11 de novembro de 2024
Artes marciais e o Budô, ontem, hoje e amanhã
No minimalismo japonês, a espada dos samurais é a representação sintética da época: forjada ritual e lentamente, em camadas, endurecida, afiadíssima, curva e pontiaguda, representava a síntese de seu portador
Budo Way
26 de janeiro de 2021
Por FERNANDO MALHEIROS FILHO
Curitiba – PR
Não é necessário, para integrar qualquer fenômeno social, entendê-lo, ainda mais fazendo-o profundamente. Em geral, somos envolvidos pelos fatos e carregados pelas ondas de acontecimentos atraídos por sem número de motivos, na sua maior parte incompreensíveis imediatamente.
As artes marciais provavelmente nasceram com a própria humanidade. Há estudos que confirmam a existência de conflitos entre grupos de símios, nossos prováveis antepassados, que poderiam ter maior ou menor êxito em razão da destreza com que utilizam técnicas de embate corporal ou armado (sim, os símios usavam pedras e paus). O fenômeno tem expressão do Ocidente ao Oriente, obedecidas as características culturais, geográficas e religiosas de cada povo.
No Ocidente a história é copiosa. Alexandre, o Grande, mantinha treinadas suas tropas em cujo comando atravessou o mundo então conhecido. Sabemos que, com soldados muito bem treinados e táticas militares de excelência, deixou sua Macedônia natal, foi ao norte da África, estendendo seus domínios pelo Oriente Médio até os limites da China, passando pela Índia. É certo que morreu jovem – nem tanto para aquela época, aos 32 anos –, mas não se lhe pode furtar o grande êxito militar.
Da mesma forma, as legiões romanas, talvez o primeiro exército regular e profissional da história, calcavam seu êxito nas formações e no treinamento exaustivo dos soldados, além da criatividade dos engenheiros em conceber novos artefatos ao tempo em que não havia armas de fogo.
Nessa interminável lista estão os Templários (monges guerreiros), os Hussardos (sérvios e croatas), os Gurkhas (nepaleses), os Terços Espanhóis, os centauros gaúchos na Revolução Farroupilha, os batalhões especiais presentes em todos os exércitos e polícias atuais.
Para todos esses que foram esculpidos pelas artes marciais lato sensu, além do treinamento físico e da própria experiência crua, eleva-se o código moral daqueles que aprendem a conviver com a morte e, por isso, olhar para vida, e suas adversidades, de outra forma.
No Oriente, talvez o fenômeno mais evidente seja a história dos samurais, raiz que dá estabilidade ao tronco no qual se assenta grande parte das “artes marciais” praticadas até hoje em todo o mundo.
Não se desconhece a importância da parte continental da Ásia, aliás origem mediata das artes marciais japonesas, conforme as fontes primárias abundantemente indicam. Mas, por várias circunstâncias históricas, especialmente a capitulação japonesa na 2ª Guerra Mundial e o sincretismo que dela adveio com as tropas americanas, aquelas praticadas no Japão, desde então, singraram os mares e desaguaram em todos os recantos do planeta. Foi assim com o judô, o karatê-dô, o kendô, o aikidô, o kyudô, o jiu-jitsu, e tantas outras modalidades que vieram chegando, do Oriente ao Ocidente, nos genes dos imigrantes ou na mente de instrutores.
A figura dos samurais teve, nesse processo sociocultural e antropológico, especial importância, que se projetou para o futuro, nos alcançou e, por certo, chegará firme às tantas gerações que, depois de cada um de nós, sob as cinzas que deixarmos, elevar-se-ão para olhar o passado, entender o presente e, o quanto possível, idealizar o futuro.
Originalmente “servos da gleba”, na peculiar formação social do feudalismo japonês, nos tantos conflitos que se iniciaram até o epicentro das Guerras Samuraicas no fim do século XVI e o início do período Tokugawa, os samurais formavam batalhões de soldados especializados em matar com rapidez e eficiência.
No minimalismo japonês, a espada dos samurais, a katana, é a representação sintética da época: forjada ritual e lentamente, em camadas, endurecida, afiadíssima, curva e pontiaguda, talvez a arma branca mais letal de que se tenha notícia. Representava a síntese mesma de seu portador.
Esses homens, como hoje se sabe, impiedosos e violentos como era de sua função, obedeciam a código de ética próprio àqueles tempos (bushidô). Deviam estrita obediência ao líder (daimyô – senhor feudal), estando sempre aptos a morrer pela causa, mostrando desprendimento e perfeita consciência de sua própria finitude.
Grande enfeixamento de vetores culturais contribuiu para esse complexo cenário, cujas expressões até hoje absorvemos: a situação geográfica do Japão e a escassez de terras agriculturáveis e a influência dos elementos filosóficos e religiosos, tanto aqueles oriundos do continente – o confucionismo e o zen-budismo –, como os autóctones – o xintoísmo –, além de todos os condimentos inerentes a cada cultura em particular.
O fato é que, sendo as artes marciais nipônicas um dos frutos daquela multifacetada cultura, espalharam-se pelo Ocidente impregnadas desses valores e, mesmo que inicialmente nós as praticássemos sem conhecê-los, o próprio exercício nelas nos levou, com o passar dos anos, a buscar aquilo que ainda faltava, isto é, a origem de tudo: o Budô.
Ainda hoje a noção do Budô sobrepaira como algo que não é inteiramente cognoscível ao praticante ocidental. Somente a imersão na cultura que lhe deu origem, e no tempo em que perdurou, permitiria tal compreensão. E, como sabemos, o tempo passou. No período Tokugawa, com início em 1603, os samurais assumiram o poder e impuseram paz forçada, mas, sem guerra que justificasse sua existência, amoleceram até permitirem a Restauração Meiji em 1868 (data de nascimento do professor Gichin Funakoshi), concedendo novamente o poder ao imperador.
Entrementes, alguns samurais enlouqueceram. Não poderiam mais sobreviver sem a finalidade para a qual foram treinados por séculos. Ronins saíram a disputar duelos até que perdessem a vida, ou lhes faltassem os alimentos. Outros fundaram escolas, e são as reminiscências delas que chegam até nós, ainda que, nesse particular, reconheça-se enorme salto histórico justificado pela brevidade destas linhas.
Aqui o passado aproxima-se do presente e projeta o futuro. As artes marciais, mormente num mundo em que a guerra é cada vez mais tecnológica (assimétrica ou de 5ª geração), abandonaram sua aplicação exclusiva aos soldados para levá-los ao combate, ganhando expressão civilizatória muito mais abrangente. Transformaram-se em instrumento de educação.
Sem que possamos compreender o fenômeno nas suas circunstâncias históricas, influências culturais e modelagem casuística, até poderemos surfar no vagalhão que se forma pelos seus movimentos, dificilmente recolheremos resultados de longo prazo e alta significação.
Quando compreendidas como fenômeno predominantemente educacional, como parece indicar o encaminhamento dos fatos, as artes marciais elevam-se a patamares muito além daqueles ainda conhecidos e até aqui praticados, que apenas se detêm na excelência técnica, nas táticas de competição e na preparação física.
A excelência técnica e demais atributos de competidores e praticantes de alto rendimento, além de representarem parte menor da vida deles próprios – que também envelhecem e morrem, ou até deixam o mundo dos vivos antes de envelhecer, como era comum aos samurais –, atingem espectro humano limitadíssimo, muito aquém do alcance que se pretende com a educação.
Moldada a formatação educacional da arte, abre-se aos mestres, professores, instrutores e praticantes em geral horizonte antes desconhecido. A arte abrange outros territórios não alcançados exclusivamente pela prática física e o desporto. Requer nova e robusta edificação, em termos de alinhamento filosófico, valores morais e conteúdos educacionais a partir de todos esses vetores: os técnicos, os filosóficos, os históricos, aqueles próprios ao relacionamento entre os partícipes, e as habilidades que poderão ter a seu dispor no mundo externo.
Para isso é fundamental que a natureza do Budô seja reescrita, é certo com respeito aos seus princípios fundantes, mas com a compreensão do que ele pode significar nesse mundo jamais sonhado, nem nos mais desvairados delírios, pelos samurais que o seguiam.
Fernando Malheiros Filho
é professor de karatê-dô, historiador
e advogado, especialista em direito
da família e sucessões.