19 de dezembro de 2024
Budô: a conexão
Em sentido estrito, a prática do Budô é o exercício constante de entender as conexões do ser com seu corpo, do ser com seu outro e do ser com o mundo externo
Por Fernando Malheiros Filho
7 de novembro de 2022 / Curitiba (PR)
O holismo representa a ideia sedutora de que todas as coisas estão conectadas, ainda que alguns exageros metafísicos sempre atormentem os mais céticos. Não sem razão. Na cosmologia já é certo que tudo – absolutamente tudo – teve início a partir do ponto infinitesimal que, em determinado momento, expandiu-se aceleradamente, dando origem ao universo conhecido. Já estávamos lá, travestidos de partículas e átomos que, bilhões de anos depois, reuniram-se para nos constituir. Não discrepa o pensamento deísta, que concentra na figura superior de Deus a origem de tudo.
Essa ideia de conexão profunda, de tudo com tudo e do todo com a parte, é inevitável em qualquer reflexão filosófica, no Ocidente ou no Oriente, estando até presente na etimologia da palavra “religião” que, segundo alguns, deriva do latim religare, ou religar (outros sustentam que teria origem no latim relegere, ou reler).
Independentemente da forma de pensar ou das origens ideológicas e de formação cultural de quem pensa, é inevitável reconhecer que as coisas do mundo estão conectadas, havendo maior ou menor influência de umas sobre as outras.
No plano físico, observando as grandes forças subatômicas do universo, a gravidade e o eletromagnetismo, é possível perceber que os corpos se atraem mutuamente e interagem pelo complexo sistema de linhas de força que habitam tudo que existe, o espaço e a matéria.
Não por razão diversa, todas as ações humanas de natureza física dependem do ambiente gravitacional, essa conexão que nos mantém presos à superfície do planeta, nos outorga o peso atribuído à matéria de que somos constituídos, pelo qual desenvolvemos a musculatura capaz de nos assegurar os movimentos.
Esse conjunto de ossos, articulações e músculos não deriva de causas aleatórias. Responde ao ambiente em que foi criado ou desenvolvido, obedecendo a critérios impostos pelo meio ambiente, com a criação do organismo adequado – ainda que mortal e evanescente – à interação com o mundo por ele habitado. Nisso, novamente, a ideia fundamental de conexão.
As artes marciais são fruto dessa noção central de conexão, sendo fácil percebê-lo na observação do principiante ainda incapaz de entender e produzir as necessárias conexões à execução de qualquer técnica, embora já portador do instrumental humano, de seu corpo e cérebro. Essa forma de conexão é, e sempre será, eco remoto da conexão fundamental.
Em sentido estrito, a prática do Budô é o exercício constante de entender essas conexões do ser com seu corpo, do ser com seu outro e do ser com o mundo externo. A eficiência da prática somente se produz pelo entendimento profundo de todas as conexões que envolvem o indivíduo praticante, quando capaz de compreender a si próprio, seus movimentos, o outro e os movimentos dele, atuando para identificar seus momentos mais fortes em contraposição à fraqueza do adversário. Ambos se conectam em favor do vitorioso.
“Profundamente, nos servimos do corpo para educar o cérebro, e este ao primeiro, com finalidade da obtenção da interação entre esses elementos, aurindo a compreensão de como as coisas e os seres funcionam.”
Mas a ideia de que podemos perceber as conexões físicas, dominando e acionando os músculos a partir desse entendimento para conectar o movimento, não esgota o campo de conhecimento, mas apenas aquele relativo à matéria. Abre-se a especulação sobre as conexões no mundo às quais não se pode ter acesso pelos cinco sentidos (visão, audição, paladar, olfato e tato), apenas perceptível pela capacidade única do ser humano de induzir abstrações: o pensamento.
A compreensão das conexões físicas, no Budô e nos sistemas de pensamento conhecidos, não passa de caminho (Dō) para o entendimento daquilo que não se pode ver, ouvir, degustar, cheirar ou tocar, e que habita o espírito humano, este compreendido pelo conjunto de abstrações que ideamos através do pensamento.
Chegamos à conexão fundamental para o ser humano, ressonância de todas as outras: as vias de contato entre a mente – e o cérebro – e o corpo.
Profundamente, nos servimos do corpo para educar o cérebro, e este ao primeiro, com finalidade da obtenção da interação entre esses elementos, aurindo a compreensão de como as coisas e os seres funcionam.
Necessitamos compreender com o resultado da evolução de nossas capacidades e o surgimento da abstração maior identificada como a mente (diversa do cérebro, mas isso deve ser objeto de outro escrito). Estamos aqui para entender essa conexão, do universo físico com o metafísico, daquele habitado pelo corpo com o que provém do pensamento.
Desejamos compreender a nós mesmos e o papel que desempenhamos na curta existência que nos cabe viver. E não há alternativa senão interagir, experimentar, retirando dessa experiência o conhecimento puro.
Ao praticar, e por décadas, repetindo milhões de vezes cada movimento para depurá-lo, tornando-o cada vez mais eficiente em seu propósito imediato, vamos abrindo o caminho para entender todo o demais, conhecimento que não depende da arquitetura lógica, mas ligado ao estado de consciência singular, do ser para com si próprio, e do ser para com seu mundo.
Essas linhas servem apenas a essa advertência sobre o sentido mesmo da prática, do exercício, do polimento dos movimentos: destina-se à abertura das portas do conhecimento, portal a ser transcendido para o ingresso no universo até então desconhecido.
Fernando Malheiros Filho
é professor de karatê-dô, historiador
e advogado, especialista em direito
da família e sucessões.