Ao mestre Mehdi, com grande carinho e eterna gratidão

Georges Kastridget Mehdi sempre esteve à frente de seu tempo – Foto: Stefano Figalo

Discípulo de George Kastridget Mehdi, o professor kodansha Paulo Duarte afirma que o dia 6 de novembro de 2018 é uma data para ser registrada nos anais do judô brasileiro

Memória
8 de novembro de 2018
Por PAULO PINTO I Fotos DIVULGAÇÃO
Curitiba – PR

Aluno do professor kodansha Júlio Adnet (9º dan) de Brasília, posteriormente o carioca Paulo Duarte aperfeiçoou seu judô com o também professor kodansha (9º dan) Takeshi Miura, com quem aprimorou técnicas como o-soto-gari e ashi-guruma.

Mais tarde, em 1968, mudou-se para São Paulo, e dois anos depois iniciou seu aperfeiçoamento técnico com George Kastridget Mehdi, a quem visitava periodicamente e com quem atingiu o alto nível técnico que lhe permitiu formar campeões como Ricardo Sampaio, Rogério Sampaio, Daniele Zangrando, Marcos Alexandre Daud, Sérgio Sano e Leandro Guilheiro, além de conquistar várias medalhas de competições olímpicas e mundiais.

Fazendo um agradecimento público ao seu querido e inesquecível mestre e mentor, Paulo Roberto Duarte iniciou a homenagem afirmando que o dia 6 de novembro de 2018 é uma data para ser registrada nos anais do judô brasileiro. Eis aqui seu testemunho.

Mehdi com o professor Matsumoto, técnico da seleção japonesa

O imigrante George Kastridget Mehdi, meu querido professor Mehdi, resolveu ir embora nesta terça-feira. Carismático, charmoso, expressou toda a sua elegância por meio de uma técnica refinadíssima – um dos maiores estilistas que o mundo do judô conheceu.

Seu enorme conhecimento deveu-se às constantes idas ao Japão, onde travou uma amizade fraternal com o maior judoca do mundo naquela época: Isao Okano. Isso lhe proporcionou acesso aos treinos da seleção japonesa comandada pelo lendário professor Matsumoto.

Hospedado na casa de Okano, o acompanhava em todos os treinamentos: de manhã, na polícia; à tarde, na universidade; e à noite, no Instituto Kodokan. Treinou com grandes atletas do mundo, como Geesink, Sasahara, Ninomya, Minatoya, Sekine e outros.

No Japão, Mehdi treina com o amigo Isao Okano nas costas

Uma de suas histórias interessantes ocorreu exatamente com Shinobu Sekine. Depois de passar um ano acompanhando Okano em seus treinamentos alucinantes, foi convidado para ir ao interior do Japão para treinar com um judoca muito forte. Era Shinobu Sekine. Sensei Mehdi me contou que tomou uma surra indescritível. E que, em seguida, Okano pegou o Sekine e deu-lhe uma grande surra também. Na volta para Tóquio, Mehdi veio lamentando, dizendo que voltaria para o Brasil. Okano convenceu-o a ficar mais um ano e que depois voltariam novamente a treinar com Sekine. Assim aconteceu. Só que dessa vez tomou uma surra maior do que a primeira. E, novamente, Okano surrou o Sekine. Antes que ele começasse a lamentação, Okano se antecipou dizendo: “Essa história não vai mudar. Eu sou o primeiro, Sekine é o segundo e você é o terceiro”.

Recentemente, o professor Shinobu Sekine esteve no Brasil chefiando uma delegação japonesa. Contei essa história para ele, logicamente excluindo a parte de Okano, e ele riu muito.

Outra história ocorreu quando da seletiva nacional em 1973. Recém-chegado do Japão, onde passara dois anos em treinamento, pediu-me que cronometrasse o tempo de suas lutas, afirmando que procuraria definir os combates o mais rapidamente possível. Sentei-me ao seu lado no banco de espera, segurando o cronômetro.

Em seiza, Georges Mehdi com sensei Matsumoto e o alto comando do judô no Japão

Chamado para o primeiro combate, dirigiu-se ao shiai-jô, virou-se de costas para descalçar o zoori, como é recomendado, virou-se de frente para a saudação e adentrou a área para o combate. Quando o árbitro comandou o hajime, foi o tempo de segurar o judogi e desferir um espetacular uchi-mata. Sentou-se ao meu lado e perguntou o tempo de luta: 10 segundos cravados. E, assim, foi jogando cada um de seus adversários. A luta final foi contra Luiz Carlos Mubarac, a grande revelação de São Paulo naquele ano. Uma primeira entrada de uchi-mata, não conseguiu a projeção, mas logo em seguida um espetacular seoi-otoshi marcou o ippon, e a luta durou 23 segundos.

Passava muito tempo em treinamento no Japão. Sempre hospedado na casa de Okano, cuja mãe o tratava como filho, entremeando essas passagens com períodos no Brasil. Lembro-me que, quando ficou um tempo maior do que de costume sem voltar ao Japão, a mãe do Okano veio visitá-lo aqui no Brasil, trazendo uma mala cheia de presentes para seu filho ocidental.

Outro flagrante de Mehdi no Japão

Aproveitando a sua permanência mais longa no Brasil, e depois de dois anos de trabalho em São Paulo, desenvolvendo a minha carreira de professor, consegui ligar para ele e encontrá-lo em sua academia, no Rio de Janeiro. Fui ao seu encontro em busca de conhecimento. Passei um período com ele. Assistíamos a vídeos no dojô e depois ele me mostrava todos os detalhes das técnicas que havíamos visto.

Depois eu voltava para Santos e dava prosseguimento ao meu trabalho. Mas periodicamente voltava para buscar mais conhecimento. E assim foi durante toda a minha carreira, pois o conhecimento dele não se esgotava. Posso garantir a vocês que era uma verdadeira enciclopédia!

Ter o privilégio de aprender com ele, ser querido por ele e ter o prazer de ouvir suas histórias foi de uma grande riqueza para mim. Por várias vezes foi visitar-me em Santos e ficava encantado com a qualidade do judô que meus alunos apresentavam. “Eles vão chegar longe”, previa, “porque você transmite muito bem os conhecimentos.”

George Kastridget Mehdi em seu dojô em Ipanema

Passados alguns anos, quando Rogério Sampaio ganhou a medalha de ouro olímpica, Mehdi foi o primeiro a me telefonar: “Essa medalha é sua”, falou, e respondi que também era dele. Quando voltamos a nos encontrar em Santos, ele disse: “Tenho um presente olímpico para você”. E me deu o agasalho da seleção japonesa que pertenceu a Isao Okano.

O legado de Mehdi ao judô brasileiro é de tamanha monta que, nos Jogos Pan-Americanos de 1967, como técnico e atleta ao mesmo tempo, trouxe para o Brasil cinco medalhas em cinco possíveis: duas de ouro com Akira Ono e Takeshi Miura, uma de prata com Lhofei Shiozawa, e duas de bronze com Mehdi e Casemiro. Destacando que ele participava da categoria pesado com apenas 86kg. Na época, só existiam três pesos: até 70kg, até 80kg e acima de 80kg.

Particularmente, credito a ele todas as medalhas que meus alunos conquistaram e lhe dedico minha eterna gratidão!