Com a morte de Yasutaka Tanaka, o karatê-dô tradicional mundial perde a sua maior referência

Yasutaka Tanaka o shihan do Brasil

Vivendo há 59 anos no Brasil, o professor shihan 10º dan, número 1 do mundo da ITKF, deixa centenas de faixas pretas formados, milhares de seguidores e um legado técnico e filosófico incomensurável para o karatê tradicional mundial

Memória
14/06/2018
Por PAULO PINTO I Fotos BUDÔPRESS e ARQUIVO
Rio de Janeiro – RJ

Nascido em Tóquio em 8 de outubro de 1936, sensei Yasutaka Tanaka viveu no Japão até os 6 anos, quando migrou para a China com sua família.

Após o fim da Segunda Guerra retornou para sua terra natal, onde se formou em comércio exterior. Foi na faculdade de Takudae que Tanaka conheceu o karatê diretamente com Masatoshi Nakayama, (13/04/1913-15/04/1987), professor shihan 10º dan e um dos mestres mais influentes da história do karatê Shotokan. Em 1932 Nakayama iniciou o famosíssimo treino de karatê na universidade de Takushoku, de onde viriam a emergir nomes como os de Hidetaka Nishiyama, Hirokazu Kanazawa ou Keinosuke Enoeda.

Em 1959 Yasutaka Tanaka desembarcou em Santos (SP), a bordo do navio Argentina Maru, e foi para Mogi das Cruzes, que na época era um dos maiores redutos da colônia nipônica no Brasil.

Ao lado de Tasuke Watanabe e Gilberto Gaertner, sensei Tanaka fazendo os últimos ensinamentos no Goshin de Setiba (ES) 2018

Em São Paulo reencontrou amigos como Juichi Sagara, renomado mestre do karatê, e aos poucos o grupo foi aumentando com a vinda de renomados professores japoneses, entre os quais Tetsuma Higashino e Sadamo Uriu.

Posteriormente Tanaka foi convidado pelo professor Lirton Monassa para dar aulas no Rio de Janeiro, onde em 1962 deu início ao segundo maior centro de karatê do Brasil, já que em São Paulo a modalidade caminhava com certa desenvoltura.

A partir de 1963 Tanaka promoveu competições extraoficiais da modalidade até que em 1968 foi realizada a primeira competição nacional, quando o karatê-dô ainda estava vinculado à Confederação Brasileira de Boxe.

Senseis Sagara, Tanaka, Uriu, Inoki, Watanabe e Kawamura, precursores do karatê em 1975 trouxeram o mestre Masatoshi Nakayama pela primeira vez ao Brasil

Finalmente em 1987 foi fundada a Confederação Brasileira de Karatê (CBK), e a partir daí a modalidade experimentou seu maior crescimento e desenvolvimento técnico.

Posteriormente houve a cisão do karatê no Japão e a fundação da International Traditional Karate Federation (ITKF), que resultou na criação da Confederação Brasileira de Karatê-Dô Tradicional, da qual Yasutaka Tanaka foi o primeiro presidente.

Em 2019 seria comemorado o 60º aniversário da chegada de Yasutaka Tanaka ao Brasil, e sua gigantesca obra neste período certamente seria rememorada. Sua atuação nos tatamis foi decisiva na implantação e o desenvolvimento do karatê no Brasil.

Ao lado de mestres como Juichi Sagara, Tetsuma Higashino, Sadamo Uriu, Hiroyasu Inoki, Yoshizo Machida, Taketo Okuda, Tadashi Takeuchi e Hayashi Kawamura, Yasutaka Tanaka disseminou a arte das mãos vazias em todo o território nacional, o que tornou o Brasil uma potência do karatê mundial hoje.

Gilberto Gaertner, Richard Jorgensen, Eligio Contarelli, Yoshizo Machida, Yasutaka Tanaka e Tasuke Watanabe no Masters Course 2017

Presidente de honra da Confederação Brasileira de Karatê-Dô Tradicional, sempre foi uma pessoa extremamente simples e fundamentada nos princípios do budô. Shihan Tanaka dispensou pompas, títulos, honrarias e formalidades. Quando perguntavam sobre sua graduação ele desconversava, já que para o experiente sensei a graduação de um karateca está em sua sabedoria e não na faixa que ostenta.

Yasutaka Tanaka atingiu o 10º dan da ITKF, e até o seu passamento, hierarquicamente ele era o número 1 da entidade no mundo.

Nas longas entrevistas concedidas por esta lenda dos tatamis à Revista Budô, fomos levados através da história do karatê no Brasil. Muitas coisas foram explicadas e desmistificadas, já que sua vida dentro e fora dos tatamis foi pautada nos princípios do Budô.

Por várias vezes shihan Tanaka lembrou que quando de sua criação o karatê era Budô e havia sido criado para a formação e o desenvolvimento humano. “Não se deve treinar para ganhar títulos e sim para desenvolver a mente, o corpo e o espírito”, pregava insistentemente Tanaka.

Shihan Tanaka arbitrando no brasileiro 2017

Sem saudosismo o mais graduado shihan de karatê do Brasil e do mundo afirmava que o karatê deveria transcender o universo esportivo.

“Quando o professor Hidetaka Nishiyama fundou a ITK, sua proposta visava a manutenção da essência do Budô em paralelo ao desenvolvimento esportivo.”

Mestres e dirigentes falam sobre a trajetória e o legado de Yasutaka Tanaka

Gilberto Gaertner, presidente da International Traditional Karate Federation destacou a importância da manutenção do legado deixado por mestre Tanaka.

“Tivemos o privilégio de aprender e conviver ao longo dos anos com um dos maiores mestres do karatê mundial. Mestre Tanaka personificava como poucos a expressão shihan, e era sem dúvida a nossa bússola, aquele que orientava o nosso caminho. Seu legado fica e é nossa responsabilidade preservá-lo em respeito à sua memória. Sem dúvida está sendo recebido pelos mestres Inoki e Sasaki. Nosso grande mestre se foi fisicamente, mas seus ensinamentos estão em nosso corpo e em nossa mente. Nosso grande samurai parte com sua missão cumprida, cabe a todos nós darmos continuidade à tradição”, disse o presidente da ITKF.

Com mais de 80 anos Yasutaka Tanaka ainda contribuía decisivamente na arbitragem

Há mais de 50 anos acompanhando a trajetória do mestre Tanaka, shihan Ugo Arrigoni Neto, 8º dan, seu aluno mais antigo em atividade, lamentou a morte do sensei que foi a sua maior referência técnica.

“Mesmo sabendo que a qualquer momento ele nos deixaria, é muito difícil assimilar uma perda tão grande. Com sua partida perdi a minha última referência dentro do karatê. Primeiro perdi com o passamento do Lirton Monassa, depois foi com o Inoki e agora o sensei Tanaka. Não tenho referência nenhuma dentro do karatê. O Tanaka aprimorou minha técnica. Com o Lirton aprendi a usar minha força e com o Hiroyasu Inoki potencializei a minha velocidade. Mas meu refinamento técnico e o de milhares de karatecas do Brasil foi executado pelo sensei Tanaka. Sua atuação foi determinante para a evolução do karatê-dô pan-americano, com maior ênfase, é claro, para o Brasil”, disse Arrigoni.

Yasutaka Tanaka com Ugo Arrigoni Neto, seu aluno mais antigo que hoje é shihan 8º dan

Iko Trindade, diretor científico da Confederação Brasileira de Karatê-Dô Tradicional, destacou que Yasutaka Tanaka possuía o dom de exprimir o verdadeiro significado da arte das mãos vazias.

“Falar no nome de Yasutaka Tanaka é buscar na memória aquela primeira lembrança de sua foto na revista O Cruzeiro dos anos 1960, um japonês que viera morar no Brasil e mostrava um pouco daquela arte marcial chamada karatê em fotos e texto. Isto foi o suficiente para que o meu interesse despertasse para nunca mais perder esta ligação. Acompanhar o mestre Tanaka sempre foi para todos nós do karatê-dô tradicional um momento de aprendizado, ora da mais pura técnica, ora de como viver de forma simples e direta, quando o sim era sim e o não era não. Tratava a todos de forma igual. Ao vê-lo ficava sempre feliz, simplesmente por poder participar de suas aulas, trocar informações ou estar no mesmo dojô, sabendo que ali havia o verdadeiro significado da arte das mãos vazias”, disse o dirigente cearense, que também presidente da Askace.

Yasutaka Tanaka fazendo o que mais gostava, transmitir o conhecimento adquirido com os mestres Masatoshi Nakayama e Hidetaka Nishiyama

Sérgio Bastos, presidente da Confederação Brasileira de Karatê-Dô Tradicional, lamentou a perda da maior referência da ITKF no Brasil e no mundo.

“Perdemos o fundador da CBKT, nosso baluarte e a nossa maior referência como mestre. Ele foi um dos maiores disseminadores da semente que levou a nossa modalidade aos quatro cantos do País. Ele trabalhou muito para que hoje desfrutássemos este excelente momento de nossa modalidade. Também fico muito triste como praticante, porque ele era é uma das nossas maiores referências nesta área. Nos últimos anos eu sempre falava aos nossos atletas e praticantes que aproveitassem o máximo possível os ensinamentos transmitidos por ele, pois diante deles estava a maior autoridade do karatê tradicional mundial. Shihan Tanaka era uma pessoa com vivência e conhecimento enormes. Acima de tudo era uma pessoa simples e gentil. Um mestre com enorme conhecimento e, acima de tudo, um grande líder”, disse Bastos.

Sensei Tanaka em uma demonstração no Clube Monte Líbano, em São José do Rio Preto (SP) nos anos 1960

Eckener de Pereira Cardoso Sobrinho, presidente da Federação de Karatê-Dô Tradicional da Bahia (FKTB), expôs a gratidão pelo professor Tanaka, por tudo que ele fez e pelo legado que deixa para o karatê da Bahia e do Brasil

“Difícil falar ou fazer uma avaliação mais abrangente neste momento, mas em minha maneira de ver o karatê, o professor Yasutaka Tanaka era o exemplo máximo do que chamamos de mestre. Ou melhor, ele era um mestre na acepção da palavra. Viveu e pensou o karatê o tempo todo, e não se preocupou com o futuro. Em sua inocência e paixão pela modalidade, mesmo com mais de 80 anos pretendeu viver exclusivamente do karatê. Positivo, ele sempre achou que as coisas iriam mudar e melhorar. A forma como sempre conduziu a atividade serviu de exemplo e parâmetro para mim e me ajudou a continuar nesta jornada em busca da manutenção da essência do karatê. É por isso que sigo nesta jornada no karatê-dô tradicional. Deixo minha homenagem e gratidão eterna ao professor Tanaka, por tudo que fez e principalmente pelo legado que deixa para o karatê da Bahia e do Brasil”, afirmou o dirigente baiano.

Kazuo Kawano Nagamine, diretor da JKA e da Federação Paulista de Karatê-Dô Tradicional, destacou o caráter do mestre Tanaka.

“Yasutaka Tanaka sensei permanecerá entre nós através dos nossos atos, aulas, treinos, eventos e, acima de tudo, pela conduta que tivermos, respeitando aqueles princípios norteadores do seu viver. Não basta o que fizermos como realização, mas sim como o faremos. Devemos sempre lembrar dessa retidão, desprovida de interesses outros que não aqueles regidos pela justiça (Budô), e pelo desprendimento obtido a partir do respeito e da disciplina. ”

“Desde o fim dos anos 60, quando ainda adolescente, fascinado pela imponente figura do karateca, fui fisgado como admirador respeitoso e aprendiz permanente desse senhor Tanaka”, prosseguiu Nagamine. “Naqueles tempos nunca fui informado sobre quem era e qual importância teria no cenário nacional aquele sensei de karatê que vinha do Rio de Janeiro ao interior de São Paulo.”

Yasutaka Tanaka 08/10/1936 • 12/06/2018

A importância de Tanaka na vida de Nagamine foi fundamental, assim como a de outros que se foram e outros mestres que permanecem em atividade. “Mas neste momento cabe registro sobre Tanaka sensei. Aspectos técnicos sempre foram ferramentas para atingir pontos mais profundos da arte do karatê-dô. Condutas pertinentes ao desenvolvimento do ser humano mediante treino duro, simples e direto sempre foram presentes e marcantes no dia a dia com ele.”

Nagamine considera redundante falar da importância dele para o karatê nacional e mundial. “Além de tudo, sua energia vital irradiava karatê. E lembra que aprendeu a sorver e aproveitar cada segundo junto de Tanaka (inclusive ao telefone), pois sabia o quanto ele tinha para ensinar, desde que a pessoas soubessem aprender.

“Tenho certeza de que suas palavras e modo de vida continuarão a direcionar minhas reflexões acerca do que queremos para esta magnifica arte das mãos vazias, principalmente pelo desvendar como ele foi. Pleno em toda sua existência entre nós, deixa um espaço imenso a ser preenchido pela confirmação dos seus ensinamentos através de nossas ações. O comprometimento é individual e não cabe a ninguém cobrar essa atitude. Sua energia estará impregnando o caminho (dô). Espero fazer jus à disponibilidade e desprendimento que Tanaka Yasutaka Sensei teve desde sempre para todos nós, transcendendo desta forma os limites da simples prática”, concluiu Nagamine.

O corpo do shihan Yasutaka Tanaka está sendo velado na capela C do crematório São Francisco de Paula no bairro do Catumbi, na capital Fluminense.