Competição infantil, mas com regras de adulto?

Acredito que muitos talentos são prejudicados nessa fase da prática do judô, visto que a especialização precoce acaba por limitar o seu real potencial desportivo

Aspectos Pedagógicos do Judô
19 de abril de 2020
Por Anderson Dias de Lima I Fotos BUDOPRESS
Artigo publicado na Revista Budô em 2012
Curitiba – PR

No Brasil, talvez por questão cultural, temos o hábito de supervalorizar as competições desportivas de alto rendimento para crianças.

Nas mais diversas modalidades de esportes, podemos observar o fenômeno da especialização precoce, especialmente no aspecto da competição infantil. Estou falando dos ambientes envolvendo crianças das mais baixas faixas etárias, cujo clima de inter- relacionamento dos participantes transcorre como se todos fossem adultos.

É comum assistirmos a eventos esportivos para crianças abaixo dos 13 anos de idade com status oficial, cerimonial de abertura de alta pompa e formalidades, com desfile das delegações em seus uniformes de jogo impecáveis, presença e pronunciamento de altas autoridades, criando uma dimensão incompatível com o nível de desenvolvimento biológico-psíquico-social dos participantes.

Não bastasse tudo isso, na maioria das modalidades, as regras de arbitragem para as crianças e pré-adolescentes são exatamente iguais às aplicadas nas competições de adultos.

 

Nós, da modalidade de judô, não fugimos à regra, também temos os nossos grandes eventos oficiais do judô infantil, nos quais utilizamos as mesmas regras de arbitragem aplicadas nas competições do adulto.

Minha proposta com este texto é estimular uma reflexão específica sobre essa questão, e assim avaliarmos até que ponto a utilização das mesmas regras de competição para crianças e adultos atende às necessidades dos pequenos judocas. Até que ponto o padrão adulto de disputa satisfaz as reais necessidades das crianças em crescimento e em desenvolvimento?

Como especialista em iniciação esportiva, atuando como consultor pedagógico da Federação Paulista de Judô desde 1998, ministrando cursos sobre Conceitos Pedagógicos Aplicados ao Ensino do Judô, vejo essa questão como de suma importância para a melhoria e modernização do ensino do judô em nosso País.

A reflexão sobre as adaptações das regras para a competição do judô infantil deveria embasar-se em princípios científicos, objetivando principalmente a integridade física da criança, o seu crescimento e desenvolvimento harmônico e saudável, bem como a otimização do seu potencial atlético.”

Por diversos estudos científicos, antigos e recentes, sabemos que a criança é um ser em formação, com diversas fases de crescimento e desenvolvimento distintas entre si e, por sua vez, com características biológicas, psicológicas e sociais diferentes das do adulto.

Portanto, o tratamento dado à criança, seja quanto à sua iniciação desportiva e, principalmente, quanto à sua participação em atividades competitivas, deve respeitar as características biológicas, psíquicas e sociais próprias de cada uma dessas fases e, especialmente, diferentes da forma como tratamos os adultos, sob pena de estarmos comprometendo negativamente a sua formação, tanto do ponto de vista pessoal quanto do ponto de vista atlético e da sua integridade física.

Santana (2005), citado por Ramos e Neves, lista alguns riscos da especialização precoce:

  1. A) Estresse de competição: que se caracteriza por um sentimento de medo e insegurança, causado principalmente por conflitos oriundos de uma prática excessivamente competitiva. A criança, neste caso, tem medo de errar, sente-se insegura e com a autoestima ameaçada.
  2. B) Saturação esportiva: que se manifesta quando a criança apresenta sinais de desânimo (enjôo) e desinteresse em continuar a prática do esporte. Sente-se assim porque o praticou em excesso e quer abandoná-lo.
  3. C) Lesões que advêm, principalmente, pela prática em excesso e inadequada à faixa etária.

Se eu fosse dissertar sobre todos os aspectos envolvidos e já estudados no processo de iniciação desportiva e especialização precoce, poderia escrever um livro. Entretanto, penso que essa reflexão sobre as adaptações das regras para a competição do judô infantil deverá embasar-se em princípios científicos, objetivando principalmente a integridade física da criança, o seu crescimento e desenvolvimento harmônico e saudável, bem como a otimização do aproveitamento do seu potencial atlético.

Com relação aos aspectos da integridade física e de prevenção de lesões, quero ilustrar esta nossa reflexão, especialmente em relação a uma técnica que muito me preocupa quanto ao risco de lesão grave que representa para os pequenos praticantes, em particular para o uke, ao nível de coluna vertebral cervical.

Trata-se do seoi-nage ajoelhado, independentemente do momento em que o tori apoia os joelhos no tatami, antes, durante ou no final da projeção.

Tendo em vista que a aplicação do seoi-nage ajoelhado “facilita” a sua execução e tem demonstrado grande eficiência de pontuação, especialmente para as crianças, observamos com muita frequência o uso dessa estratégia de especialização precoce por parte daqueles professores que buscam resultados fáceis e imediatos, na ânsia de formar pequenos campeões.

Considerando a grande disparidade no grau de especialização das crianças em competições nas primeiras fases dos campeonatos (municipais e regionais) e, ainda, as dificuldades fisiológicas e morfológicas do tori para executar a técnica com alto grau de perfeição e controle, tenho observado muitas situações em que o uke, que também não está pronto fisiológica e morfologicamente para se defender ou cair com segurança, bater de frente com a cabeça no tatami, tendo o seu corpo arremessado, expondo a coluna vertebral, especialmente a região cervical, a altíssimo risco de lesão grave.

Alguns alegam que o apoio de apenas um joelho ou quando ambos forem apoiados apenas no momento final da execução minimizam os riscos; entretanto, penso que o risco ocorre em qualquer situação de apoio dos joelhos, seja antes, durante ou ao final da execução.

Vejo nessa situação um caso típico de se adaptar a regra, para prevenir o risco de lesão e promover a integridade física do pequeno praticante.

Tratando-se o judô de uma luta, vejo nessa e em outras situações a necessidade de adequar as regras para compatibilizá-las pedagogicamente com a prática infantil.

Se pensarmos sobre os vários aspectos do processo de iniciação e especialização da prática do judô, muitas outras sugestões poderiam ser feitas, até mesmo para modernizar e otimizar o desenvolvimento atlético dos nossos judocas.

Do ponto de vista do desenvolvimento desportivo, a especialização precoce limita a formação do repertório motor, tanto dos movimentos fundamentais quanto da modalidade em si e, consequentemente, limitando a otimização do potencial atlético do futuro competidor adulto.

Portanto, várias sugestões poderiam ser apresentadas para adaptar as regras no sentido de contemplar um desenvolvimento atlético mais completo do judoca.

Se observarmos as crianças mais bem classificadas nos campeonatos estaduais e nacionais do judô infantil, veremos que a maioria se especializou em duas ou três técnicas, no máximo. É muito comum observarmos nesses pequenos campeões as seguintes características de combate:

  • Forte disputa pelo kumi-kata (pegada), com entrada logo em seguida ao domínio dela.
  • Grande índice de aplicação do koshi-guruma, com rolamento simultâneo (espécie de makikomi).
  • Grande índice de aplicação da técnica do seoi-nage ajoelhado.
  • Pegada, ataque e defesa por apenas um dos lados.

Com algumas exceções, é claro, as lutas de alta performance dessas categorias se resumem nesses três itens de características técnicas, o que se mostra demasiadamente pobre sob o ponto de vista do que se espera de um bom desenvolvimento atlético.

Penso ser importante realizar um estudo para adequar as regras das competições nessas faixas etárias, para que esses alunos se comportem como verdadeiros aprendizes de judô e não como atletas já formados da modalidade.

Creio que, se promovermos uma adaptação nas regras de competição nessas categorias, poderíamos contemplar um ensino mais adequado, especialmente do ponto de vista do desenvolvimento global das técnicas, partindo do geral para o específico, como preconizam vários autores especializados em estudos do desenvolvimento motor.

Gallahue, em sua apresentação das fases do desenvolvimento motor em 1982, nos movimentos relacionados às habilidades esportivas propõe três estágios, a saber:

  1. Dos 7 aos 10 anos: Estagio geral, no qual se deve proporcionar o maior número possível de repertório motor da modalidade preferida e, até mesmo, de outras modalidades complementares.
  2. Dos 11 aos 13 anos: Estágio específico, no qual começa gradativamente a especificação da modalidade, bem como a especialização de algumas técnicas e táticas de competição apropriadas às características específicas do futuro atleta.
  3. Acima dos 14/15 anos: Estágio especializado, em que realmente se completa a formação do atleta e podemos propor um trabalho bem próximo ao do adulto.

Acredito que muitos talentos são prejudicados nessa fase da prática do judô, visto que a especialização precoce acaba por limitar o seu real potencial desportivo.

Para ilustrar meu ponto de vista, quero citar uma modalidade que foi exceção à regra em nosso País nos últimos 20 anos: o voleibol.

Há 20 anos, pensando nos aspectos abordados acima, a CBV promoveu uma adaptação das regras para as competições das categorias menores da modalidade.

Logicamente, não podemos atribuir o grande desenvolvimento técnico do vôlei, observado nos últimos anos, apenas a esse aspecto, entretanto, penso que esse foi um fator muito importante para que passasse a ser referência para o resto do mundo.

Infelizmente, parece-me que, por pressões diversas, a FPV e a CBV estão promovendo um retrocesso nisso que eu considero um avanço importante. Vamos observar e analisar as possíveis implicações nos próximos anos…

Abaixo, um comentário da professora Elizabete Sartori, supervisora técnica responsável pelas categorias de base do voleibol feminino da cidade de Americana (SP) a respeito desse retrocesso:

Até uns três anos atrás, no voleibol, existiam as regras e normas táticas adaptadas, que consistiam no seguinte:

  1. Até categoria 13 anos: obrigatório rodízio 6 x 0; saque por baixo; limitação da zona de saque; a posição 3 não podia atacar a bola; no 2º set, obrigatório três atletas que não jogaram no 1º set; proibido líbero.
  2. Até categoria 14 anos: saque por baixo, limitação da zona de saque; no 2º set obrigatório três atletas que não jogaram o 1º set; proibido líbero.
  3. Após a categoria 15 anos: não havia as limitações das regras. 


As adaptações das regras e normas táticas obrigavam os atletas a treinarem e a jogarem realizando todas as funções e os fundamentos do voleibol. Não havia como especificar as posições dos atletas. Trabalhávamos na forma mais global possível. Tínhamos de, obrigatoriamente, utilizar nos jogos pelo menos nove atletas.

Assim, desenvolvíamos não só os seis principais, mas pelo menos nove.

A FPV abriu muitos debates sobre este tema, com as equipes a favor e contra, mas acabou vencendo a especialização precoce do atleta. 

Agora as adaptações das regras e normas táticas se mantiveram apenas até os 13 anos (o saque por baixo e limitação da zona de saque).

E assim, todas as demais adaptações anteriores ficam liberadas, permitindo jogar com as regras atuais das categorias adultas.

Com esse retrocesso nas regras, já estamos percebendo atletas que chegam às categorias infanto-juvenil e juvenil com defasagem de fundamentos e, principalmente, defasagem motora.

Não sabemos qual será o resultado disso daqui a alguns anos.”

De forma empírica, vejo o voleibol como um bom exemplo, enquanto manteve as referidas adaptações das normas e regras para as competições das categorias menores; pena que esteja retrocedendo.

É importante ressaltar que qualquer proposta de mudança e adaptação das regras de arbitragem para o judô nas categorias menores demandaria um estudo bastante criterioso, por intermédio de uma comissão de profissionais ligados à modalidade, com característica multidisciplinar (técnicos, árbitros, professores, médicos, pedagogos, psicólogos, fisiologistas, educadores físicos e outros), com membros altamente qualificados em suas respectivas áreas de atuação, para que o resultado seja realmente satisfatório sob todos os aspectos envolvidos na questão.

Dessa maneira, não precisaríamos quebrar o nosso hábito da competição infantil, mas compatibilizá-la de forma que sejam minimizados os prejuízos e otimizados os benefícios.

Fica aí uma proposta de reflexão para a comunidade judoística do nosso País, no sentido de repensarmos as normas e regras de arbitragens do judô infantil, para que possamos, além da prevenção de lesões e integridade física de nossos pequenos competidores, promovermos um grande diferencial positivo no ensino do judô no Brasil.

Referências bibliográficas

Gallahue, David L. e Ozmun, John C. “Compreendendo o desenvolvimento motor: Bebês, Crianças, Adolescentes e Adultos”. Fhorte Editora, São Paulo, 2001.

Lima, Anderson Dias de. “Implicações da prática e do treinamento do Judô no crescimento e desenvolvimento da criança”. Rio de Janeiro, Universidade Castelo Branco, 1989.

Ramos, Adamilton Mendes e Neves, Ricardo Lira Rezende. “A iniciação esportiva e a especialização precoce à luz da teoria da complexidade”. Pensar a prática – Periódico científico da Faculdade de Educação Física da Universidade Federal de Goiás – http://www.revistas.ufg.br/index.php/fef/article/viewArticle/1786/333) Página eletrônica consultada em 20/01/2011.

Anderson Dias de Lima é professor kodansha shichi-dan (7º dan) FPJ/CBJ, graduado em educação física pela PUC-CAM (1986) e pós-graduado latu sensu pela Universidade Castelo Branco (1989). Na Federação Paulista de Judô (FPJudô) foi delegado regional da 8ª DRJ Oeste de 2005 a 2014, diretor de ensino e credenciamento técnico a partir de 1998, membro da comissão de estudos nos Jogos Olímpicos de Atlanta (1996), membro da comissão de estudos no Campeonato Mundial de Paris (1997), membro da comissão de cursos para professores de judô desde 1995, membro da banca examinadora nos exames de graduação desde 1999 e professor da disciplina princípios da educação física infantil e conceitos pedagógicos aplicados à iniciação esportiva no curso para provisionados.