03 de setembro de 2025

No Budō está inserida e é indissociável a noção de caminho. Poucos têm isso em mente, mas andamos para a frente até o ocaso que sobrevém com a morte. Antes, porém, há muito com que se ocupar.
Envelhece-se a cada dia, a cada minuto, a cada fração infinitesimal do tempo, e de nada servirá esse caminho sem que possamos trilhá-lo na velhice, parte cada vez mais relevante da vida, mercê dos avanços no conhecimento da saúde humana. Todas as artes marciais, aos olhos destreinados, exigem vigor físico, dependem de massa muscular apta a movimentos vigorosos, contínuos e extenuantes. Mas será o fim quando as forças faltarem? Estou convencido de que se trata do começo.
Explico-me: trilhar um caminho com firmeza e determinação é mais do que executar movimentos, por mais perfeitos e simétricos que possam parecer. Cuida-se da aventura existencial, de saber exatamente o ponto em que estamos, a cada momento, nessa sucessão interminável de fatos, sensações e experiências que nos conduz pelo caminho até seu destino. Perde-se acuidade e força, mas ganha-se a experiência acumulada, o verdadeiro pavimento do caminho.
“Não há solução civilizacional sem a contribuição dos velhos.”
Vê-se, e já faz tempo, nos dojôs, as cabeças encanecidas daqueles que, apesar do tempo e das dificuldades que a cada dia se acumulam, resistem e seguem no esforço de ornar o caminho que escolheram. Isso não é pouco. E eles têm algo a fazer e a dizer para quem os quiser ouvir. Não há solução civilizacional sem a contribuição dos velhos. A própria civilização originou-se quando, por razões ainda não inteiramente conhecidas, aos avós foi possível coabitar com os netos e ensinar-lhes as características do caminho.
Neste caminho (Dō), os pés cansados do velho aguardam a impulsividade dos novos para palmilhá-lo. Cabe aos velhos conter essa sofreguidão juvenil, permitindo aos jovens envelhecerem com segurança e adequação. Por isso, essa eleição do caminho se reveste de tanta importância. Escolher o caminho é, com o perdão pelo pleonasmo, escolher “um caminho sem volta”. Ingressamos na vereda frequentemente sem perceber que, em algum momento, a escolha foi feita; e assim prosseguimos por anos, ao longo da senda uma vez escolhida. Não é possível retornar; não haveria existência suficiente à frente para fazê-lo. Resta-nos seguir.
Quando se escolhe o caminho marcial (seria mais adequado dizer que fomos escolhidos, mas aí em um plano metafísico que não ouso transpor), ele se incorpora, investe-se na existência de quem o trilha. Tudo passa a ter relação com o centro da estrada; é nela que encontramos os sentidos das coisas que nos orbitam; é por ela que forçamos as analogias para compreender os obstáculos que enfrentaremos à frente. É nesse longo caminhar que reunimos determinação para ir, ir em frente.
Assim tenho visto, do alto de minha experiência cinquentenária no caminho, todos os que deambulam por estes meios, ora prazerosos, constantemente difíceis, árduos e penosos. É função do caminho esculpir o espírito de seus transeuntes. Cabe-lhe impor os rigores da experiência vivencial; treinamentos amolecidos formarão espíritos porosos e vulneráveis. E não que a simples rudeza explique tudo, bem longe disso. As asperezas do caminho não se impõem exclusivamente ao corpo extenuado.
Com a velhice, quando os cabelos embranquecem, essas exigências ao corpo vão perdendo o sentido, na exata medida em que não mais poderão ser atendidas. É o tempo da reflexão, da contrição, da meditação, da construção do cenário mental que poderá ser transmitido aos jovens que tiverem a prudência de dar ouvidos ao velho que lhes quer falar. Os saltos civilizacionais sempre dependeram da sabedoria e do conhecimento acumulados. Uma geração parte do ponto deixado pela anterior, e a esta cabe sedimentar a experiência vivida, deixando “escrito” aquilo que os pósteros haverão de ler. E ai daqueles que não se ocuparem dessa leitura: regredirão.
“Sabe-se que o caminho liberta, mas também aprisiona. Liberta porque nos faz aceitar o destino; aprisiona porque sabemos não haver alternativa.”
O caminho é isso: esse vezo, essa rotina, esse kata, essa constante luta contra os maus sentimentos, esse domínio da mente ociosa. No caminho, alguns vão à frente e desbravam. Cabe-lhes orientar, conhecer, sistematizar, tornar mais plano o caminho aos que vêm logo atrás, e assim sucessivamente, pela eternidade. Sabe-se que o caminho liberta, mas também aprisiona. Liberta porque nos faz aceitar o destino; aprisiona porque sabemos não haver alternativa.
Caminhamos em frente, sempre, depurando cada movimento e aprendendo que, antes de qualquer movimento, existe um pensamento; e que é este que temos o dever de aperfeiçoar. Caminha-se na busca do ideal estético dos movimentos e de sua pureza técnica com eficiência, mas nada disso realmente importa. O que é relevante não é uma ou outra dessas características, mas o ato de caminhar. Somos sencientes e sabemos o que nos aguarda; temos, por mais que tentemos negar, consciência do fim inevitável. O caminho é o remédio, amargo talvez, que nos permite mantermo-nos eretos até o fim.