Budô: arte da guerra

A guerra, certamente está impressa em nossos genes © Rebel6.com

Assim como todos os sistemas de compreensão das verdades profundas, a prática marcial não é acessível àquele que não esteja efetivamente disposto a perseverar no caminho (Dō)

Por FERNANDO MALHEIROS FILHO
15 de julho de 2022 / Curitiba (PR)

Não me refiro, prezado leitor, ao célebre livro de Sun Tzu, escrito faz cerca de 2.500 anos, que se tornou referência em termos de estratégia militar, inspirando exegetas de todos os tempos, mais frequentemente a partir da metade do século que passou, quando a cultura oriental ganhou a simpatia do Ocidente, a partir do fim da 2ª Guerra Mundial.

A guerra, ou mais especificamente a “pulsão da morte”, para utilizar a retórica freudiana, certamente está impressa em nossos genes. Não fosse assim, não teríamos o mosaico da história da civilização que nos conta a sucessão de conflitos, em maior ou menor escala, e suas consequências.

Nossa matriz civilizacional é greco-romana, que nos legou os idiomas latinos, a filosofia, as leis, a arquitetura e a cultura militar. Aliás, é de Roma que provém o adjetivo “marcial”, alusão ao deus da guerra romano, Marte.

Qualquer um que se debruce sobre a história, mais ou menos versado na matéria, haverá de encontrar a “história das guerras” – e até muito antes das notáveis legiões romanas, que garantiram o apogeu do Império do Ocidente, mas também seu ocaso, curvado pelos custos em manter agrupamentos militares nos quatro cantos do mundo dominados pelos romanos.

Antes que os estudiosos me advirtam pela ousadia no diagnóstico, adianto-me em reconhecer que o descenso do Império Romano está enraizado em múltiplos fatores, entre eles sua vocação guerreira, os custos da guerra e a ferocidade dos inimigos que soube fazer.

As artes marciais surgiram em todo o mundo e em cada canto com as peculiaridades próprias da cultura local © Yansanniang

O que importa ao meu raciocínio é a influência da guerra na história, mas igualmente na natureza humana, cada vez mais evidente, mesmo quando, por décadas, o pensamento civilizado auspiciou o fim definitivo das hostilidades.

Essa impressão foi alimentada com o fim da Guerra Fria, quando desabou o mundo comunista (1989) e a União Soviética deixou o mapa para entrar na história (1991). Os mais ousados prognosticaram o “fim da história”, como Francis Fukuyama, que escreveu, em 1992, o seu O Fim da História e o Último Homem, a tempo de ficar rico com a obra, antes que o cenário alvissareiro ficasse novamente turvo, com o 11 de setembro de 2001 e tudo que veio depois e chegou até nós.

As cinzas e as trombetas apocalípticas que, quando escrevo estas linhas, podem ser vistas e ouvidas no firmamento, reativam a percepção clássica de que o ser humano é voltado para a guerra, ainda que à estrita racionalidade soe repugnante a violência feroz dos conflitos, tanta morte e sangue.

As artes marciais surgiram em todo o mundo e em cada canto com as peculiaridades próprias da cultura local. Ficaram famosas as artes marciais orientais, também por suas técnicas, porém mais pela interpenetração dos valores filosóficos com a prática e a construção de um todo unitário que, pelo manuseio do instinto animal que vive no espírito humano, tentar produzir seu antípoda: a paz terrena, primordialmente a paz espiritual.

E não se trata de propósito de somenos importância, menos ainda projeto secundário. Não se conhece paz perene, entre povos ou seres humanos individualmente considerados, que não desfrutem paz interna e possam conjurar os demônios que nos habitam e inquietam.

Somos forçados e entender a prática marcial por sua aparência, vitalidade e destreza, que muitos podem identificar como detestável agressividade © Sequeiro Shadows Die Twice

Somos forçados e entender a prática marcial por sua aparência, vitalidade e destreza, que muitos podem identificar como detestável agressividade. Mas o que realmente importa, aquilo que o praticante haverá de levar consigo para onde estiver – até para a velhice, quando o corpo não permitirá mais o exercício com vigor –, é a edificação espiritual, o cenário abstrato desse mundo interno, obscuro àqueles que não se detiveram em iluminá-lo.

Não por outra razão, as linhas de pensamento oriental nos põem em busca da luz. A iluminação – que, no Hinduísmo, é conhecida como Nirvana; no Zen-budismo, como o Satori; na psicanálise, o insight; e nas religiões cristãs, a epifania – representa, acima de tudo, a abertura das portas para o autoconhecimento, aquilo que nos assegura estarmos senhores de nós mesmos.

Há métodos para tão nobre desiderato, e as artes marciais oferecem-se como um deles; poderoso instrumento de ruptura das aparas que limitam o acesso ao interior, aos escaninhos do ser, escondidos da percepção superficial que cada um tem de si mesmo.

Como todos os sistemas de compreensão das verdades profundas, a prática marcial, e seus últimos desideratos, não é acessível àquele que não estiver efetivamente disposto a perseverar no caminho (Dō). Aqueles que o fizerem encontrarão cenário inquietante, senão aterrador, nos úmidos e insalubres subterrâneos que jazem abaixo da linha da pele, mas poderão ter a certeza de que encontrarão a verdade.

Fernando Malheiros Filho
é professor de karatê-dô, historiador
e advogado, especialista em direito
da família e sucessões

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