Budô: arte e ciência

Kiyou Shimizu, medalhista de prata do kata nos Jogos Olímpicos de Tóquio © WKF

É sumamente improvável que velhos mestres de artes marciais do Oriente conhecessem, ou dominassem, as leis da física, conhecidas como Leis de Newton, ou princípios de Arquimedes

Por Fernando Malheiros Filho
16 de julho de 2022 / Curitiba – PR

Os conceitos de arte e de ciência por vezes se distanciam e em algumas ocasiões se interpenetram. A arte está ligada às emoções, à percepção sensitiva, ao senso estético, às influências culturais e a tudo mais que pode influenciar a manifestação artística. Por seu turno, a ciência somente rende homenagens à razão e às evidências que podem ser coletadas pelo método científico, posteriormente generalizadas, com a compreensão das leis que as governam.

Luís de Camões, o maior poeta da língua portuguesa – ele também soldado, que perdeu o olho direito flechado em Celta – ao se propor, no século XVI, em seu Os Lusíadas, a descrever a saga lusitana, afirmou: “Cantando espalharei por toda parte, se a tanto me ajudar o engenho e arte” (Canto Primeiro, 2)”. Arte é coisa da alma; engenho, da ciência. O artista quase sempre não sabe o porquê de sua obra, para ele ela apenas existe. O cientista gasta sua vida para entender o porquê.

É sumamente improvável que os velhos mestres de artes marciais do Oriente conhecessem, e menos ainda dominassem, as leis da física, conhecidas como as Leis de Newton, ou os princípios de Arquimedes. Toda a construção do fenômeno definido como artes marciais deve-se ao conhecimento empírico e à intuição, ainda que a eficiência decorra das mesmas leis aplicáveis a todos os fenômenos físicos, seja no planeta ou no cosmos.

Essa formação dos conhecimentos construída pelos mestres de artes marciais, e que chegou até nós, deve-se não somente à observação dos fenômenos físicos aplicados ao corpo do praticante, mas também ao mais demorado, porém seguro, método de testagem, representado pela tentativa e o erro, que sempre remete o estudioso à exclusão das hipóteses não comprovadas ou mais propriamente das técnicas que, aplicadas à realidade, mostraram-se ineficientes.

O artista quase sempre não sabe o porquê de sua obra, para ele ela apenas existe. O cientista gasta sua vida para entender o porquê.”

Trata-se de uma verdadeira “seleção natural” de técnicas, de conhecimentos e de percepções, daí o grande espaço de tempo necessário para a ideação e comprovação da eficiência de cada um dos movimentos, criados por emulação daqueles que se podem encontrar na natureza ou especialmente nos embates entre seres humanos, com a identificação e a consagração daqueles que efetivamente atingiram o objetivo de eficiência máxima.

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À falta de conhecimentos científicos, não havia alternativa ao desenvolvedor das artes marciais nos tempos mais primitivos senão submeter as suas percepções ao crivo da realidade. Por certo, tivesse a ciência em seu favor, vivesse num tempo como atual, no qual quase todos os conhecimentos estão ao alcance de um toque de dedos, o criador das técnicas poderia produzir suas formulações em tempo muito mais exíguo, tentando compreender a interação das leis da física com os movimentos humanos.

Mas não foi isso que se deu, e por motivos óbvios, daí a razão pela qual somente o conceito de arte pode comportar essa evolução lenta, mas duradoura, impregnada pelos elementos culturais que justificam sua prática e aplicação até os dias de hoje.

Compreender esse processo de evolução significa o principal elemento de assimilação do fenômeno maior que temos por “artes marciais”, que soube transcender, por sua intersecção com os demais campos do conhecimento humano, à mera utilização da técnica para a defesa ou o ataque, ganhando o status de manifestação cultural e construto filosófico.

A situação deriva em dois núcleos. Em um deles, a dupla compreensão da técnica, como concebida originalmente e sua verificação mediante aplicação das leis da física na alta complexidade própria à multipolaridade do corpo humano; no outro, situa-se a compreensão da manifestação cultural, de seus elementos estéticos, influência histórica e a metafísica que orbita e influencia o que hoje temos por “arte marcial”.

Nisso há elemento de verdade incontornável, pois a técnica que não atinge o seu objetivo primordial deve ser descartada, ainda que impregnada de longa tradição no seu manuseio. Não há verdade na técnica ineficiente, e essa verdade constitui alicerce fundamental de toda a concepção cultural, que não pode estar fundado na mentira.

Wakatakakage projeta e derrota Kiribayama no Torneio de Sumô de Nagoya © Kyodo

Nesse quartel da história, em que conhecemos as leis da física pelo aprendizado no ensino fundamental (ou pelo menos deveria ser assim), não é mais possível dissociar a arte marcial da ciência, quando esta é o repositório das regras que todos devemos seguir, mesmo quando com elas não nos achamos de acordo.

Há uma certa escravidão inescapável do ser vivo às leis da física, aquelas que presidem as ações humanas na mecânica mediana do sistema gravitacional.”

As leis humanas, as normas jurídicas, não são perenes, obedecendo sempre às conveniências e aos critérios de seu tempo, podendo – como efetivamente são – ser alteradas tão logo a realidade pela qual foram concebidas deixa desistir.

Mas isso não se dá com as leis da física, perenes e imutáveis, pelo menos dentro do espectro de sua atuação – ignorando-se aqueles fenômenos microscópicos do mundo subatômico, como também os macroscópicos das altas energias do cosmos (como nos buracos negros), universos nos quais vigoram outras leis ainda não totalmente conhecidas.

Há uma certa escravidão inescapável do ser vivo às leis da física, aquelas que presidem as ações humanas na mecânica mediana do sistema gravitacional.

Passado o período em que prevaleceu o conhecimento intuitivo, ou a tentativa de compreensão empírica dos fenômenos, deixando por herança toda sorte de técnicas que até hoje desenvolvemos, parece ser chegado um momento de compreender com exatidão a genética física de cada movimento e quais as leis que nela interagem, pondo esses comandos, concebidos por alguma deidade ou pelo acaso universal, em favor daquele que pratica e aplica sua técnica.

O praticante atual, antes de tudo, deve se pôr a par das leis da física, entender profundamente como funcionam os mandamentos de Isaac Newton, nas três leis fundamentais por ele formuladas; saber que a prática da arte marcial somente é possível no ambiente gravitacional, e estar ciente de que a gravidade é uma das quatro forças que comandam o Universo (somada à eletromagnética e às forças nucleares fraca e forte).

É da atração gravitacional que tudo surge, e o praticante deve entendê-la para executar com eficiência o seu mister. E essa compreensão deve necessariamente transcender o elemento meramente teórico.

O praticante, o budoka, é o artista do próprio corpo, nele imprimindo a estética da sua efêmera arte, que se cristaliza no átimo da sua execução, ainda que, atualmente, os mesmos mecanismos tecnológicos que nos dão acesso ao conhecimento também sejam aptos a eternizar os movimentos, mas que acabam arquivados e perdidos nos bilhões de terabytes que a esmo navegam pelo mundo virtual.

Saber de si é o elemento essencial a quem pratica, e não é possível sabê-lo sem conhecer profundamente o entorno, o ambiente e a atmosfera em que se vive. A ignorância jamais foi elemento constitutivo de qualquer cultura, que até pode prevalecer por maior ou menor interregno de tempo, mas não sobrevive ao calor da luz.

Fernando Malheiros Filho
é professor de karatê-dô, historiador
e advogado, especialista em direito
da família e sucessões.