18 de novembro de 2024
Budô: da não-mente (mushin) ao não-movimento
A doutrina do não-movimento explica por que, mesmo desconhecendo seus motivos, experientes professores investem tanto no relaxamento ao ministrar as suas aulas
Por Fernando Malheiros Filho
26 de setembro de 2022 / Curitiba (PR)
A densidade das especulações filosóficas em torno do mushin em muito transcende os limites destas rápidas linhas. Aos interessados aconselho, entre muitos outros, a leitura de A doutrina da não-mente, de D.T. Suzuki. Simplificando, mushin (無心) é a expressão resultante dos dois ideogramas, o primeiro (mu), o vazio, e o segundo (shin), o coração, o espírito ou a mente. Daí significar “mente vazia”, mas cuja caracterização ainda pressupõe a existência da mente e, com ela, todas as suas propriedades. Por esse motivo, muitos estudiosos do zen budismo preferem o estado de não-mente, ou o contrário da mente.
O tema é complexo e, como se sabe, o zen budismo é impenetrável à mera especulação intelectual. Exige a experiência mesma na prática, e para isso indispensável percorrer o “caminho” (dô – 道) até o objetivo final, talvez o satori, a “iluminação”, ou quaisquer outras palavras que possam se aproximar do significado desejado, mas que, nas limitações idiomáticas, sempre estarão aquém do conceito profundo.
A não-mente (mushin) é, pois, o estado em que a mente (ou sua negação) torna-se imperturbável, despoluída dos elementos que a inquietam, em especial as pulsões (medo, terror, angústia, incerteza, intranquilidade, ansiedade) e os desejos (vícios, sexo, riqueza, poder, grandeza). Nesse estado a “verdade última” se impõe, e não a vemos (ou a deixamos de ver) pelo filtro poluído dos sentimentos.
A discussão é profunda e, por séculos, vem pondo em polos opostos homens do pensamento oriental. Poderia a mente se transformar no seu contrário? E o que é a mente senão consequência da química cerebral? Como dicotomizar mente e cérebro e entender o que diferencia essas duas categorias? Pode o concreto (cérebro) produzir o abstrato (mente) e esta abstração negar a si mesma como se dá com o mushin?
Essas especulações não se resolvem em soluções satisfatórias. Mas assim é em parte da filosofia oriental, em particular com o zen budismo, ocupado em desenvolver a convivência com os paradoxos, os absurdos. Não por outra razão, os exercícios zen budistas, koan (公案), buscam gerar a “grande dúvida”, que inquieta a mente, resolvendo-se a inquietação por meio da percepção transcendente.
O zen budismo ganhou grande aceitação no Japão samuraico provavelmente por sua doutrina do desapego a tudo e, consequentemente, à vida, muito útil na sociedade medieval beligerante para a formação de soldados (servos) que tivessem por norte moral a obediência irrestrita e a aceitação plena e tranquila da morte.
Finalmente, a partir do século XVI (na contagem ocidental do tempo) as lutas terminaram; reinou a paz, ainda que forçada pela autoridade do shogun (Período Tokugawa), e as artes marciais foram convertendo-se, paulatinamente, do exercício guerreiro à prática educacional, quando trouxessem junto a forma zen budista de ver o mundo.
As artes marciais converteram-se em caminho (dô) no sentido filosófico da expressão, exercitando os métodos e, por assim dizer, os valores dos quais se achavam impregnadas, entre eles o mushin, ou a não-mente.
Em termos práticos, a não-mente pode representar a limpeza de tudo que, na mente, é capaz de perturbá-la. Não se trata de agregar, acumular, somar, mas de retirar, subtrair, remover. A mente pura (não-mente) está presente em todos, mas poucos são capazes de filtrá-la a ponto de dela retirar tudo que a inquieta. Ela estará equilibrada não pelo acréscimo de conhecimentos, mas pela remoção de sentimentos.
A velha analogia com a estátua e o escultor sempre é útil na compreensão desse fenômeno. A estátua já estava presente na pedra bruta antes que o escultor passasse a lapidá-la. Cabe a este remover os excessos até que a figura da escultura possa ser percebida.
As críticas são muitas, acusando-se tal prática de niilismo ou quietismo, mas enfrentar tais críticas não representa o objetivo destas escassas linhas. O que se pretende é estudar a influência de tais vetores filosóficos na prática física, partindo da premissa de que inegavelmente estão presentes, até porque não seria de se esperar que tradição filosófica tão profunda e difundida deixasse de ter influência no desenvolvimento dos movimentos e suas técnicas.
Essa perspectiva é indelével, notadamente na prática das artes marciais japonesas. Ainda que não se possa detectá-la no discurso de mestres e professores, está lá sobranceira a quem estiver disposto a vê-la, para isso se utilizando do mesmo mecanismo que resulta na percepção da não-mente.
Assim como a mente natural, o corpo humano está submetido às leis da física e ao ambiente onde se acha atuando, na intrincada correlação entre a posição mental e a ação de músculos, ossos e articulações, sobre elas incidindo as forças do universo. Entender esse conjunto de influências, abstratas e físicas, está na raiz do que se pode chamar de “doutrina do não-movimento”, exatamente como acontece com a sua irmã, a “doutrina da não-mente”.
É comum ao praticante, ao principiante, especialmente ao jovem, munir-se de sua juventude, imprimindo forte ação muscular nos movimentos, como se o simples desejo de produzir energia, e depositá-la em determinado ponto no espaço, fosse capaz de elevar sua eficiência física, a despeito das forças e das leis que governam o mundo físico.
Aqui a principal contribuição das doutrinas zen budistas para o estudo do movimento como compreendido pelas artes marciais, em especial as japonesas. O movimento, tal como a mente, deve ser despoluído dos sentimentos em sua execução. As forças da natureza são suficientemente intensas, bastando conhecê-las, permitindo ao corpo obedecer a elas para assim produzir a ação humana de forma muito mais eficiente do que aquela que possa ser motivada pelo sentimento.
A doutrina do não-movimento destina-se exatamente a compreender esse conjunto de forças e, em consequência, depurar o movimento até que seja encontrado aquele que está sintônico com as forças maiores que regem o cosmo.
Por isso, a força muscular e as tensões são quase sempre desdenhadas pelas técnicas nas artes marciais, pois em geral são produzidas de forma contrária às leis da natureza, não incrementando o movimento desejado, mas, ao contrário, contendo-o, com resultado inverso àquele pretendido.
A doutrina do não-movimento explica por que, ainda que alguns desconheçam os seus motivos, experientes professores de artes marciais investem tanto no relaxamento ao ministrar as suas aulas aos alunos, tentando deles retirar as tensões desnecessárias, que sabem, por intuição, serem letais ao movimento desenvolto, ao contrário do que possa parecer àquele que nunca dedicou sua reflexão ao sentido final das coisas e dos fatos.
Os músculos humanos – e a fisiologia do corpo –, ao contrário dos de outros grandes mamíferos, não foram dotados pela natureza de força excepcional, apenas aquela necessária para desenvolver os movimentos, não restando alternativa, àquele que pretender ser eficiente, senão observar como as forças cósmicas atuam, quais suas consequências na estrutura corporal humana e como otimizá-las em favor do movimento desejado.
Qualquer ação humana física que empreenda movimento com vetor contrário às leis da natureza estará previamente fadada ao fracasso. O movimento em si representa essa luta entre o corpo e as leis que dominam o universo, não havendo mais qualquer dúvida de que a que lado caberá sempre a vitória. O não-movimento está a serviço dessa descontaminação ou purificação. Tal como no fenômeno da não-mente, não se acrescenta ação, retira-se.
O vitorioso desse embate será aquele que souber compreender a interação das forças físicas com as estruturas do corpo humano nos seus mais recônditos detalhes. E, para isso, o translado da doutrina da não-mente (mushin) para o universo físico não representa mera alternativa, mas a única solução.
Fernando Malheiros Filho
é professor de karatê-dô, historiador
e advogado, especialista em direito
da família e sucessões.