Budô: Miyamoto Musashi, o estrategista

Miyamoto Musashi nasceu em 1584 e faleceu em 1645, com 61 anos © Pinterest

Musashi serviu-se da cosmovisão zen-budista, dividindo o universo fenomenológico em cinco reinos, anéis ou elementos: A Terra, a Água, o Fogo, o Vento e o Nada, cabendo a cada um deles o propósito de explicar um dos aspectos da luta

Budô
Por FERNANDO MALHEIROS FILHO
17 de junho de 2021 – Curitiba (PR)

Ao término da Batalha de Sekigahara (1600), os seguidores do clã de Toyotomi Hideyoshi, antes falecido, foram batidos pelos soldados de Tokugawa Ieyasu. Miyamoto Musashi achava-se entre os vencidos. Com apenas 16 anos (nascido em 1584), fora batizado na luta aberta. Provavelmente testemunhou o encarniçado combate entre os grupos desavindos, o sangue derramado, os esgares dos moribundos, as horrendas mutilações, a tragédia humana que sempre se ergue nos embates corpo a corpo em campo aberto. Antes, aos 13 anos, já se batera em duelo, vencendo o então famoso espadachim Arima Kihei.

Samurais em foto de 1800

A morte era companheira inseparável dos homens daquela época, incorporando-se à vida, notadamente dos samurais, introjetando em cada um a perspectiva da existência finita. Todos que estavam vivos deviam a sobrevivência à habilidade em lutar, mas principalmente ao acaso. Musashi tinha ciência disso. Reconhecia que seu êxito deveria ser debitado às suas habilidades naturais e à compreensão de que dispunha sobre os eventos de sua época, mas principalmente à sorte que o acompanhou quase até o fim da vida.

É largamente conhecido que Musashi, no caminho da perfeição de sua estratégia e técnicas, bateu-se em mais de 60 duelos, saindo em todos vitorioso, sempre lembrando que, na época, ao que vencia correspondia a morte do vencido.

Ilustração de samurai do Museu da Cultura de Lugano

Até os 30 anos, Musashi dedicou-se ao conflito físico, experimentando diversas estratégias, surpreendendo e vencendo os principais espadachins daquele tempo, alguns com golpes de bastão de madeira, enquanto o adversário derrotado servia-se de sua lâmina dura e afiada.

Já maduro, Musashi lutou, junto a seu filho adotivo, Miyamoto lori, na Revolta de Shimabara (1637-8), então ao lado de Hosokawa Tadatoshi, contra os camponeses rebeldes. Sua desenvoltura atraiu a atenção do suserano do distrito de Kokura, ao qual passou a servir como mestre de esgrima no castelo de Kumamoto.

Dessa tarefa Musashi somente se desvencilhou com a morte de Tadatoshi, a pedido de quem escreveu Heihô Sanjügo-jô, ou Os 35 artigos sobre a arte militar, embrião do famosíssimo Gorin no Sho.

Estátua de Miyamoto Musashi no santuário Hachidai-Jinja em Kyoto, no Japão

Morto Tadatoshi, Musashi, já experimentando os sinais do fim de sua existência, recolhe-se à caverna Reigandô, no monte Iwato, local em que desenvolveria seus exercícios espirituais, complementando os escritos que deixaria à posteridade.

Reconhecendo a morte que se aproximava, Musashi apressou-se em concluir o Gorin no Sho, entregando o manuscrito ao filho. Essa circunstância explica a falta de revisão em vários trechos e a repetição de argumentos, dificultado a leitura do texto, já impregnado pelo pensamento da época, pelas metáforas, pela cultura e pela introspecção do famoso samurai.

Ainda antes de falecer, Musashi dedicou-se a deixar o último de seus legados, o Dokkōdō, ou O Caminho da Solidão, os 21 aforismas que concentravam sua visão do mundo, começando por afirmar (1) “Aceite tudo como é” e concluindo (21) “Nunca se afaste do caminho”.

O caminho do guerreiro (Bushidô), era una doutrina de pensamento e comportamento que originou a lenda em torno dos guerreiros samurais

Miyamoto Musashi finalmente foi derrotado pela última adversária, falecendo em 1645, vítima de câncer. Contava 61 anos.

No Gorin no Sho, Musashi serviu-se da cosmovisão zen-budista, dividindo o universo fenomenológico em cinco reinos, anéis ou elementos: A Terra, a Água, o Fogo, o Vento e o Nada, cabendo a cada um deles o propósito de explicar um dos aspectos da luta. A Terra cuida da estratégia e da escola que criou, o estilo Niten Ichi Ryu. A Água, a advertência de que somente a prática constante aperfeiçoa o praticante. A Fogo trata da luta, e o Vento, das demais escolas. Finalmente, o Nada volta-se para aquilo que não tem começo nem fim, ou a aventura metafísica.

Ainda que o texto original possa soar incompreensível ao leitor atual, seu estudo cuidadoso revelará os detalhes fundamentais nos quais deve o praticante se deter. Musashi é minucioso, trata do movimento dos pés, do corpo, da postura das mãos, do olhar, da ação, da conduta mental. Distingue o que pode parecer indistinguível, mas se revela de importância transcendental na luta e na vida. Afirma que é necessário diferenciar olhar de ver, bater de golpear; lembra que se deve aprender a identificar o colapso, a que todos, em algum momento, estarão submetidos.

Fotografia de oficial japonês em Nagasaki 1868 – Foto doada pelo tenente da marinha G. Olrik

Não sem razão, as lições de Musashi foram elemento de reflexão aos japoneses vencidos na 2ª Guerra, incentivando a reconstrução do país em escombros ao final do conflito, servindo, posteriormente, de bússola para os homens de negócios, que se julgam os samurais da atualidade.

Mais do que tudo, Musashi haverá de ser referência para os praticantes de artes marciais, em especial as japonesas. Traduz o sentimento de sua época, a cosmovisão em que estava envolvido, mas finca profundamente os valores e constatações que, devidamente ajustados, servem a qualquer período. Afinal, a morte, parceira íntima dos samurais, é, e sempre será, o evento final da existência que justifica a vida.

Fernando Malheiros Filho
é professor de karatê-dô, historiador
e advogado, especialista em direito
da família e sucessões

Samurai com armadura – Foto doada pelo Dr. Johnsson 1925