18 de novembro de 2024
Aikidô, um caminho para chegar à plena conexão do corpo com o espírito
Recém-chegado do Japão, shihan Wagner Bull revela por que aos 73 anos ainda busca aprofundar-se na prática e no ensino do aikidô
Por Paulo Pinto / Global Sports
18 de dezembro de 2022 / Curitiba (PR)
Há pouco mais de meio século nos tatamis, shihan Wagner Bull edificou uma trajetória muito acima da média e daquilo que estamos acostumados a ver quando examinamos histórias forjadas pelos líderes e pioneiros das artes marciais. Mas essa estrada parece estar longe do fim, pois sua bagagem continua a ser aumentada, como ocorreu em sua recente viagem ao Japão.
“Quando chegamos a uma certa idade, não nos permitimos mais perder tempo. E, mais do que ninguém, quero chegar ao ponto de fazer um aikidô eficiente como defesa pessoal e que, ao mesmo tempo, me proporcione elevação espiritual e me leve à harmonia entre corpo e mente. Ou seja, o que busco de mais valoroso no aikidô é a reverberação com as forças da natureza, o Dao, como propõe a essência de qualquer religião. A diferença é que este Dô busca o poder espiritual tornando suas técnicas de defesa pessoal eficientes e harmônicas, como é a natureza em tudo que realiza. Antes de me aposentar, tenho como missão de vida deixar o caminho pavimentado não só para os meus alunos, mas para todos que buscam elevar-se espiritualmente e que se identificaram com esta proposta, de aikidô eficiente como defesa pessoal, mas um caminho de iluminação espiritual.”
Shihan Bull sabe exatamente onde quer chegar, mas sentia necessidade de aprofundar-se ainda mais. Por intermédio de Angelo Armano, um mestre da Itália, conseguiu fazer contato com dois ícones japoneses: Hideo Hirosawa e Yoshinobu Takeda. Hirosawa, que foi professor no dojô de Iwama, era cunhado do grande mestre Morihiro Saito e é o único aluno ainda vivo do O-sensei Morihei Ueshiba, o fundador do aikidô, de quem cuidou até o último dia da sua vida. Takeda, hachi-dan (8º dan) e comandante de uma grande organização internacional, é o aluno mais antigo de Seigo Yamaguchi, considerado o maior expoente da modalidade.
“Treinei sete dias diretamente com o professor Hirosawa e dois dias com o professor Takeda. Fiz todas as experiências, testei, verifiquei o que funcionava ou não, enfim, esclareci todas as dúvidas que me restavam. Finalmente entendi como o aikidô funciona mais profundamente e por que funciona, e assim posso transmitir melhor os segredos desta arte. Ficou bem claro por que o aikidô moderno é assim, por que o aikidô do O-sensei é assado. Tive confirmação de fonte fidedigna do que sempre afirmei: o aikidô de O-sensei é um, o aikidô moderno é outro. Neste sentido posso responder a qualquer pergunta – dos meus alunos principalmente, que são aqueles a quem eu devo respostas e dos quais tenho a responsabilidade de tomar conta, para que não percam tempo com coreografias sem a profundidade necessária.”
Shihan Bull acha que perdeu muito tempo, assim como muitos de seus companheiros do passado, treinando por muitos anos as bases do aikidô de O-sensei de forma equivocada. Os movimentos são idênticos, mas a energia que tem de correr por dentro do corpo é completamente diferente. “O aikidô brasileiro atrasou no mínimo uns 20 anos porque começou com maus professores”, explica. “Felizmente hoje a situação é diferente, há muitos bons professores ensinando aikidô de várias linhas. Não importa a graduação deles, pois ela nem sempre reflete a qualidade e a profundidade do conhecimento que possuem.”
Um longo caminho cheio de descobertas
Nascido em 5 de março de 1949 em Londrina (PR), Wagner Bull é engenheiro civil, pós-graduado em administração de empresas pela FGV, autor de oito livros sobre aikidô e tradutor das principais obras publicadas em português sobre aikidô, judô e karatê.
Iniciou-se na prática do aikidô em 1969 e em 1986 tornou-se professor, tendo formado ao longo dos anos centenas de faixas-pretas com nível internacional. Por 14 anos foi discípulo do shihan Yoshimitsu Yamada, aluno do fundador do aikidô, ajudando-o a difundir sua organização na América Latina, e já participou de seminários com os principais nomes da modalidade do mundo. Ministrou seminários na Argentina, Peru, Venezuela, México, Portugal e Estados Unidos, e introduziu a escola de Yamada sensei em Cuba. Em 11 de janeiro de 2009 recebeu o título de shihan, consignado pelo Aikikai Hombu Dojo de Tóquio, escola cujo dojô original foi fundado por Morihei Ueshiba em 1931, sob o nome de Kobukan. Conhecido pela designação de O-sensei, o criador do aikidô nasceu em 14 de dezembro de 1883 na cidade de Tanabe, na província de Wakayama, e faleceu em 26 de abril de 1969.
Hoje shihan Bull é shichi-dan (7º dan) e shihan (PhD de aikidô), sendo o primeiro praticante sem ascendência japonesa no Brasil a receber tal graduação. Desde a infância, porém, manteve estreito contato com a colônia japonesa no Paraná, absorvendo conhecimento de sua rica cultura e principalmente das artes marciais. Praticou judô, karatê, boxe e, por fim, encontrou o aikidô, arte que o acompanharia por toda a vida.
Isso aconteceu em 1969, estudante universitário em Curitiba, com o professor Jorge Van Zuit, quando conheceu o mestre Horie, go-dan (5º dan), um grande budoka que o impressionou muito e cujas informações sobre o aikidô o fizeram apaixonar-se pela arte.
Em 1971 mudou-se para São Paulo para se pós-graduar em cálculo estrutural de edifícios, vindo a treinar durante cinco anos com sensei Keisen Ono e o introdutor do aikidô em São Paulo, Reichin Kawai. Em 1985 conheceu o bispo xintoísta Massanao Ueno, alto grau no Takemussu Aikidô, que mesclava a prática do aikidô ao esoterismo Shinto. Naquela ocasião foi iniciado no Takemussu Aikidô e nos aspectos esotéricos e espirituais do caminho, como o Kotodama. Foi então que teve contato com a espiritualidade xintoísta, que ensina as práticas físicas e meditativas para desenvolver a sensibilidade e reverberar com o mundo divino. Esta experiência modificou sua forma de ver a vida. Houve um incidente e o monge Ueno voltou ao Japão e seu mestre se desligou do Aikikai, fundando a Takemusu Kai, que não poderia funcionar legalmente no País devido à legislação centralizadora das artes marciais da época. Wagner Bull, restringido então pelas regras absurdas existentes na época da ditatura, decidiu enfrentar tudo pelo amor que tinha pelo aikidô, iniciando um movimento político e contratando advogados.
Em 1988, fundou o Instituto Takemussu e teve sucesso em sua ação, conseguindo o reconhecimento da entidade como representante do aikidô tradicional no País pelo Conselho Nacional de Desportos (CND), equivalente à atual Secretaria Especial do Esporte, o que possibilitou a criação da Confederação Brasileira de Aikidô Brazil Aikikai, única entidade no Brasil reconhecida pelo governo como efetivamente praticando a arte nos moldes estabelecidos pela Federação Internacional de Aikidô (IAF na sigla em inglês). Este feito acabou com o monopólio que impedia que mais de uma organização fosse oficialmente reconhecida, possibilitando que a arte começasse a crescer e prosperar com mais liberdade e maior velocidade.
Em 1988, estabeleceu contato com o Hombu Dojô do Japão, por meio do sensei Yoshimitsu Yamada, de Nova York, aluno de Morihei Ueshiba, que se tornou responsável pelas promoções de faixas-pretas no Brasil, com apoio do filho do fundador Kishomaru, que tinha conhecimento das restrições à liberdade do aikidô no País. Isto provocou um boom no aikidô brasileiro, e os alunos mais graduados antigos saíram da organização que centralizava tudo. O crescimento foi vertiginoso dali para frente.
Em 1999 foi graduado roku-dan (6° dan) por Yoshimitsu Yamada, promoção reconhecida pelo doshu do aikidô de Tóquio em 2002. Nesse mesmo ano assumiu o Doshu Moriteru, neto do fundador, com o falecimento de seu pai, o qual reconheceu o imenso trabalho de Bull shihan no Instituto Takemussu – Brazil Aikikai como uma organização nacional oficializada pelo Aikikai Hombu Dojo do Japão. Desde então as promoções de faixas-pretas passaram a ser conduzidas diretamente por shihan Bull, autorizado a examinar e habilitar promoções para todos os graus.
Wagner Bull organizou dezenas de seminários com grandes mestres internacionais de altíssimo nível, elevando a qualidade técnica da arte no País e criando oportunidade para que os praticantes conhecessem a maioria dos mestres mundiais, a princípio com ajuda de seus companheiros que fundaram suas próprias organizações. O mais notável é que, posteriormente, com o apoio da Federação Paulista de Aikidô e junto com o professor Makoto Nishida e apoio do professor Shikanai, organizou o grande seminário com o doshu Moriteru Ueshiba, ao qual compareceram mais de 2.100 pessoas, sendo o segundo maior seminário de aikidô até hoje realizado no mundo em número de participantes e o maior em área de tatames. Foi algo gigantesco. Bull também é considerado o maior divulgador da modalidade no País. Desde 1996, escreveu centenas de artigos em revistas especializadas no Brasil e no exterior, bem como no jornal São Paulo Shimbum e na extinta revista Kiai, renomada publicação especializada da época.
Em busca da iluminação espiritual
Tecnicamente falando, Bull é um tradicionalista que procura ensinar o aikidô o mais próximo possível da forma ensinada por Ueshiba, sempre destacando que, embora seja uma arte marcial eficiente, tem como propósito a iluminação espiritual. Além de formar até agora 445 faixas-pretas, estimulou a criação de vários dojôs de aikidô nas principais cidades brasileiras.
Bull recorda que se apaixonou pelo aikidô em função da convivência com o monge Massanao Ueno, com o qual treinou de 1984 a 1989, e que lhe mostrou que o aikidô do O-sensei não era uma religião, mas uma espécie de essência de todas as religiões e que nada mais é que a união do corpo com o espírito. Não por meio de uma linguagem intelectual, mas por meio de uma linguagem do coração (Kokoro) e fundamentada na intuição e percepção do praticante.
“Eu senti o que o monge Ueno queria me ensinar. Os japoneses têm um provérbio que diz ishi den shi, ou seja, transmissão direta. Eu tive isso, essa felicidade, principalmente ao conhecer o monge Ueno, que veio ao Brasil para instituir o xintoísmo na América Latina. Ele havia treinado com Toshinobu Susuki aluno particular de O-sensei, um homem rico. Naquele tempo O-sensei dava aulas para pessoas de alto nível, políticos e empresários do Japão. E foi esse monge que me ensinou verdadeiramente o aikidô, junto com o xintoísmo. A partir dali passei a ver o aikidô não mais como uma prática de defesa pessoal, mas como um shi budô, (budô espiritual), um treinamento para evoluirmos como ser humano, transcender a materialidade e buscar a espiritualidade, ou seja, o que toda religião prega, o que todo mundo busca de forma consciente ou inconsciente.”
“Se o homem se separou do espírito”, reflete Bull, “o homem tende a voltar para o espírito, e o aikidô é isso: um treinamento para o homem unir seu corpo ao espírito e com a grande natureza, (daishizen), seja o nome que se queira dar a ela, com Alá, com Deus, com o Cosmos – isso vai depender da cultura e da visão da vida de cada um.”
“O aikidô do O-sensei não era uma religião, era uma espécie de essência de todas as religiões, que nada mais é que a união do corpo com o espírito.”
Esse foi o aikidô que Bull aprendeu no final da década de 1980. Mais tarde, teria um contato bastante intenso com o professor Yoshimitsu Yamada, um expert no aikidô moderno, como foi dito que aprendeu e sua forma que Bull denomina o aikidô moderno, no qual formou vários alunos.
“Apresentei sensei Yamada para a maioria das pessoas que hoje o seguem aqui no Brasil. Fui também a primeira pessoa que trouxe para cá o norte-americano Donovan Waite, que nos ensinou a cair como faziam os japoneses, parecendo gatos. Treinei com vários outros mestres. O mais notável foi Hiroshi Kato, e cada um deles me ensinou um pouco, mas sempre mantive o foco no aikidô do O-sensei. O Instituto Takemussu possui em seus quadros excelentes aikidoístas que praticam aikidô moderno e sempre somos elogiados pelos mestres modernos que nos visitam, mas além de meus alunos também há inúmeros bons praticantes e mestres no Brasil que aprenderam o aikidô moderno graças à contribuição especial de Yamada sensei, Ichitami Shikanai e Seki shihan.
Ampliando o conhecimento
Sempre em busca de mais conhecimento, sensei Bull procurou estudar o aiki-jujutsu e, ao treinar com o professor Tatsuo Kimura, do Japão, percebeu que o segredo técnico do aikidô antigo estava ali e passou a estudar este estilo. Na época, Kimura era o instrutor-chefe do clube Daito-ryu Aiki-jujutsu na Universidade de Tsukuba.
“Kimura aprendera com o grande Yukiyoshi Sagawa, o aluno mais forte do shihan Sokaku Takeda. Para Kimura seu aiki era mais forte que o do O-sensei e o de Kodo Horigawa, o segundo aluno de Sokaku Takeda. Aí me interessei pelo aiki-jujutsu e acabei chegando no professor Maikawa, que ficou meu amigo. Posteriormente eu e meus filhos fomos treinar com ele em Kyoto. Com isso acabei desenvolvendo essa necessidade de buscar o aiki no aiki-jujutsu, que é diferente do aikidô moderno, e o que o fundador efetivamente fazia. Só que, diferentemente do aiki-jujutsu, Ueshiba combinou a arte marcial com práticas espirituais xintoístas. ”
Sensei Wagner entende que o aikidô moderno é muito plástico, muito bonito, faz muito bem para a saúde, mas não prima pelo budô e a defesa pessoal e, principalmente, deixou a religiosidade em terceiro plano. Busca mais a união, a cooperação e o equilíbrio. Já o aiki-jujutsu cultiva muito o aiki, aquele aikidô de desenvolver a sensibilidade, o terceiro olho – e por isto Ueshiba percebeu que poderia também funcionar com uma forma de contatar Deus. Ueshiba chamou seu Aiki, então, de Takemussu Aiki.
“Encontrei a parte técnica do aikidô do qual eu gosto naqueles professores de aiki-jujutsu. É muito difícil encontrar as mesmas características no aikidô moderno, que depende muito do uke para que o praticante execute a técnica. No aiki-jujutsu, ao contrário, o uke (aquele que é arremessado) luta e resiste. Ou seja, é um aiki-jujutsu feito para se usar em uma luta, é mais prático. Então, foi o que pude constatar estudando centenas de livros e contatando pessoalmente dezenas de ex-alunos efetivos do fundador. Há muitos que fizeram aulas com Ueshiba e se rotulam “alunos de O-sensei”. O estilo do O-sensei era esse, que estava bem dentro daquilo que enquadrei.”
Após essa experiência e sucesso, Wagner Bull viveu momentos muito difíceis ao enfrentar um problema médico raro chamado Iquitios Atrial, que o obrigou a fazer uma cirurgia no coração para evitar que seu sangue pudesse provoca-lhe um derrame cerebral. Teve de ser operado por uma junta médica e foi obrigado a interromper sua carreira, ficando vários anos inativo, buscando recuperação física e psicológica. O dojô ficou nas mãos dos seus dois filhos e alunos. “O Alexandre é médico cirurgião, tem 40 anos e é um aikidoísta conhecido principalmente na America Latina; tem nível de 6º dan (roku-dan), treina desde os 4 anos ininterruptamente. Edgar é empresário, engenheiro e advogado; possui o 5º dan (go-dan), fazendo parte da escola do professor Maikawa, da Aiki-jujutsu Aikidô de Kyoto.
O lado positivo dessa parada forçada é que sensei Bull pôde estudar muitos livros sobre Budô e artes correlatas e sua biblioteca possui mais de 800 volumes, com quase todas as obras principais sobre as artes marciais publicados no Ocidente. Poliglota, traduziu para o português muitas obras, tanto de Jigoro Kano quanto de Funakoshi e outros mestres, visando sempre a ampliar seus estudos sobre marcialidade, budô, aikidô e espiritualidade e religião. “Minha biblioteca é gigantesca, mas é claro que não estudei tudo. Entretanto, todas as obras me serviram e ainda servem de consulta. Priorizei os guias e matérias que mais me interessavam. O professor Tamura nos visitou quando eu ainda não possuía nem 40% do que tenho hoje e disse: a única pessoa do mundo que tem tanto material assim é o professor Arikawa, do Japão, que colecionava muita coisa do O-sensei.”
Busca incessante do Dô
A partir daquele período shihan Wagner Bull fez muitas experiências, estudou muito, desenvolveu muita prática e chegou a determinadas conclusões a respeito de tudo isso. Voltando à prática do aikidô nos dias atuais, ele observa que é preciso avaliar todo o ambiente com cuidado.
“Existem muitos bons professores, mas também existem os maus. Muita gente dá aula, mas deveria é estar estudando, subordinada a um professor. Muita gente começa cedo a praticar o aikidô, aprende a fazer movimentos, a aplicar chaves e acha que isso é tudo. Na verdade, é o curso primário. Qualquer bailarino aprende esses movimentos e essas formas. O aikidô não é assim. É algo muito mais profundo e isso passa por um tratamento do espírito, do desenvolvimento da espiritualidade. Aikido é um caminho espiritual; os praticantes têm de tomar consciência desse fato, ou vão perder tempo. Quem quer aprender somente defesa pessoal deve buscar algo específico. Eu sugiro associar psiquiatria, filosofia e tiro ao alvo. Não existe melhor forma de se defender atualmente do que com armas de fogo. O próprio fundador, quando serviu seu mestre na Mongólia, como guarda-costas, usava uma pistola Mauser, e o fez com sucesso contra bandidos. Budô é algo em que a pessoa mais fraca tem de ser realmente capaz de enfrentar o mais forte e, no mínimo, não ser dominado, mas isto não se tange à luta corpo a corpo. Aikidô do fundador, não o moderno, foi criado para a pessoa se defender na vida, em uma luta real, e para isto, antes de enfrentar alguém, o indivíduo deve perceber o poder do inimigo e estudar uma estratégia vencedora. Se eu tiver de enfrentar o Mike Tyson num ringue para defender minha vida, é claro que irei armado e levarei uns guarda-costas igualmente. Enfrentar alguém tão forte como Tyson, confinado num elevador, é ser derrotado na certa. Por isso o verdadeiro aikidoísta não perde nunca. O Budô verdadeiro usa a marcialidade para parar a agressão, mas não se limita a socos e chutes. Se alguém tem medo de apanhar dos outros ou de perder uma luta, é porque não sabe o verdadeiro aikidô do fundador.”
Bull avalia que, quando o Japão atacou Pearl Harbor, os militares não sabiam budô corretamente, pois não perceberam o poder latente que havia nos EUA. “Não fizeram aikidô. Quando os norte-americanos lançaram a bomba atômica sobre o Japão, trouxeram a paz e o progresso ao Japão e o povo japonês sobreviveu. Os militares queriam que todos se suicidassem. O fundador do aikidô, em 1940, rebelou-se contra os militares depois de os ter ajudado, quando percebeu seus espíritos egocêntricos, presunçosos e prepotentes. Então, se refugiou no interior, em Iwama, e ficou por lá até o final dos anos 50.”
Em outras palavras, se alguém é atacado por uma pessoa mais forte e não consegue defender-se, não entendeu nem aprendeu nada. Quando realmente se aprende aikidô, com pouca força é possível controlar qualquer adversário. “Ninguém se torna invencível, é claro, mas geralmente o atacado consegue impor o limite que desejar. Quem aprendeu verdadeiramente o judô, karatê, aikidô, wing chun ou o budô, por exemplo, é suficientemente bom para enfrentar qualquer adversário.”
Bull revelou que a ausência de disputas foi o ponto de partida do seu envolvimento com o aikidô. “Sob o ponto de vista do budô ou da marcialidade, isso é algo determinante, porque a competição em si é um inferno. Quando alguém compete, quer ser campeão – e querer ser campeão o faz enaltecer o ego. Quando isso acontece, o competidor está reforçando a sua condição de afastar-se do mundo divino e da natureza, e aí vem o sofrimento. Não devemos exaltar nosso ego, que deve ser compatível com a nossa real necessidade. Evidentemente, cada um tem de cuidar do seu ego, tem de cuidar de si. Mas não pode exacerbar esse ego, porque viver por conta dele, da vontade de ser campeão, é pura ilusão. Felizmente o aikidô está fora do mundo dos esportes de rendimento e de todo o movimento olímpico e suas vertentes midiáticas.”
“Quero fazer um aikidô eficiente como defesa pessoal, mas que ofereça elevação espiritual, promova harmonia entre corpo e mente, como a essência de qualquer religião.”
O professor shichi-dan (7º Dan) lembrou uma das principais frases do O-sensei, fundador do aikidô: “A verdadeira vitória é contra você mesmo, agora, nesse momento, através da verdade”. Isso significa que é preciso ser realista, ver o mundo sem ilusão, sem fantasia e agora, não pensando no amanhã nem no depois. “Temos de ter capacidade de perceber a mudança, sintonizarmos com essa mudança e ser verdadeiros. Isso é aikidô: tornar-se verdadeiramente um homem. Quem ainda não unificou o seu corpo com o seu espírito não é um homem, é apenas um projeto de homem.”
Há poucas semanas o professor Hideo Hirosawa, que foi o último aluno interno do fundador por mais de 20 anos – viveu e ensinou em Iwama, onde morava vizinho do templo Aiki jinja –, sugeriu e permitiu que a escola do shihan Wagner passe a ser a escola que divulgue o aikidô dele no Brasil, à qual entregou o kakejijku, uma espécie de bandeira símbolo de sua representação aqui no País. Assim como O-sensei dava para seus alunos afins. “Não existe nenhuma ligação política ou financeira entre minha entidade e a de Hirosawa sensei”, explica Bull. “Somente admiração mútua, claro que tendo ele como senpai. Após ter conhecido meu aikidô, ele pediu que eu siga aqui a mesma filosofia que ele propaga no Japão em seu dojô em Hatori. Nossa experiência com sensei Yoshinobu Takeda, o principal discípulo do grande Seigo Yamaguchi, foi ainda mais surpreendente, porque os alunos de lá fazem treinamento igual ao meu, de espiritualidade praticando também o non touch.”
É interessante também conhecer, ou avaliar, a distinção que Wagner Bull faz entre o aikidô tradicional e o moderno. Segundo ele, o aikidô moderno não ensina a procurar se relacionar kamis, embora os líderes frequentarem o xintoísmo, que seria a espiritualidade em nível profundo. Já o aikidô do O-sensei é praticamente uma religião, que busca a conexão com o espírito. O aikidô moderno busca harmonia, mas não está muito focado na defesa pessoal, enquanto o aikidô do O-sensei é budô, é shin-ken (luta de vida ou morte), ou seja, prepara o homem para a luta do dia a dia e, como já foi explicado, se preciso for, para uma luta de vida ou morte, de sobrevivência. É algo mais profundo em termos espirituais.
“Entretanto”, observa, “não dá para estereotipar qual é bom ou ruim. Isso depende do gosto e da busca de cada um. Mas o moderno está mais voltado para a área física, movimentação, fala muito em harmonia, paz, enquanto o tradicional foca o shin budô, um budô mais espiritual e eficiente como defesa pessoal, fala mais em se unir com as forças da natureza e aprende a controlar adversidades, em harmonia com elas. Quem não consegue vencer uma pessoa mais forte não está fazendo o aikidô do O-sensei. Já no aikidô moderno isso não é tão importante, e sim desenvolver harmonia e equilíbrio. Em vez de lutar, pede-se que o parceiro coopere.
Transmissão de conhecimento
O primeiro objetivo do shihan Wagner é atingir a plenitude da conexão do corpo com o espírito. O segundo é que seus alunos recebam ensinamento condizente para não perder tempo, para que cheguem muito mais rapidamente ao ponto que ele demorou quase 50 anos para alcançar. “E quando falo meus alunos”, ressalva, “não estou falando dos que treinam no meu dojô. Não é essa a minha preocupação. Claro que tenho compromisso com eles, mas o que me preocupa é o aikidô do Brasil, pois poucos podem aprender o que aprendi.”
O terceiro objetivo de Wagner Bull é, dentro do possível, transmitir seu conhecimento para o maior número de pessoas. Mas adverte: “Não dou, nem daria, asas a cobras e não quero acolher indivíduos de má índole. Quero ensinar pessoas boas, gente generosa, compassiva, que tem coração; gente solidária, companheira e amorosa. Não me interesso por praticante materialista, que só quer mostrar que é bom, que é o melhor, que é um campeão. Aikidô não é um esporte, é um caminho de vida, de felicidade”.
Ou seja, as portas estão abertas para todos que procurarem o shihan Wagner, sejam ou não da sua organização. “Quem acreditar em mim pode me procurar, que eu tenho o maior prazer de ajudá-lo. Essa é a minha maior vontade: não ficar restrito aos meus alunos e ao meu universo, mas expandir meu conhecimento para outros. Daqui a pouco eu morro, e levo tudo comigo.”
Wagner Bull lamenta que, hoje, só ele faça esse tipo de aikidô no Brasil. “Tivemos o professor Ono, que também trabalhava nisso, mas infelizmente já faleceu. No passado tive muitas disputas, lamentavelmente fui forçado a isso, mas no fundo, no fundo, meu objetivo era um só: que o Brasil tivesse um aikidô efetivamente digno das nossas expectativas. Felizmente hoje não tenho mágoa de ninguém e percebo excelentes professores pelo País.”
Ao encerrar este breve relato de sua trajetória nos tatamis e no Dô, sensei Bull citou uma frase memorável de Morihei Ueshiba, que, segundo ele, sintetiza a existência humana: “Toda a vida é uma manifestação do espírito e a manifestação do amor”.
Clique AQUI e assista o vídeo sobre a vinda do doshu Moriteru Ueshiba ao Brasil em 2006, evento que reuniu 2.100 praticantes.