São Paulo Futebol Clube. Foi o coordenador técnico do judô tricolor, Josué Bragança, que me incentivou a me candidatar a uma vaga de professor de judô no CPB. Para minha felicidade, passei no processo seletivo e comecei um novo capítulo, com a iniciação ao judô para crianças e adolescentes com deficiência visual.
“Várias pesquisas têm apontado o quanto o judô contribui para o desenvolvimento motor, cognitivo e social, proporcionando autonomia e outros benefícios.”
Você também ensina crianças e jovens com outras deficiências e não deficientes?
Atualmente tenho ensinado somente crianças e jovens com deficiência, dentro dos programas, Escola Paralímpica de Esportes e reabilitar para o Esporte Paralímpico do CPB.
Qual é a sensação de trabalhar com crianças e jovens com deficiência?
Tenho muito orgulho em pertencer ao movimento paralímpico, de poder ensinar os primeiros passos, observar o desenvolvimento e a evolução dos alunos graças à prática do judô. Várias pesquisas têm apontado o quanto o judô contribui para o desenvolvimento motor, cognitivo e social, proporcionando autonomia e outros benefícios. Atuar na área do paradesporto é algo apaixonante, pois podemos contribuir para o processo de formação de crianças e jovens, desenvolver a autoestima deles, bem como a autonomia e o senso de pertencimento.
No que crianças deficientes são menos e no que eles transbordam?
Podemos dizer que a ideia de que crianças com deficiência são “menos” em alguma coisa é um grande equívoco.
Crianças com deficiência não são “menos” em nada. Elas são crianças com as mesmas necessidades, desejos e direitos que todas as outras crianças. Ao reconhecer e valorizar suas capacidades e potencialidades, podemos construir um mundo mais justo e inclusivo para todos.
Por que você leva judocas, como a Rafaela, a certames oficiais da FPJudô, para competir com crianças não deficientes?
O contato com atletas do convencional permite que os judocas paralímpicos aprimorem suas técnicas e táticas, além de se adaptarem a diferentes estilos de luta.
A FPJudô possui histórico de permitir que atletas deficientes visuais participem de suas competições convencionais. Por quê?
O judô paralímpico é a modalidade que menos sofre adaptação quando falamos do contexto do paradesporto, ou seja, o judô ensinado para pessoas sem deficiência é o mesmo ensinado para pessoas com deficiência visual. Com pequenas adaptações sendo a principal adaptação a de que para o combate se iniciar com os atletas devem realizar o kumi-kata antes do hajime. Esta similaridade, permite que os atletas com deficiência visual possam competir nos certames da FPJudô. Contudo, quando eles estão neste cenário, temos consciência de que as regras válidas serão as que regem o judô convencional.
“Os impactos positivos da prática do judô para deficientes visuais são inúmeros, entre eles estão desenvolvimento motor, autoestima, autonomia, confiança, senso de pertencimento, socialização e muitos outros ganhos.”
Qual é a maior dificuldade ou barreira que uma criança cega enfrenta no shiai-jô?
Nas competições de judô paralímpico, as regras são adaptadas para garantir igualdade de oportunidades a todos os atletas. O início da luta com o kumi-kata já estabelecido é uma dessas adaptações cruciais, proporcionando aos atletas cegos um ponto de referência tátil essencial para a orientação no tatame. Em uma competição convencional, porém, isso se torna mais desafiador, especialmente para os atletas J1 (cegos totais), pois a luta começa sem o kumi-kata.
De que forma seu trabalho impacta uma criança como a Rafaela?
O judô oferece uma ampla gama de benefícios para crianças com deficiência visual, como a Rafaela. Ao nos aprofundarmos nos impactos dessa prática, podemos entender melhor como o esporte contribui para o desenvolvimento integral desses jovens, favorecendo seu crescimento físico, emocional e social. Por meio da prática da modalidade, crianças como ela podem alcançar um alto nível de autonomia, autoestima e qualidade de vida.
A limitação visual é um fator complicador ou facilitador no aprendizado do judô?
A ausência da visão pode ser um desafio no início da prática, mas, no judô, ela se transforma em uma oportunidade para o desenvolvimento de outras habilidades. A prática desse esporte exige adaptações e estratégias de ensino específicas, mas os benefícios são inúmeros. A principal diferença no aprendizado do judô por pessoas com deficiência visual está na forma como a informação é transmitida e processada. Enquanto a maioria dos judocas utiliza a visão para observar os movimentos e corrigir erros, os atletas cegos ou com baixa visão dependem intensamente do tato, da audição e da propriocepção. A ausência da visão pode fazer com que o processo seja um pouco diferente, especialmente em relação às estratégias de ensino-aprendizagem.
Há quanto tempo a Rafaela está com você e como tem sido o desenvolvimento técnico e psicológico dela?
A Rafaela está comigo há quase três anos, e nesse período, se desenvolveu muito em diversos aspectos, com um ganho motor e psicológico enorme. Ela sofre de glaucoma e fotofobia; um dos olhos é totalmente comprometido, e o outro possui pouco resíduo visual. Nesta faixa etária e na iniciação esportiva, nosso foco principal é desenvolver os fundamentos básicos do judô da melhor forma possível e promover o aprendizado motor, pois sabemos que a ausência da visão prejudica a motricidade da criança. Quando ela recebe o estímulo adequado, respeitando essas etapas, os ganhos são enormes e fazem muita diferença para a aquisição de habilidades mais complexas. A Rafaela é muito ativa e possui uma família que não mede esforços para sua evolução; ela gosta de explorar e entender cada detalhe da modalidade, o que favorece muito seu desenvolvimento técnico nesta fase inicial dentro do judô.
E para você, que é mãe, como é ser sensei de uma menina que busca luz nos tatamis?
Eu sempre digo que sou grata por ter a Rafaela e todos os demais alunos em minha vida, poder contribuir para o processo de formação, aprendizado e desenvolvimento técnico de cada um deles. É verdadeiramente algo imensurável. Ainda é cedo para dizer se serão atletas de alto rendimento, porém busco construir uma base sólida e consistente, para que eles estejam preparados para enfrentar novos desafios, dentro e fora dos tatamis.
E como pessoa qual é a maior recompensa no trabalho que você realiza?
Minha maior recompensa é ver a evolução de cada um, dentro e fora do dojô, pois os aprendizados do judô podem ser levados para diversos âmbitos da vida e assim contribuir para o desenvolvimento mútuo dessas crianças e jovens.
Você entende que o esporte é verdadeiramente uma importante ferramenta de inclusão de pessoas com deficiência?
Acredito muito no poder transformador do esporte. Ao promover o acesso ao esporte e à prática esportiva para todos, independentemente da origem social, gênero ou deficiência, é possível criar um ambiente de cooperação e igualdade, melhorar a autoestima e a qualidade de vida das pessoas, além de desenvolver habilidades importantes, como a disciplina, o respeito e o trabalho em equipe.
É notório o trabalho desenvolvido pelo CPB para identificar crianças e jovens com deficiência e lhes oferecer formação desportiva. Você entende que este é o real papel do comitê, ou uma entidade de menor relevância deveria assumir esse papel?
A proposta do Comitê Paralímpico Brasileiro é justamente ser referência mundial na gestão e desenvolvimento do esporte paralímpico, promovendo a inclusão de pessoas com deficiência em todas as suas dimensões. Sua missão inclui promover tanto o esporte paralímpico, da iniciação ao alto rendimento, quanto a inclusão da pessoa com deficiência na sociedade. Não vejo a necessidade de outra entidade, pois hoje, além deste trabalho de formação esportiva realizado na sede do comitê, temos, em quase todas as unidades federativas do país, os Centros de Referência, que são uma extensão do comitê e dos trabalhos por ele desenvolvidos. Atualmente, existem diversas parcerias com instituições, justamente com o foco de massificar cada vez mais o paradesporto e promover a inclusão. Vale ressaltar que esse trabalho deve ser realizado por profissionais devidamente capacitados em todas as áreas que fundamentam a inclusão.