18 de novembro de 2024
Budô: a mente e o corpo
O domínio do espaço-tempo decorre do uso intensivo dos três sentidos: visão, audição e tato. O primeiro, no exame do entorno, que permite o cálculo de distância e tempo; o segundo, na percepção dos movimentos do adversário; e o terceiro, no contato com o outro e, principalmente, com o chão
Por Fernando Malheiros Filho
16 de março de 2023 / Curitiba (PR)
Mente e corpo são categorias diferentes. A primeira, uma abstração; o segundo, algo concreto, físico. Pertence a este o cérebro, do qual deriva a mente, mas que dela também se distingue. Essas conceituações são essenciais para que o ser humano possa entender a si mesmo, no geral, e, no particular, interagir e praticar artes marciais.
Desde os romanos, essa relação entre corpo e mente é observada. É do poeta Juvenal a expressão: orandum est ut sit mens sana in corpore sano(deve-se pedir em oração que a mente seja sã num corpo são).
Transcendendo a sanidade de ambas as categorias, desde sempre estiveram os seres humanos imbuídos em entender as relações entre elas, começando pelo conceito de mente, diversa do cérebro.
A mente é o produto da atuação dirigida do cérebro. Pode ser treinada e esculpida. No cérebro estão todas as reações químicas que o fazem funcionar, inclusive aquelas responsáveis por nos manter vivos (sistema nervoso parassimpático), ainda que sem a volição mental. É nisso que começa a distinção filosófica entre as duas categorias: mente e cérebro.
Os instrumentos culturais, passando pela medicina, a filosofia, a psicologia, a psicanálise, a ciência de modo geral, por milênios, vêm tentando entender essa interação mente-corpo e mente-cérebro. Até agora sem êxito. Há os que dizem que o cérebro humano não é equipado para entender a si mesmo, o que pode ser verdade. Obra da criação, o cérebro (e a mente) está aquém de sua própria complexidade.
É possível, entretanto, compreender parte do fenômeno com a prática do Budô, mediada pela reflexão filosófica, sendo mesmo, ainda que não de forma explícita, um de seus propósitos, possivelmente o mais importante.
A mente é representada pela capacidade consciente do ser humano de saber de si mesmo, de sua origem, talvez de seu destino, e do mundo que o cerca, com ele interagindo. Por ela sabemos de tudo que nos cerca, do tempo, da distância, do sabor, da forma, da temperatura, dos sentimentos próprios e alheios, e dos demais característicos do mundo ao derredor, inclusive de outros seres humanos.
Melhor será a interação quanto melhores forem quer os instrumentos mentais de medição quer aqueles que nos fazem agir.
Ainda que, dos cinco sentidos, na arte marcial, apliquemos predominantemente a visão, o tato e a audição, com menos influência o olfato e o paladar, podemos explorá-los e exponenciá-los, tornando-os mais sensíveis e agudos do que originariamente são.
A essa altura, caro leitor, podem estar incompreensíveis os argumentos. Exemplifico-os. A noção de tempo para o ser humano obedece a paradigmas, que não são aplicáveis à arte marcial. Ao medir o tempo elegemos o “segundo” como unidade mínima, mas se sabe que as decisões humanas, em situações como a da luta, deverão ser tomadas em espaço temporal até dez vezes menor.
Basta lembrar que o praticante treinado pode desferir golpes à velocidade de dez metros por segundo. Logo, se conclui que, para vencer apenas um metro, necessitará de um décimo de segundo, tempo dentro do qual deverão tanto o que desferiu o golpe quanto o outro, decidir o que fazer, e reagir.
Da mesma forma, a compreensão do espaço, quando se sabe que a luta se resolve pelo encurtamento da distância. A distância será cada vez menor na exata medida em que os adversários se aproximam.
Deve o praticante habituar-se a identificar essas pequenas unidades de tempo e espaço para reagir. Isso exige acuidade mental extrema, cada vez mais pontual quanto menores forem os interregnos do tempo-espaço a ser percebidos.
“A visão significa projeção. Com ela podemos calcular e projetar o futuro imediato. Sem ela não será possível produzir o trajeto imaginário de cada movimento (os cegos desenvolvem os outros sentidos para superar a perda da visão).”
Algum leitor haverá de questionar como isso é possível, se reconhecidamente são finitas as capacidades humanas.
A resposta é relativística, como sói acontecer na física das pequenas estruturas. Quanto maior o comprometimento mental em se ocupar com tarefas corporais, menor a capacidade de perceber aquilo que é infinitesimal.
Surge como elemento fundamental o equilíbrio corporal e mental, indispensável à acuidade. Esse equilíbrio deriva do incansável treinamento, tão conhecido na voz dos mestres ancestrais, e resulta na postura adequada a cada movimento.
O cérebro não deve estar preocupado com esse aspecto postural. A posição, pelo treinamento, deve estar impressa no elemento cerebral, abaixo da volição.
Com isso, deixamos maiores espaços mentais para aquilo que deve ser decidido e não para aquilo que já deve estar incorporado à conduta do praticante, seus órgãos, ossos e músculos. Dá-se o Kime (決め), ou o substantivo do verbo decidir (Kimeru – 決める)
Esse domínio do espaço-tempo decorre do uso intensivo dos três sentidos em discussão: visão, audição e tato. O primeiro, no exame do entorno, o que permite o cálculo de distância e tempo; o segundo, nas percepções dos movimentos do adversário; e o terceiro, no contato com o outro e, principalmente, com o chão.
Cada um desses sentidos pode ser desenvolvido exponencialmente, e não apenas para identificar situações de espaço-tempo mínimas.
A visão significa projeção. Com ela podemos calcular e projetar o futuro imediato. Sem ela não será possível produzir o trajeto imaginário de cada movimento (os cegos desenvolvem os outros sentidos para superar a perda da visão).
Não é possível desferir certeiramente qualquer movimento sem projetá-lo com a visão. Esta deve ser desenvolvida nos limites de suas possibilidades, dotando a mente dos elementos essenciais à avaliação dos fatos, em especial o dinamismo de qualquer realidade externa. Essa projeção é fruto da visão, e seu desenvolvimento é indispensável à execução de qualquer técnica. Em japonês dá-se o nome de Mikiri (見切り), “visão para cortar”, herança óbvia da luta com espadas.
Igualmente relevante é o tato, tão importante no contato com o outro quanto em relação ao chão. Por ele – e daí a prática descalça – sabe-se a distância do chão ao pé e se mantém o equilíbrio corporal apto a fazer com que a mente se ocupe exclusivamente com aqueles elementos da ação que realmente devem ser modulados em cada situação.
Finalmente, a audição aumenta a compreensão ambiental, auxiliando na mensuração própria aos outros dois sentidos, bastando lembrar que é por ela, e pelo tato, ambos desenvolvidos exponencialmente, que o cego compensa a falta de visão.
Esses conceitos estão diretamente ligados à ação mental com resultado no corpo. A prática do Budô, em qualquer de suas múltiplas modalidades, oferece ao praticante explorá-los, intensificá-los, concentrá-los até o limite das possibilidades humanas.
Não é certo que, por essa compreensão, poder-se-á, finalmente, entender o fenômeno da criação, mas é o mais perto disso que poderemos chegar.
Fernando Malheiros Filho
é professor de karatê-dô, historiador
e advogado, especialista em direito
da família e sucessões.