BUDÔ: A EXCELÊNCIA TÉCNICA E A BUSCA DA VERDADE

Somos imperfeitos e lutamos, desde o nascimento até a morte © Pinterest

O mais profundo significado da prática é o autoconhecimento, a compreensão interna do que realmente somos, nossos limites em todos os sentidos

Transmissão de Conhecimento
12 de janeiro de 2021
Por FERNANDO MALHEIROS FILHO
Curitiba – PR

A vida do ser humano pode ser concentrada na sua aventura cognitiva. Somos o que pensamos ser. Por isso, as doenças mentais alienantes, para os desafortunados em portá-las, compromete-lhes a identidade: não sabem mais quem são.

Vivemos para conhecer, e o conhecimento garante a vida, maior ou menor, melhor ou pior, na dependência do quanto o ser vivente tem domínio do conhecimento.

Conhecer, para a espécie humana, é viver. E de nada serve conhecer senão a verdade; esta sempre distorcida, ou apagada, pelos tantos filtros que nos turvam o olhar.

Conhecer, para a espécie humana, é viver © Monika Heyits

Nessa aventura cognitiva nos servimos de inúmeros mecanismos, físicos ou intelectuais: desde a ciência (quando praticada em rígida obediência aos critérios de seu método, o científico) até a filosofia, tudo em busca do elemento último, qual seja, a verdade, a verdade definitiva, ou o quanto mais perto dela consigamos chegar.

A prática de artes marciais, para além de seus postulados técnicos, representa método de escrutínio dessa verdade, da verdade interior, do autoconhecimento, quando medimos nossas reações e desempenhos a partir daquilo que de nós sabemos e que poderemos saber com esse peculiar aprendizado.

Esse, provavelmente, é o mais profundo significado da prática: o autoconhecimento, a compreensão interna do que realmente somos, nossos limites em todos os sentidos, aquilo do que somos feitos, a têmpera que nos constitui.

Essa verdade é particularmente difusa, não está imediatamente disponível ao senciente, senão quando ele enfrenta sua própria aventura em direção aos mais internos de seus sedimentos.

Sempre que estamos em vias de romper com a superfície da epiderme simbólica que nos envolve, cavando para abaixo dela e descobrir aquilo de que somos feitos, devemos escolher o instrumento utilizado para tal finalidade. Podem ser a meditação, a reflexão, a especulação intelectual, as terapias ou os mecanismos de desenvolvimento físico, quando se sabe que mente e físico compõem a mesma individualidade ou unidade.

Tendo a excelência técnica o objetivo imediato de desenvolver movimentos mais apurados, eficientes e estéticos, com ainda mais importância essa proficiência há de ser utilizada na compreensão que o ser tem de si mesmo. No fundo, e por fim, a excelência técnica destina-se a distinguir a verdade de sua contrafação.

somos imperfeitos, e lutamos, desde o nascimento até a morte © Manuela Spessatto

Mas a trajetória é traiçoeira e poderá deixar pelo caminho aqueles que, mesmo portadores de movimentos belos e eficazes, não compreenderem a essência de seus postulados. Não somente essa excelência nos propõe a superação das grandes dificuldades para alcançá-la – nessa depuração própria à aventura cognitiva –, como também deve afinar os sentidos para a distinção entre a verdade e a falsidade.

A excelência técnica haverá de estar a serviço dessa compreensão profunda do significado de verdade, que não será alcançada exclusivamente pelo treinamento exaustivo, como este mesmo deve inocular no praticante o sentido último de verdade: aquela que até pode estar ao alcance dos olhos, mas nunca pode ser atingida e inteiramente compreendida, distanciando-se a cada movimento, exigindo do caminhante constante esforço em sua direção.

Não, a verdade última não representa uma miragem, nem mesmo a utopia sempre sedutora neste mundo cada vez mais distópico. Em sua própria natureza significa o fruto do esforço humano de saber de si mesmo, tarefa sempre inacabada, que temporalmente termina com a morte, mas jamais permite àquele que a empreende chegar aos contrafortes do Olimpo.

A excelência técnica apodera-se da verdade física quando desenvolvida com genuíno propósito, dando ao praticante a indicação do “caminho” (Dō): aquele que ele deverá trilhar em busca da verdade definitiva. Em última percepção, sua própria natureza.

Estamos e somos imperfeitos, e lutamos, desde o nascimento até a morte, para tentar corrigir tantas imperfeições. A prática representa um dos tantos instrumentos para esse desiderato, mas de nada servirá se a consciência desse propósito não estiver presente.

A excelência técnica, aplicada com maior ou menor desenvoltura, deve estar a serviço desse objetivo. Não se presta a si mesma, ainda mais nestes tempos em que lutar – ou praticar formas de luta – não tem outro fim senão aperfeiçoar espiritualmente o praticante. Vivemos em sociedades minimamente civilizadas e podemos nos pôr em segurança atrás das grades e muros.

A prática tem seu sentido profundo, que deve, desde o princípio, ser entendido pelo praticante, assim estimulado a entendê-lo por seu instrutor. Deve o primeiro ter em mente que as utilidades técnicas são limitadas, ainda que desenvolvidas com excelência, e praticadas para serem utilizadas no ambiente do dojô. O que importa é o resultado no autoconhecimento ou a percepção do “caminho”; aquilo que a prática descortina dos mistérios que nos envolvem.

Fernando Malheiros Filho
é professor de karatê-dô, historiador
e advogado, especialista em direito
da família e sucessões.