17 de novembro de 2024
Budô: o professor e o aluno
A relação entre professor e aluno, preceptor e principiante, significa o vínculo do passado com o presente a imortalizar todos os valores desenvolvidos pela pertinácia dos que já se foram
Por Fernando Malheiros Filho
24 de junho de 2022 / Curitiba – PR
O Budô que chegou até nos difere, em muito, daquele que comandava o espírito dos samurais no Japão Medieval, ao tempo das guerras, no final do século XVI, que fez os guerreiros (Período Tokugawa) predominarem sobre os demais. Hoje não se vê, em qualquer parte do mundo, nem no Japão, homens munidos de suas afiadas e mortais katanas mutilando desafetos em nome da honra ultrajada. Tampouco pertence à cultura atual o hábito do autodesventramento para expiar, com o próprio sangue e vísceras, a humilhação do guerreiro desonrado.
Essas características do Budô, que nasceram com a organização da elite guerreira, perderam sua adequação e atualidade. Não fazem mais sentido nestes outros tempos em quase tudo, diversos. Ficaram, daquele edifício moral e ritual, o método, de ensino e de autoconhecimento, e alguns valores que transcenderam a ação do tempo, o que nos traz o sentido atual do Budô.
Nessa tarefa intergeracional, nesse processo verdadeiramente cultural, a relação entre o professor e o aluno, o mestre e o discípulo, o preceptor e o principiante, significa o vínculo do passado com o presente, a imortalizar todos os valores desenvolvidos pela pertinácia dos que já se foram.
Ainda somos, no Ocidente, carentes de melhor compreensão desse fenômeno. Nem todos têm a exata consciência, sendo praticantes de artes marciais, de seu papel como agentes culturais, como divulgadores e inoculadores, naqueles sob sua influência, daquilo que, por seu turno, receberam de quem os preparou.
Sabemos, por observação antropológica, a enorme influência da cultura – qualquer cultura – na formação dos seres humanos e na sua constituição anímica e moral, ambos elementos essenciais à possível felicidade e à alcançável plenitude. Essa construção identitária é essencial à sensação de pertencimento, a qualquer lugar, época ou povo, erguendo-se a partir da soma dos elementos sociais, históricos e antropológicos com o imparável sincretismo, quando os povos, mesmo originalmente autóctones, passam a ter contato com outros povos e culturas.
Hoje sabemos a influência do idioma português em muitos vocábulos japoneses, reminiscência da época das Grandes Navegações, quando os lusitanos chegaram ao Japão, lá deixando seu legado. Daquela época, mercê da cultura insular japonesa e alguma arrogância de ambas as partes, não ficaram marcas da contaminação cultural no sentido contrário, mas o pós-guerra (2ª Guerra Mundial), com o Japão invadido e derrotado, acabou por propiciar essa nova fonte de impregnação cultural, pela disseminação planetária das artes marciais japonesas. E já vão quase oito décadas desde que a rendição ao Comando Militar Americano no Pacífico abriu as portas para o mundo daquele universo hermético que, até hoje, nós, os ocidentais, tentamos decifrar.
Malogradas quase todas as tentativas de fazê-lo pelo simples exercício observacional e intelectual, restou-nos, pelo menos em parte, e por múltiplas razões, tentar agir e pensar como eles, como acontece na prática das artes marciais.
A essa altura já dispomos de gerações de professores formados nessa escola e de alunos que se tornaram professores, todos tentando emular a forma de ser da cultura estudada, mesmo que para a simples prática física de alguma forma de luta, que rapidamente descobrimos se tratar de algo muito maior do que a mera execução de movimentos coordenados e sincrônicos.
Sabemos que a prática mesma, a ação física, representa apenas mera roupagem superficial que encima o complexo organismo que a ela subjaz, e logo tentamos entender como ele funciona e como produziu, nos séculos anteriores, as técnicas que consagrou, certos de que o fenômeno que temos em mãos transcende o corpo, infiltrando-se na mente de quem pratica e na sua forma de ser e de ver a si próprio e ao mundo que o cerca.
Essa tradição não seria possível sem a figura celular da relação entre o professor e seu aluno. Mesmo inconscientes do movimento cultural que representam, formam-se como agentes da sua disseminação e perpetuação.
Por isso, e encontrando nesse universo todos os elementos necessários à sólida tradição cultural, cada vez mais parece necessário despertar para a importância da formação desses professores e de seus alunos, futuros professores, todos empenhados no encadeamento geracional, forma virtual de sobrevivência, conforto aos que ensinam e envelhecem, e têm consciência de que a morte física se aproxima, almejando transcender ao próprio fim.
Fernando Malheiros Filho
é professor de karatê-dô, historiador
e advogado, especialista em direito
da família e sucessões.