Budô: em busca do nada!

Com o avanço da física e da química descobriu-se que a divisão do mundo nos cinco elementos é imperfeita © Norbert Kowalczyk / Unsplash

A mente vazia, ou “não-mente”, é o estado essencial e primordial de lucidez. Por ele o praticante sabe de si mesmo e do entorno, daqueles que o cercam, sem outras influências

Por Fernando Malheiros Filho
31 de agosto de 2022 / Curitiba (PR)

Desde a Antiguidade o ser humano manifesta o desejo de entender a si mesmo e a seu entorno. Não se trata de mera curiosidade, mas de conhecimento com efeitos práticos fundamentais. Essa compreensão passou pela categorização do mundo exterior. Os antigos, no Ocidente e no Oriente, compreendiam o mundo físico com sua distinção entre terra, água, ar e fogo. Depois, tentando situar os fenômenos metafísicos, apontaram para o éter. Daí surgiu a ideia do quinto elemento, ou quintessência, posteriormente desmoralizada, pelo menos em sua formulação original, pelas descobertas da ciência nos últimos cinco séculos.

Com o avanço da física e da química descobriu-se que a divisão do mundo nos cinco elementos é imperfeita. A tabela periódica identifica mais de cem elementos disponíveis na natureza ou criados artificialmente. A mecânica quântica prospectou o funcionamento atômico, e nem mesmo a percepção de que o átomo (tem origem no grego ἄτομος, “indivisível”, formado a partir de ἀ- a-, “não” e τέμνω e temnō, “cortar”, ou seja, aquilo que não se pode dividir) era a unidade fundamental sobreviveu; nele foram descobertas múltiplas partículas subatômicas.

O fato é que o nada absoluto não existe. Mesmo no vácuo completo, que se pode emular artificialmente ainda que na superfície terrestre, as forças do universo continuam atuando: a gravidade e as ondas eletromagnéticas estarão nele. Principalmente, o nada total e irremissível resultaria na inexistência de qualquer ser com cognição que pudesse percebê-lo.

No Oriente, à noção dos quatro elementos, acrescentou-se o vazio ou o nada. Na icônica obra sobre estratégia, Miyamoto Musashi construiu os capítulos em torno de cada um dos elementos, assim intitulando seu livro: Go-Rin No Sho, normalmente traduzido como o Livro dos Cinco Anéis. Manifestava ali a influência zen e xintoísta e a cosmovisão daquela época.

A mente vazia, ou “não-mente”, é o estado essencial e primordial de lucidez © The Dojo

Quando trata do vazio, o célebre samurai desce aos aspectos da condição mental do guerreiro, falando também do coração que, na época, era tido – em todo mundo – como o centro das emoções. Mais do que um elemento da física, como o vácuo, o vazio é aquele estado mental em que o praticante se torna imperturbável em direção ao caminho que deverá trilhar.

No karatê-dô a etimologia integra-se ao conceito de vazio por meio do ideograma Kara (空). Originalmente, mas com a mesma fonética, era conhecido como “mão chinesa” (唐 手, literalmente “mão da dinastia Tang”) em kanji.

A alteração ocorreu por volta de 1935, pelo homófono que significa mão vazia (空手), mantida a sonoridade original. O uso primitivo da palavra “karatê” é atribuído a Ankô Itosu, que escrevia “唐 手”. A Dinastia Tang da China terminou em 907 d.C., mas o kanji que a representa permanece em uso na língua japonesa, referindo-se à China em geral.

É provável que a alteração tenha ocorrido devido à transferência da arte marcial de Okinawa para o arquipélago central (Ryūkyū), local em que, mercê dos milenares conflitos com a China, não gozava de prestígio.

O vazio do ideograma Kara não significa necessariamente o uso das mãos desarmadas, o que se sintoniza com o período em Okinawa (Rei Sho Hashi) no qual foi proibido o uso de armas. A ideia transcende às mãos sem armas e volta-se para o estado mental, único ambiente em cuja atmosfera, pela abstração que envolve, é permitido o vazio pleno.

O vazio e o nada são onipresentes na filosofia nos dois lados do planeta. Sobre o tema Jean Paul Sartre escreveu seu clássico O Ser e o Nada (L’être et le Néant – Essai d’Ontologie Phénoménologique). Ainda que o filósofo francês, de extração conhecidamente comunista e materialista, tenha associado o nada ao niilismo e nisso a crítica à concepção que ele encerra, sua preocupação com o elemento, isso no curso da Segunda Guerra Mundial, em 1943, revela a relevância filosófica do fenômeno.

O nada que importa não é o físico, embora este também permita espaço infinito de especulação científica, começando pelo nada anterior ao tempo. Na visão moderna da astrofísica, o universo nasceu de uma singularidade original e sua expansão, fenômeno que se convencionou chamar de Big Bang. Antes era o nada absoluto; nada da matéria, nada do espaço e nada do tempo.

O nada é próprio à condição humana: viemos dele e para ele voltaremos, pelos menos na perspectiva da existência. O nada é constitutivo e se reflete na posição mental. É essencial à meditação e à prática escorreita do autoconhecimento, objetivo último da filosofia em todos os quadrantes do mundo, disso não divergindo, senão quanto ao método, das artes marciais.

O nada é essencial ao “mushin” (無心), ou a arte de esvaziar a mente, tão vital à limpeza mental e moral © Instagram / Neusa Bronguel

O nada é essencial ao “mushin” (無心), ou a arte de esvaziar a mente, tão vital à limpeza mental e moral. A mente contaminada pelas toxinas dos sentimentos contraditórios e errantes transforma o corpo e o espírito de seu portador em representação externa dos insuperáveis conflitos internos.

Não se pode confundir a mente vazia com a mente ociosa. O vazio é o estado que se busca pelo uso superlativo da própria mente, para atingir o estado de “não-mente”, enquanto a ociosidade mental é a semente de todos os vícios. A mente não suporta sua própria ociosidade. Não sendo treinada constantemente a se esvaziar, encher-se-á do que há de pior.

A mente vazia, ou “não-mente”, é o estado essencial e primordial de lucidez. Por ele o praticante sabe de si mesmo e do entorno, daqueles que o cercam, sem as nefandas influências dos sentimentos fugidios que tudo distorcem. O medo incontrolado haverá de transformar o adversário, por menor que seja, em monstro insuperável, enquanto o desdém da arrogância diminui-lo-á para muito aquém de suas potencialidades, tornando-o muito perigoso.

O nada mental, por isso, é algo a ser perseguido e, talvez, encontrado. Somente nele podemos nos aproximar da essência verdadeira e última de tudo que existe.

Fernando Malheiros Filho
é professor de karatê-dô, historiador
e advogado, especialista em direito
da família e sucessões.

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