Budô: o fundamento moral do seppuku

Há séculos os samurais desempenhavam importante papel na sociedade japonesa por meio do legado que perdurou por várias gerações © HMO

No sentido profundo, a arte da guerra é a arte da morte, e, paradoxalmente, a arte da vida. Viver, antes de tudo, é diariamente aprender a morrer

Budô
Por FERNANDO MALHEIROS FILHO
25 de maio de 2021 – Curitiba (PR)

Quando o general Oda Nobunaga (1534 – 1582) se viu cercado e traído em Honnô-ji, Kyoto (1582), pondo fim à própria vida pelo esventramento, não agiu de forma desesperada, mas obedecendo meticulosamente à tradição.

Não se conhecem com exatidão os detalhes do evento. Nem o corpo do célebre daimyo e chefe militar sobreviveu para dar tintas à história. Temos o relato e testemunho do padre jesuíta Luís Frois, que descreve os acontecimentos, narrando que Nobunaga foi traído por um de seus generais, Mitsuhide Akechi, que, movido por rivalidades acumuladas pelos anos, descumpriu as ordens do chefe e investiu, com sua força, contra o templo Honnô-ji, em que se achava o célebre general.

Samurai com espada, c.1860 do J. Paul Getty Museum © Imagem digital cortesia Getty’s Open Content Program

Nobunaga foi surpreendido lavando-se, sendo alvejado, nas costas, por flecha disparada pelos sitiantes. Logo também recebeu disparo de arma de fogo. Ainda assim deu combate com sua naginata (espécie de alabarda japonesa), mas logo percebeu ser inútil a resistência. Recolheu-se à sua antecâmara praticando o suicídio ritual. Antes ateou fogo ao templo, não restando vestígio de seu corpo.

Na ocasião, o guerreiro vencido não se viu em desespero, como ocorre com os suicidas dos tempos atuais, que normalmente preferem a morte rápida, com barbitúricos ou outros meios sem sofrimento. Movia-lhe a proteção de sua honra. Não haveria de ser humilhado pelos vencedores. Tinha um patrimônio moral a zelar, que transcendia à própria vida.

Não muito diversa era a atitude dos gladiadores na Antiga Roma, que cunharam a famosa expressão “Ave Caesar, morituri te salutant” (algo como: “Salve, César, os que vão morrer te saúdam”). Os lutadores sabiam de seu destino, e com ele estavam resignados. Provavelmente morreriam (Suetônio, que nos deixou escrita a expressão, descrevendo evento em 52 d.C., no lago Fucino, contou que o imperador Claudius, ao ouvi-la, teria respondido, “aut non”, isto é, “ou não”), e parecia melhor deixar este mundo envoltos de coragem a perder a vida de forma desprezível.

Castelo de Kiyosu, onde Oda Nobunaga estabeleceu residência por dez anos © Wikipédia

Em ambos os casos os que iam morrer enfrentavam a morte com altivez. Naqueles tempos, seja o século XVI de nossa era, quando Nobunaga praticou o seppuku, seja o primeiro século, no período clássico do Império Romano, não havia expectativa de vida longeva. Não bastassem os grandes perigos que habitavam aquele mundo belicoso, os que sobrevivessem às refregas ainda teriam de enfrentar as pestes, que avidamente consumiam vidas humanas de todas as idades. Era até sedutor morrer com glória.

Nessas mortes, o agente cumpria seu código moral, enfrentando-a com tenacidade. Daquele que pusesse fim à vida pelo seppuku, e não menos aos gladiadores no sanguinário campo de batalha, exigia-se enorme determinação e coragem. Afinal, cortar o próprio ventre, de um lado ao outro, suportando os esgares anteriores à morte, era sacrifício que somente poderia ser enfrentado pelos mais destemidos.

Em nosso tempo essa morte não passa de distante reminiscência histórica. Mesmo no Japão, com a Restauração Meiji, em 1868, a prática foi proibida. Restaram sua força moral e os valores que ela representa.

Legionários romanos © Angel Garcia Pinto

Atualmente é possível envelhecer com saúde. Os achaques da velhice podem ser combatidos pela medicina, e a morte cercada pelos mais próximos, no aquecido leito de nossos tempos, está distante das enormes dificuldades que desassossegavam nossos antepassados não faz muitas gerações.

Mas o código moral resistiu e tem como veículo a atual prática de artes marciais, herdeira remota daquele passado distante. Ao desenvolver técnicas de luta, e carregando a enorme bagagem cultural dessa modalidade, o praticante associa-se a seus pares no passado, revivendo aqueles dilemas que, com todas as reservas, somente podem ser experimentados nessa forma de exigência do corpo, elevando-se a acuidade até os limites do possível e da perfeição.

Na dimensão cósmica o tempo se conta em dezenas de bilhões de anos. Nessa perspectiva, o interregno da vida humana, entre o nascimento e a morte, não passa de átimo infinitesimal. E nossa espécie é a única dotada da capacidade de entender essa mortalidade.

No sentido profundo, a arte da guerra é a arte da morte, e, paradoxalmente, a arte da vida. Significaria insuportável esquizofrenia existencial aspirar que a existência física se projetasse pela eternidade (“memento mori”, ou “lembra-te de que és mortal”). Viver, antes de tudo, é diariamente aprender a morrer. No ponto, tinha razão o velho Sigmund Freud: “si vis vitam, para mortem” (“se queres viver, prepara-te para a morte”).

Oda Nobunaga, retrato do pintor jesuíta Giovanni Niccolo © Wikipédia

Fernando Malheiros Filho
é professor de karatê-dô, historiador
e advogado, especialista em direito
da família e sucessões.