Budô: técnica e energia espiritual (Ki)

Ki é a força da vida, a energia imaterial onipresente que no seu fluxo anima todos os seres vivos e permeia o Universo, ligando todas as coisas © Dauchsy Meditations

O Ki deriva do aperfeiçoamento interior do praticante, do autoconhecimento obtido por meio da prática e do consequente conhecimento do mundo exterior

Por FERNANDO MALHEIROS FILHO
19 de julho de 2021 / Curitiba (PR)

No exercício conceitual é comum que confundamos categorias afins, mais ainda quando elas se ligam por naturais intersecções. Essa interpenetração permite, com frequência, que as características de uma categoria possam ser observadas na outra. São expressões do mesmo – e mais amplo – fenômeno.

Aliás, essa categorização foi criada pela inteligência humana justamente para entender melhor os fenômenos, tanto os que nos rodeiam quanto aqueles inatos e internos ao funcionamento mental do observador. A fenomenologia manifesta-se, quase sempre, de forma independente à da vontade de quem a observa.

As artes marciais, e no pensamento oriental de que elas derivam, não escapam à compreensão cognitiva aplicável aos demais campos de conhecimento. Criam-se e separam-se as categorias, classes ou gêneros (Ki, Kime, Kiai, Mushin, Zanshin, Fudoshin e múltiplas outras).

Mas para fazê-lo, antes de tudo, é necessário conceituá-las, daí o exercício conceitual a que acima me referi. É absolutamente impossível atuar em qualquer circunstância, e dessa atuação retirar os efeitos desejados, sem conhecer, o mais profundamente possível, os elementos sobre os quais pretendemos avançar com nossa atuação.

Nisso nos deparamos com a dicotomia técnica-energia espiritual (Ki), sendo indispensável antes conceituar os elementos desse dualismo. Técnica pode ser apertadamente resumida em “fazer o mais com o menos”. Melhor explicando, trata-se de perseguir determinado resultado produzindo-o com cada vez maior eficiência ao menor custo.

Não confundamos – o que parece também comum – esse fenômeno com o uso de máquinas, para as quais a aplicação maior de energia resulta em resultados melhores (por exemplo, acelerar um veículo automotor). Nas máquinas a técnica está embutida em sua fabricação, e com a evolução da tecnologia (do grego τέχνη — “técnica, arte, ofício” e -λογία — “estudo”) fazem-se cada vez máquinas mais eficientes, que funcionam com menor custo de energia.

O fluxo Ki sobre um organismo é diretamente proporcional à qualidade dos pensamentos e sentimentos do indivíduo © Sociedade Feng Shui

Muito diversa é a técnica de quem “pilota” as máquinas. A partir do mesmo artefato, comandado por indivíduos diferentes, teremos resultados discrepantes, dependendo da maior ou menor técnica de quem dirige a máquina.

Essa equação ganha complexidade quando a técnica deve ser desenvolvida e posteriormente medida no uso do corpo do praticante, pela interação natural entre a mente, que a tudo comanda, e os nervos, músculos e articulações, que obedecem. Nesse campo a técnica ganha dimensões exponenciais e, por vezes, paradoxais. Todo praticante experiente sabe que, no uso do corpo, a aplicação de mais energia não resulta necessariamente em resultados melhores como ocorre com as máquinas.

É necessário conhecer, diretamente ou por intuição, as leis da física aplicáveis ao movimento, e delas extrair o melhor resultado possível. No corpo, a aplicação direta da energia frequentemente resulta em contração e na redução cinética, com resultados manifestamente mais pobres. Professores experientes de artes marciais, muitos sem saber exatamente o porquê, cobram de seus alunos o relaxamento.

Esse tema, contudo, exige longas e aprimoradas digressões, não sendo esse o objetivo destas breves linhas, que se resumem a extrair o conceito de técnica para compará-lo com o conceito de energia espiritual (Ki).

A técnica bem executada faz parecer que o praticante domina o Ki, daí o risco de confusão entre as categorias: técnica e energia espiritual.

A energia espiritual (Ki) tem outras dimensões, atingindo até o patamar metafísico. Distancia-se da técnica pura e pode até existir sem ela, ainda que, na prática marcial, acabe por depender da técnica.

É preciso reconhecer que o Ki ou “energia espiritual” não se compreende bem nesta expressão idiomática entre aspas. Mesmo com a riqueza da língua portuguesa não é possível expressá-lo em palavras. Cuida-se de estado mental singular, intuição, compreensão, experiência acumulada, convicção, certo grau de certeza momentânea (ante as enormes incertezas existenciais), desapego, consciência da evanescência humana, e tudo mais que nele se poderá encontrar.

O Ki deriva do aperfeiçoamento interior do praticante, do autoconhecimento obtido por meio da prática e do consequente conhecimento do mundo exterior. Não há mágica, mas introspecção.

Ki é uma energia que circula livremente alimentando os ambientes e os seres deste fluxo de energia vital © Novaconsciência

Com mais clareza, o portador de boa ou excelente técnica, sem a necessária energia espiritual, não saberá usá-la quando for necessário, na luta, mas principalmente na vida exterior. Faltar-lhe-á a convicção de que é capaz de fazê-lo, faltando-lhe o Ki.

O Ki representa fenômeno de difícil apreensão àqueles que não o desenvolveram, e que por isso mesmo ficam tentados a confundi-lo com a técnica. Mas se trata de categorias muito diferentes, embora afins. A técnica é facilmente apreensível pela educação básica, mas somente será verdadeiramente útil àqueles que, depois dela, dedicarem-se ao desenvolvimento do Ki, para o qual não há técnica de aprendizado, apenas a prática sincera, honesta, continuada, na busca de reconhecer a essência do ser que habita o corpo de carnes, ossos e órgãos de que somos materialmente constituídos.

O célebre samurai Miyamoto Musashi, o ronin que vagueou pelo Japão do século XVI para testar a si mesmo, após vencer mais de 60 duelos, matando seus adversários, tentando decifrar sua natureza, em 1643 retirou-se para a caverna chamada Reigandō, no monte Iwato. Pela contemplação queria entender do que era feito: a natureza de seu Ki.

Fernando Malheiros Filho
é professor de karatê-dô, historiador
e advogado, especialista em direito
da família e sucessões