15 de novembro de 2024
Budô: o mushin em Carlos Hathcock
Muchin representa a mente vazia dos sentimentos, enquanto o zanshin representa a percepção dos elementos externos e o fudoshin, a capacidade de estabelecer raízes
Budô
11 de maio de 2021
Por FERNANDO MALHEIROS FILHO
Curitiba (PR)
Ele não poderia saber da natureza e detalhes da missão que lhe seria confiada antes de aceitá-la; o risco de morte era tão alto que era considerada suicídio. O militar escolhido para tal empresa deveria aceitá-la voluntariamente, como impõem as leis da guerra. O escolhido, Carlos Norman Hathcock II, seria aerotransportado até as proximidades do acampamento Viet Cong. Desde lá, custando o tempo e o esforço que fossem necessários, deveria esgueirar-se na selva e vegetações rasteiras até encontrar o grupo militar com o propósito de abater o general no comando das tropas inimigas do Exército do Vietnam do Norte.
Corria o ano de 1966. O comando militar norte-americano e a CIA entendiam que a morte do general inimigo significaria enorme impacto moral nos combatentes do Norte, e o único militar capaz de, voluntariamente, apresentar-se à tarefa era Hathcock, que a essa altura fizera fama como atirador de elite, abatendo centenas de inimigos sem ser percebido, inclusive aqueles que foram mandados à sua captura. O Vietnam do Norte prometia, pela morte do americano, a estupenda gratificação de US$ 30 mil.
Sozinho – a presença de qualquer companheiro poderia despertar a atenção do inimigo naquela perigosíssima missão –, Hathcock, tão logo deixou o helicóptero encarregado de trazê-lo ao centro dos acontecimentos, paramentou-se, mimetizando-se com a selva vietnamita, acompanhado de sua Winchester modelo 70, calibre 30-06, com mira telescópica, sua companheira naqueles anos horrorosos de guerra.
Por quatro dias e três noites Hathcock rastejou em direção ao inimigo, lentamente, sempre com o corpo colado no chão. Qualquer movimento equivocado custar-lhe-ia a vida. Esteve tão perto das patrulhas inimigas que, por alguns míseros centímetros, um soldado inimigo não lhe pisou o corpo. Chegou a enfrentar, com estoica paciência, uma víbora do bambu, serpente peçonhenta que pode matar em minutos um homem adulto, que se arrastou pelo corpo inerme de Hathcock até deixá-lo respirar novamente.
Na manhã do quarto dia, estando aproximadamente a 700 metros do acampamento em que poderia encontrar o general a ser abatido, posicionando-se, Hathcock passou a explorar o cenário em busca de seu alvo, fazendo-o por meio do instrumento óptico que serviria à precisão do tiro. Ao encontrá-lo, sendo possível identificá-lo pela farda, e, principalmente, pelo gestual, Hathcock aguardou que o campo de visão estive desimpedido pelo corpo de outros militares que, à frente do general, impediam a precisão do disparo.
Entrementes, Hathcock acomodou sobre a sua Winchester os panos que impediriam o deslocamento de ar, abafando o ruído e a fumaça, dissimulando sua localização. Calculou a velocidade do vento, de vital importância em tiros a longa distância, e averiguou as condições atmosféricas, lentamente fazendo os ajustes no aguardo do momento decisivo que seu instinto de matador saberia identificar.
Hathcock era portador de aparato mental absolutamente incomum. Quando sumia na selva em busca de seus alvos, ingressava na “bolha”. Nada, naquele estado metal, poderia desassossegá-lo. Era como se o mundo exterior parasse: só importavam suas condições para o disparo e a posição do alvo. Mesmo com quatro dias de espera, sem dormir, urinando e defecando em seu uniforme militar, alimentando-se parcamente, Hathcock não perdeu sua aguda concentração.
Foi quando apertou o gatilho e imediatamente viu seu alvo tombar, provavelmente morto antes de o corpo ganhar o chão da selva: a inércia do tiro no peito explodiu o coração do general norte-vietnamita.
Imediatamente Hathcock empreendeu a fuga, servindo-se dos mesmos artifícios que o levaram até aquele ponto: o estado mental privilegiado. Deixou a selva sem ser encontrado pelo inimigo e chegou a salvo entre os seus.
Esse episódio, e vários outros, vividos e patrocinados por Carlos Hithcock, garantiram-lhe notoriedade. Foi biografado e sua celebridade rendeu-lhe muitas entrevistas no período posterior à guerra. Em uma delas, questionado sobre o estado mental utilizado nas suas operações, explicou: mushin!
Hithcock tinha contato com o conhecimento oriental e sabia do que falava; sabia da importância do mushin nas artes guerreiras do oriente. Provavelmente, também conhecia as categorias mentais correspectivas, o zanshin e o fudoshin.
O muchin representa a não-mente, isto é, a mente vazia dos inúmeros sentimentos que podem perturbá-la, enquanto o zanshin representa a percepção dos elementos externos que podem influir na atuação do guerreiro e o fudoshin, a capacidade de estabelecer raízes, mantendo o foco e a estabilidade mental e da posição, sem a influência dos fatores que possam instabilizá-la.
Hathcock dominava esses três elementos. Foi imperturbável enquanto caçava seus alvos humanos. Sabia controlar sua mente e identificar todos os aspectos externos capazes de representar perigo, não somente pessoal como também para sua missão.
Após duas temporadas no Vietnam, entre 1966 e 1967 e em 1969, teve o veículo militar em que era transportado atingido por mina terrestre. Ele não foi ferido na explosão, mas acabou gravemente queimado ao socorrer aos companheiros atingidos pela detonação e o incêndio. Faleceu em 1999.