Budô e o paradoxo que permeia a relação do lutador com o professor

O verdadeiro desafio que se apresenta é fazer transcender a prática marcial, desde os tatamis e os dojôs à vida de cada um dos praticantes e de todos aqueles que os primeiros poderão transformar com os seus conhecimentos © Svklimkin/Unsplash

A incongruência reside justamente nas qualidades que são exigidas do lutador e do competidor em contraste com aquelas que devem estar presentes no instrutor, no professor ou no mestre

Por Fernando Malheiros Filho
5 de outubro de 2022 / Curitiba (PR)

Miríade de paradoxos envolve a prática marcial. E tudo tem princípio em sua própria natureza: a arte da guerra, ou arte da morte, transmuda-se na arte da vida quando encontra sua vocação educacional, destinando-se à formação dos praticantes, dotando-os daqueles elementos que somente ela pode trazer ao corpo e, principalmente, à mente.

O paradoxo de que aqui trato não é de menor importância, e advém da forma como as artes marciais vão sendo difundidas pelo Ocidente desde que deixaram a raiz originária no centro do Oriente.

Afastando-se da condição de método de matar, como é da natureza da guerra, as artes marciais ganharam grande prestígio, ainda mais no período posterior à Segunda Guerra Mundial, quando chegaram ao Ocidente. Foi então possível aos daqui experimentarem os seus benefícios, algo que não seria alcançável senão por meio da sistemática educacional, com a formação inicial de praticantes, de lutadores e até de competidores. Entretanto, desejando perseverar no exercício da arte ao atingirem idades mais avançadas – incompatíveis com as competições – transformam-se em instrutores, professores e finalmente mestres, quando levam até as últimas consequências o caminho marcial.

O paradoxo reside justamente nas qualidades que são exigidas do lutador e do competidor em contraste com aquelas que devem estar presentes no instrutor, no professor ou no mestre. Daqueles se exige impetuosidade, agressividade, impulsividade, grande capacidade física, foco mental exclusivamente no adversário. Já as características próprias ao professor estão no lado oposto: a capacidade de reflexão, a introspecção, os raciocínios elaborados, a transmissão dos pensamentos pela fala, a percepção ampla de toda a realidade do entorno e demais aptidões daquele que ensina.

Esse vem sendo o grande desafio civilizacional que se apresenta à prática das artes marciais: qual é o processo de conversão próprio para transformar o impetuoso lutador no reflexivo professor?

Nessa dificultosa tarefa gerações vão tentando construir o método mais seguro para atingir o objetivo. Pouco ou nada sobrará daquilo que foi transferido do professor ao praticante, eventualmente lutador e competidor, se quando de sua profissionalização não souber transferir às gerações futuras aquilo que aprendeu, principalmente aquilo que pôde agregar, após o aprendizado com seu professor, por sua própria experiência.

“O grande desafio que se apresenta à prática das artes marciais: qual o processo de conversão próprio para transformar o impetuoso lutador no reflexivo professor?”

Essa dicotomia entre o lutador e o professor está longe de ser superada, mas, após muitas gerações de praticantes, formados desde que as sementes do Oriente aqui chegaram, já se nota a acentuada preocupação no sentido de que os professores, que haverão de formar outras gerações de praticantes e alunos, devem deter capacidades muito além daquelas que os notabilizaram ao lutar ou competir.

Ainda que o fluxo natural da profissionalização daquele que um dia foi lutador ou competidor caminhe no sentido de ministrar aulas para os alunos que granjeará em sua escola, e assim dar curso à transmissão geracional, já sabemos que o lutador não se transformará em professor pelo simples fato de desejar seguir esse mister.

O conhecimento não se forma e desenvolve por impulso, este é útil para a peleja, mas inútil para o desenvolvimento cultural © Daniil Zanevskiy/Unsplash

O processo adaptativo é longo e penoso. O lutador preocupa-se exclusivamente com a sua performance física – e mental, ao lutar –, enquanto do professor se exige entendê-la, fenômenos absolutamente díspares. O entendimento exige daquele que o produz a imersão no processo de conhecimento, que não se opera senão mediante distanciamento, ainda que meramente abstrato, entre o observador e o objeto observado (epistemologia).

Será necessário ao professor, além de observar o seu entorno e tentar teorizar, usando os conhecimentos disponíveis e sua própria experiência, as causas e razões pelas quais as coisas e os fatos são o que são, distanciar-se dele mesmo para procurar entender, e finalmente conhecer, o seu papel neste processo nitidamente cultural.

Desafortunadamente a prática física, por si só, não é suficiente para alcançar tal conhecimento, justamente aquele o qual, uma vez dotado o professor, poderá transmitir aos seus alunos.

O conhecimento não se forma e desenvolve por impulso, este é útil para a peleja, mas inútil para o desenvolvimento cultural. A formação do professor obedece a outros critérios, que têm raízes muito mais profundas e ficam apenas disponíveis com o amadurecimento e até mesmo o envelhecimento.

Essa formação do professor não ocorre por geração espontânea ou qualquer outro modelo imotivado de surgimento. É necessário fazer ver aos praticantes, àqueles que pretendem, no futuro, perseverar na arte marcial como profissão, que a semente do educador deve ser plantada desde cedo, estimulando-o no estudo, e não exclusivamente na dinâmica dos movimentos – que a arte marcial é movimento – mas na sua origem técnica e cultural, as forças que governam o fenômeno, tanto da física como do extrato social.

O professor haverá de paulatinamente compreender, e desde o princípio, que a prática marcial não pode significar um fim em si mesma, mas método privilegiado de formação do ser humano, instrumento a ser utilizado, inicialmente, no autoconhecimento e, depois, no conhecimento dos demais e do mundo que nos cerca.

E esse é o verdadeiro legado que cada professor e mestre haverá de deixar aos seus alunos, pouco importando o grau de domínio das técnicas que uns e outros poderão experimentar, elemento de menor importância na perspectiva da formação integral do ser humano. Caber-lhes-á mais saber o sentido profundo de sua prática do que exercê-la em alta performance, objetivo somente acessível àqueles que dispõem de tempo, energia e capacidades necessários ao domínio pormenorizado de toda a gama de técnicas e de movimentos que compõem o enorme, e quase infinito, cardápio das artes marciais.

Esse é o verdadeiro desafio que se apresenta: fazer transcender a prática marcial, desde os tatamis e os dojôs à vida de cada um dos praticantes e de todos aqueles que os primeiros poderão transformar com os seus conhecimentos.

Fernando Malheiros Filho
é professor de karatê-dô, historiador
e advogado, especialista em direito
da família e sucessões.