Budô: O professor e o aluno, o caminho e o objetivo

Todo aluno vê no professor uma resposta, e ele deve estar apto a razoavelmente provê-la © Freepik

Não cabe ao professor apontar o objetivo ao aluno. Cabe-lhe, exclusivamente, indicar o caminho e, assim, estimular o aprendizado

Por Fernando Malheiros Filho
16 de janeiro de 2023 / Curitiba (PR)

Cultura provém da remota raiz latina colere, que significa cuidar, cultivar, proteger, inclusive no sentido religioso (daí a expressão culto), enquanto tradição deriva, também do latim, de traditio, tradere, que significa entregar, passar adiante.

Esses dois conceitos se reúnem no fenômeno do aprendizado que se verifica entre os dois polos: o do professor e o do aluno. São ambos responsáveis pela propagação do conhecimento.

Basta olhar para qualquer ser vivo, desde os protozoários aos mamíferos, que, salvo as alterações nos genes à força da evolução, e que podem exigir milhões de anos, têm suas vidas exatamente como seus antepassados, sem alteração.

Coube aos humanos, diante de motivos até hoje não inteiramente conhecidos, reescrever, para si próprios, essa história. Reúnem o conhecimento adquirido e o legam aos descendentes, às gerações posteriores.

Essa polarização é essencial a qualquer vetor civilizatório, à propagação da cultura. Sem preceptores hábeis em difundir seu conhecimento, e discípulos ávidos em recebê-los, viveríamos como as milhares de gerações que nos antecederam, na selva.

Esse fenômeno educacional, próprio a qualquer disciplina, sabe ser ainda mais denso, pelo menos na minha perspectiva, no ensino das artes marciais, embora notáveis obstáculos se anteponham a essa peculiar modalidade de construção cultural.

O ensino militar não é privilégio do Oriente. Entre nós proliferam as escolas militares, embora dedicadas à difusão de todas as disciplinas do ensino médio e superior, não apenas aquelas relativas às instituições militares, com a ênfase naqueles aspectos relativos a esse tipo de grupo humano, passando pelo uniforme, a disciplina, os valores e a hierarquia.

Desafortunadamente, em fenômeno que felizmente parece que se vai desvanecendo, as artes marciais deixaram o Oriente e vieram deitar semente em professores inicialmente sem maior qualificação, nessa inexplicável rejeição que se alimenta ao militarismo, e a agressividade que o antecede.

“O avanço da civilização sempre representou a disciplina dos seus impulsos e instintos humanos. Para domá-los, não é possível negá-los. É mais frutífero enfrentá-los, emulá-los, e até correr parte dos riscos que representam. Afinal, não será possível viver sem correr riscos.”

Parece que necessitamos rever a cultura que nos fomenta relendo aquilo que nos deixaram como ensinamento os velhos romanos: “Se queres a paz, prepara-te para a guerra” (Si vis pacem, para bellum).

Essa agressividade natural do ser humano tem origem ancestral. Não é possível compreender a natureza humana sem entender profundamente essa característica, não parecendo razoável simplesmente negá-la, como se assim estivéssemos evitando todos os conflitos que, inumeráveis, habitam a história universal.

O avanço da civilização sempre representou a disciplina dos impulsos e instintos humanos. Para domá-los, não é possível negá-los. É mais frutífero enfrentá-los, emulá-los, e até correr parte dos riscos que representam. Afinal, não será possível viver sem correr riscos.

É justamente nessa interseção que atua o ensino das artes marciais. A origem é conhecida: no passado mais remoto, a paz forçada do período Tokugawa (1603-1868), no Japão, induziu a criação de escolas de espadachins. Após a Segunda Guerra Mundial, estando em escombros a Terra do Sol Nascente, os invasores norte-americanos viram as artes marciais, na sua forma então conhecida, como elemento de instabilidade, somente as admitindo por sua interação com a cultura local, como espécie de educação física nas escolas.

Em qualquer das hipóteses, aquilo que foi inicialmente idealizado para a guerra, e depois à defesa pessoal, transformou-se em elemento educador, difusor da cultura e da tradição.

Retornamos sempre à polaridade inicial: o professor e o aluno. Cabe ao primeiro reunir os conhecimentos necessários, e a experiência, para instruir o segundo, ciente da enorme responsabilidade que envolve tão relevante relação, essencial à difusão da cultura.

Deve o professor meditar sobre o papel que exerce, cultivar os valores que pretende transmitir e introjetá-los em seus alunos e entender como pode fazê-lo da forma mais proveitosa, compreendendo a interação entre o conhecimento que pretende transmitir e a vida em geral daquele que está a aprender.

Esse é o elemento fundamental para esse tipo de tarefa, lamentavelmente desdenhado, mas que a cultura haverá de superlativar pela importância de que se reveste.

É na transcendência daquilo que é transmitido que reside a maior importância do valor ensinado. Tudo na vida humana é passageiro, inclusive a própria vida, mas sobrevive à finitude quem, compondo elo da tradição, projeta-se no futuro, após sua vida, na experiência daqueles que beberam na fonte de sua sabedoria.

Não cabe ao professor apontar ao aluno o objetivo que ele deverá alcançar. Cabe-lhe, exclusivamente, indicar o caminho, facilitando o trânsito daquele que aprende, e assim estimulando o aprendizado.

Pode o aluno, ao ingressar em aulas de artes marciais, identificar seu objetivo, desde o mais imediato, com os conhecidos benefícios da atividade física (ainda mais aquela que trabalha por igual todos os músculos do corpo), o mediato, dominando as técnicas, aperfeiçoando-se física e mentalmente por meio delas, até o remoto e transcendente, munindo quem aprende de mecanismos poderosíssimos de autoconhecimento e de conhecimento da realidade que o cerca, apto a perseguir as respostas às profundas dúvidas que embasam a filosofia (O que somos? De onde viemos? Para onde vamos?).

Deve o professor, ao indicar o caminho ao estudante, estar preparado para apontar para qualquer um desses objetivos, sem, contudo, impô-lo, decisão que deve ficar ao alvedrio de cada um.

Essa tarefa, é necessário ressaltar, reveste-se da mais alta relevância e de não menor complexidade. Ao professor, desejando exercer à plenitude sua função, não resta alternativa senão o estudo profundo, e continuado, das variáveis que o cercam, entendendo o fenômeno no qual se acha envolvido, podendo explicá-lo a si mesmo e àqueles que nele procuram resposta às suas interrogações.

Para tanto, cabe ao professor saber transmitir em gestos, mas principalmente em palavras, o conhecimento que detém. Aquele que não sabe explicar minimamente o que conhece jamais poderá transmitir tal conhecimento.

Não será possível ao professor esquecer essa fundamental característica: todo aluno vê nele uma resposta, e ele deve estar apto a razoavelmente provê-la.

Nesse jogo existencial, não merecem menor importância o aluno em si mesmo e aquele que, já aprendendo, pretende um dia tornar-se professor, replicando essa equação que, por gerações, mantém a evolução civilizacional, trazendo-nos, apesar dos enormes percalços, até o presente em que vivemos.

A tarefa do professor – e do aluno – em se tratando de artes marciais, nesse ponto de vista, ganha musculatura, com reflexos imediatos e mediatos naqueles que praticam e que, ante si mesmos e o mundo exterior, poderão deambular com maior confiança, sabendo do esforço necessário para fazê-lo, mantendo o foco, aproveitando as oportunidades moralmente aceitáveis. Serão, ao final, melhores seres humanos, avaliação que somente é possível pela aferição dos valores culturais antecedentes.

Fernando Malheiros Filho
é professor de karatê-dô, historiador
e advogado, especialista em direito
da família e sucessões.

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