Artes marciais: uma jornada do corpo à mente

É possível praticar artes marciais apenas com o domínio técnico, mas, sem a compreensão filosófica, a prática se torna vazia, carente de sentido © Fotomontagem Global Sports

Este artigo constitui um modesto esforço para elucidar o complexo fenômeno das artes marciais. Uma jornada que começa no corpo, passa pela mente e pode levar a uma compreensão profunda de nós mesmos e do mundo ao nosso redor.

Por Fernando Malheiros Filho
4 de janeiro de 2025 / Curitiba, PR

Qualquer fenômeno, qualquer fato, antes de ser explicado, é primeiramente experimentado, vivenciado, sentido. Esta é a ordem natural das coisas. Gerações sentem, experimentam, vivem o fenômeno, até que, num dado momento, surge a necessidade de explicá-lo. Aqueles que se propõem a tal tarefa elaboram um modelo teórico, uma estrutura que, idealmente, se ajusta ao fenômeno e permite a inserção dos instrumentos de análise. Evidentemente, esses instrumentos e as conclusões obtidas refletem a cultura e a formação do analista.

As artes marciais, como as conhecemos, são predominantemente um fenômeno oriental, apesar de contraditoriamente carregarem em seu nome a marca do Ocidente, o que sugere uma leve distorção em sua essência. Marte, o deus romano da guerra, empresta seu nome a uma prática tipicamente oriental. É claro, o Ocidente também desenvolveu suas próprias formas de combate, voltadas, no sentido estrito, para a guerra. Os romanos, por exemplo, eram mestres nisso, organizando seus exércitos nas famosas e temidas legiões.

Ao analisarmos as artes marciais, encontramos de imediato uma interpretação ocidentalizada em seu próprio nome. Para uma compreensão mais profunda, termos orientais como o japonês Budô, ou “o caminho do guerreiro”, mostram-se mais adequados. Essa expressão une a ideia de guerra com a noção de caminho, conceito impregnado de elementos culturais do Oriente, com raízes no budismo e no zen-budismo.

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Após cinco décadas de prática e ensino, e mantendo a perspectiva ocidental que molda minha formação, considero possível desenvolver um arcabouço teórico para compreender este fenômeno, sem a pretensão de esgotá-lo, mas com o objetivo de auxiliar na sua compreensão. Minha reflexão aponta que a arte marcial é influenciada por três vetores interligados: técnico, filosófico e cognitivo.

1 – Vetor técnico

Engloba os ensinamentos relativos à mecânica do corpo humano e à aplicação das leis da física, como as leis de Newton e o princípio da alavanca de Arquimedes. Mesmo que o praticante não compreenda a fundo a ciência por trás, a repetição e o método de tentativa e erro permitem, gradativamente, uma percepção apurada da forma mais eficiente de desenvolver cada movimento.

2 – Vetor filosófico

Trata dos valores não apenas morais, éticos ou jurídicos, mas também daqueles que, em nível mais profundo, influenciam e são influenciados pelo desenvolvimento das técnicas. Esta interação é fundamental. As técnicas estabelecem um sistema de equilíbrio, a partir do qual movimentos mais eficientes são possíveis, o que também se reflete na beleza da execução, uma vez que o cérebro percebe o equilíbrio, a harmonia e a fluidez como uma forma de beleza. Neste vetor, encontramos premissas filosóficas como a estética, a lógica, a moral, a metafísica e até mesmo a epistemologia, que será tratada de forma mais aprofundada no próximo vetor.

É possível praticar artes marciais apenas com o domínio técnico, mas, sem a compreensão filosófica, a prática se torna vazia, carente de sentido. Somente a integração com os elementos filosóficos permite a perseverança, mesmo quando o corpo já não responde com a mesma prontidão, pois encontramos em cada movimento um significado mais profundo que justifica sua existência.

3 – Vetor cognitivo (epistemológico)

Este vetor, separado da perspectiva filosófica por sua força e distinção, representa a consequência mais relevante da prática das artes marciais. O praticante não apenas aprende a se posicionar e a executar movimentos, extraindo sua essência com o mínimo de esforço e o máximo de resultado, mas também internaliza em sua estrutura mental as consequências do aprendizado.

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Este elemento cognitivo é o principal benefício que o praticante pode obter. Se desenvolver a cognição transcendente, deixará de simplesmente executar movimentos, mesmo que belos e fluidos, para incorporar, na dualidade mente/execução, todos os significados que dela emanam. Por meio deste fenômeno cognitivo, o praticante desenvolverá nova visão para si mesmo, para sua vida e para os demais, uma visão mais aguçada, capaz de enxergar além da superfície e alcançar camadas mais profundas da realidade. Este é o propósito último da arte.

Sobre o elemento metafísico

É importante mencionar o elemento metafísico, mas opto por não atribuir a ele o status de vetor essencial neste modelo. No Ocidente, cada praticante carrega sua própria visão do transcendente, influenciada por diversas religiões. No Oriente, a situação é diferente, as artes marciais (mesmo considerando as limitações dessa nomenclatura) são parte integrante da cultura. Neste estudo, o aspecto metafísico auxilia na compreensão do surgimento do fenômeno no Oriente, a base a partir da qual chegou ao Ocidente. É possível manter o sistema de crenças individuais e ainda assim se beneficiar imensamente da prática marcial.

Conclusão: visão holística vs. abordagem cartesiana

A compreensão deste sistema será diferente para orientais e ocidentais. Nós, ocidentais, somos educados sob a influência do pensamento cartesiano, que divide o conhecimento em setores, como fiz neste texto. Para o oriental, em sua perspectiva holística, a arte marcial é um fenômeno único, com um sistema de percepção totalmente diferente.

Nossa capacidade de absorver esta rica experiência cognitiva e, consequentemente, de transcender os limites do envelhecimento, permitindo que a mente permaneça lúcida enquanto o corpo se apequena, está intrinsecamente ligada à nossa compreensão das diferenças culturais. É por essa sabedoria acumulada, derivada desta experiência transcendente, que os jovens devem venerar os velhos. Sem essa experiência e a sabedoria dela decorrente, os mais velhos seriam apenas velhos.

Este artigo constitui um modesto esforço para elucidar o complexo fenômeno das artes marciais. É uma jornada que começa no corpo, passa pela mente e pode levar a uma compreensão profunda de nós mesmos e do mundo ao nosso redor. É um caminho que convido você, leitor, a percorrer, descobrindo em cada passo, em cada movimento, a essência desta arte milenar.