Carta a Jigoro Kano

Foto histórica do shihan Jigoro Kano em randori © Arquivo

Renomado professor kodansha do interior paulista relata ao criador do judô as mudanças que, paulatinamente, estão descaracterizando a modalidade criada em 1882

Por professor mestre Odair Borges
6 de novembro de 2022 / Curitiba (PR)

Caro shihan Jigoro Kano,

Posso dizer, com orgulho e satisfação, o privilégio que foi ter sido aluno de um de seus alunos, sensei Sumiyuki Kotani, em 1970, no Instituto Kodokan. Foi quem me fez entender o judô como modalidade de luta de alto valor técnico e educativo, envolto nas tradições do Bushido, primordialmente no aspecto competitivo, o perfeito entendimento do “seiryoku-saizen-katsuyo”. Naquela época eu ainda praticava, competia e compreendia o judô somente como uma luta altamente técnica com o objetivo de arremessar, imobilizar, estrangular ou, por meio de uma chave de braço, encerrar a luta com o sempre procurado ippon. 

Kano shihan, confesso agora que sua preocupação de 100 anos atrás – quando dizia que ” estavam criando regras demais e que muitos professores não estavam capacitados para o ensino do verdadeiro judô” – hoje ainda é preocupante no mundo todo. Bem, vou aqui tentar atualizá-lo: 

O fundamental ukemi já não se ensina do modo correto e na competição ninguém cai procurando salvaguardar seu corpo, como literalmente significa a palavra japonesa. Foi preciso até criar uma regra para penalizar o atleta que cai apoiando os dois cotovelos.

O kumi-kata, o mais importante dos fundamentos, é o que mais se evita fazer durante uma luta e, até em randori, a disputa e/ou evadir-se da pegada é observado desde a idade infantil. 

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Foram criadas regras sobre regras, levando os técnicos e atletas a se utilizarem de táticas para vencer por meio de penalidades. Países que praticam lutas semelhantes ao judô e que dificilmente terão oportunidade de ser incluídas no programa olímpico – como o sambo (Rússia), o chidaoba (Geórgia), o bkyukl bokh (Mongólia) e o kurash (Uzbequistão) – migraram para o judô influenciando sobremaneira as regras e a racionalidade do seu judô.

Hoje algumas técnicas que o shihan aperfeiçoou, contidas no gokyo, foram proibidas em competição. Será que foi em prol do judô ou em prol da mídia?   

Hoje qualquer técnica ou projeção é considerada válida e pontuada, pois se considera primordialmente a forma como se cai e não a execução de fato da técnica, sem contar os simples empurrões e os nefastos agarramentos.

Suas orientações dentro dos princípios do sem-no-sen, maai e o riai estão sendo esquecidas. A busca pelo ippon deixou de ser prioridade; só os japoneses, seguidores dos ensinamentos do shihan e poucos outros, insistem e ainda se dedicam ao aperfeiçoamento técnico e ao uso da racionalidade, o “Mind over Muscle”, título do livro do sensei Naoki Murata, um dos que também se preocupava com o judô atual.

O seu propagado “fazer bom uso da força” (ju-no-ri) está em desuso e decadente.

Por coincidência, no momento em que lhe escrevo, estou assistindo ao campeonato mundial realizado em Tashkent, no Uzbequistão. O judô praticado aqui no Brasil ainda tem algumas raízes deixadas pelos nossos abnegados primeiros professores japoneses. Obtivemos bons resultados pelo bom judô apresentado por dedicados atletas e respectivos professores/técnicos. Ficamos em segundo lugar na classificação geral das medalhas.  

Até o kumi-kata, o mais importante dos fundamentos está em desuso no shiai-jô © Arquivo

Voltando ao relato do judô competitivo como um todo, tenho observado medalhistas vencerem por penalidades, sem arremessar seus adversários. Aliás, isso vem acontecendo há pelo menos 30 anos. Árbitros avaliam e anulam técnicas aplicadas, e aplicam ou anulam penalidades dirigidos por uma mesa técnica. 

Será que as muitas penalidades por falta de combatividade é pelo pouco judô apresentado ou é realmente a severa arbitragem?

Kano shihan, tudo isso me preocupa, pois nossa modalidade, cuja característica principal é arremessar o adversário de forma técnica, com habilidade, maestria e perfeição, está se afastando do precioso Dô e retornando ao Jutsu.

Nós, professores abnegados no ensino do verdadeiro judô, somos gratos ao legado filosófico/educativo que o senhor nos deixou.

Muito obrigado, sensei.

Domo-arigato-gozaimashita

O professor mestre de judô e jiu-jitsu Odair Antônio Borges é professor kodansha 8° dan pela CBJ  e 7°dan no Instituto Kodokan, graduado em educação física, com mestrado em educação física pela USP, é professor universitário USP/PUC Campinas e ex-atleta da seleção brasileira de judô entre 1965 e 1975.

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